DIREITO ADQUIRIDO COMO LIMITE À RETROPROJEÇÃO DE EMENDAS CONSTITUCIONAIS
Maria Coeli Simões Pires
Advogada, mestre e doutora em Direito pela UFMG e professora de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UFMG.
Sumário
sumário
1 Reformas constitucionais e segurança jurídica.
2 Direito adquirido como categoria jurídica complexa. 3 Evolução da noção de segurança jurídica, irretroatividade e direito adquirido.
4 Sistema legal e sistema constitucional da segurança jurídica e o critério do locus da garantia para definição do alcance de sua proteção.
5 Constituição, efeito imediato e o axioma da inoponibilidade de direito adquirido à Constituição. 6 O arranjo especial de proteção na Constituição de 1988. 7 O poder constituinte derivado e a limitação da revisão ou da reforma. 8 Posição da jurisprudência. 9 Quebra das certezas e revisão de axiomas. 10 Referências bibliográficas.
1 – Reformas constitucionais e segurança jurídica
Este trabalho, circunstanciado por um cenário marcado por múltiplas incertezas decorrentes de fatores estruturais e conjunturais, pelo experimentalismo de sucessivas reformas à Constituição e por retóricas que banalizam as normas supremas e ameaçam a sua efetividade, apresenta reflexões sobre a necessidade da preservação de situações jurídicas subjetivas, em especial as constituídas sob a égide da ordem constitucional originária, vez que as repetidas e indiscriminadas intervenções revisionais ou reformadoras tendem a vulnerar a concepção que informa a própria Constituição e que sustenta a salvaguarda dos direitos.
Por outro lado, é sabido que as principais alterações na Carta de 1988 articuladas como pretensa resposta à crise do Estado brasileiro, embora tematizem a definição da atuação estatal, estão fundamentalmente voltadas para o controle de gastos com funcionalismo, ainda que por mecanismos de vulneração da própria Constituição e, por isso mesmo, talvez na mais importante das frentes, suscitam discussão sobre a sua compatibilidade ou conflito com dispositivos constitucionais que respondem por direitos adquiridos, garantias públicas e outras salvaguardas.
À sua vez, os problemas que nascem da possível relativização da Constituição, normatividade que constitui o fundamento de validade positivo de toda a ordem jurídica, potencializam crescente litigiosidade, especialmente no campo do Direito público, e o demonstra a tendência que hoje já se verifica de freqüente manejo das garantias oponíveis ao Estado como inequívoco sintoma de resistência a um processo mais complexo que ensaia verdadeiro desmonte do sistema administrativo construído a duras penas no Brasil.
Daí por que as sucessivas reformas constitucionais, a par de acirrarem posturas defensivas de servidores, suscitam incursões em seara da temática da segurança jurídica, especialmente para discussão acerca da oponibilidade da garantia de direito adquirido à atuação do poder constituinte derivado.
2 – Direito adquirido como categoria jurídica complexa
A temática do direito adquirido, por si só, apresenta-se como desafio àqueles que se propõem desenvolvê-la, dificuldade que bem se ilustra com a confissão de Léon Duguit, que parece ser fiel ao estado de perplexidade do autor ao lidar com o aludido objeto. Veja-se a passagem em que o professor francês, em conferência na Universidade do Cairo (1926), sob a autoridade de cinqüenta anos de cátedra, revela, com laivos de ironia, sua ignorância acerca do verdadeiro sentido do direito adquirido: Daqui a poucos meses fará meio século que ensino Direito. E não sei até hoje o que seja direito adquirido.1
3 – Evolução da noção de segurança jurídica, irretroatividade e direito adquirido
Construção evolutiva de séculos, a noção de segurança jurídica em relação ao entretempo, especialmente expressa pela idéia de irretroatividade da lei, tem seus primeiros tentáculos no início do processo histórico- social das sociedades humanas, compondo os assentamentos sociojurídicos da intertemporalidade já nos Códigos de Hamurabi, no Código de Brocchoris, no Código de Manu, entre outros do Direito embrionário. E tem como precedente remoto mais consistente o enunciado romanístico teodesiano formulado no ano 440, pelo qual se reconhece a intangibilidade dos facta praeterita ( ocorridos e vencidos ante diem legis) e a proteção dos facta pendentia ( surgidos ante diem legis cujos efeitos se iniciam ou persistem no tempo da lei nova):
As leis e Constituições, de regra, regulam tão-somente os negócios futuros e não revogam o passado; por isso que não se referem ao passado, não se aplicam aos negócios pendentes.
A noção assim construída evolui e é batizada como jus quaesitum pelos canonistas medievais, para, depois, na modernidade, ganhar sua culminância com C. F. Gabba, na Itália, na fase científica da matéria, no bojo de múltiplas formulações, internas e externas, pela sustentação do direito adquirido ou em contraposição a tal defesa.2
3.1 – Segurança jurídica como móvel do Direito
Instituto de índole individualista, apoiado na idéia de segurança jurídica como apelo e necessidade do homem ou, segundo Pedro Lessa, como o móvel que propulsa o Direito desde os rudimentos de sua concepção, o direito adquirido constrói-se sobre o pilar da garantia da liberdade e do respeito ao passado, sendo famosa a afirmação de Portallis alusiva à estabilidade daquele tempo:
O homem […] seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto à sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino?
[…] Na ordem da natureza só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança […]
Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar, através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças.
3.2 – Conceito de direito adquirido
Entre antigos conceitos, está presente a insuperada construção de Gabba, segundo a qual direito adquirido é compreendido
Como um direito que foi criado sob o império de uma lei qualquer que se tornou, imediatamente, parte do patrimônio do indivíduo, ainda que a oportunidade de fazê-lo valer só apareça depois da entrada em vigor de uma lei diferente.
Em outras palavras, trata-se do direito que se constitui sob a égide da lei antiga e que, ainda não exercitado, configura-se como tal com o advento de alteração ou revogação da lei antiga, invocando a sobrevivência e a disciplina dessa no entretempo jurídico e, assim, afastando a regência dos ulteriores regramentos sobre o direito assim considerado.
Acrescente-se, com apoio em suplementos do mesmo autor, que se devem compreender integrantes da referida unidade de proteção todos os desdobramentos que nele se encartam:
As conseqüências de um direito adquirido devem ser havidas também como direitos adquiridos junto com ele e em virtude dele, quando se possa considerá-las como desenvolvimento do conceito do direito em causa ou com sua transformação.3
3.3 – O desafio da temática sob novos paradigmas
A par da dificuldade conatural ao instituto ou ao princípio do direito adquirido, sua tematização à luz do paradigma democrático e em face da atuação do poder constituinte derivado abre perspectiva de densificação da complexidade de seu tratamento, o que se acentua no contexto da chamada crise das incertezas, que rompe com antigos dogmas e apela por um Direito imparcial e transformador.
Vê-se que, já sob o paradigma das certezas, o instituto, como construção conformada pelas matrizes liberais e consonante com a crença na racionalidade abstrata, impõe-se como desafio aos estudiosos. Sob a égide do Estado Social, a dificuldade no tratamento da matéria avulta, em razão da contrastação do direito adquirido pela idéia de ordem pública, hegemônica e autoritária, diante da qual se deve arrefecer aquele. No cenário de franca crise das incertezas e em face do paradigma democrático, voltado para a transformação inclusiva e para a processualidade do Direito, a temática, associando idéias, à primeira vista, antitéticas, na expressão síntese do dilema vivenciado contemporaneamente – direito adquirido e transformação democrática – potencializa mais acentuadas perplexidades.
Apropriado nesse contexto, o tema invoca a idéia de tensão entre segurança jurídica e justiça; entre estabilidade e transformação e entre passado e futuro. Desafia os discursos de justificação legislativa na criação de um quadro normativo de condutas com vistas à organização e à disciplina da vida social que propicie às pessoas a previsibilidade ou a relativa certeza quanto ao resultado de seu comportamento. Igualmente, a temática densifica os discursos de aplicação ou interpretação na busca de uma segurança jurídica imparcial que, protegendo as esferas individuais contra abalos insuportáveis, mudanças traumáticas, rupturas inopinadas, não se compraza com a insegurança geral ou com a exclusão, e nem se influencie por retóricas de contingência, mas pugne por uma justiça que se projete, histórica e construtivamente, como resposta ao apelo do justo concreto e processualmente delineado.
4 – Sistema legal e sistema constitucional da segurança jurídica e o critério do locus da garantia para definição do alcance de sua proteção
O princípio da segurança jurídica assenta-se, especialmente, nos domínios do Direito Civil, e, em diversos países, sua positivação ocorre nesse nível de normatividade, ganhando status constitucional em alguns ordenamentos em arranjos mais ou menos flexíveis.
Quer em sistema legal, quer em sistema constitucional, o princípio resultou assimilado como fruto de uma consciência jurídica de proteção do passado, erigindo-se em base de defesa do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e do direito adquirido, a este correspondendo a mais evoluída garantia da segurança, já que, para além da irretroatividade, busca a sobrevivência da lei antiga para reger situações subjetivas cujo exercício ou efeitos são diferidos para o tempo da nova normatividade.
A doutrina clássica, contudo, sustenta que, a depender do locus de positivação do princípio, deve-se a ele atribuir força diferenciada, assumindo a orientação segundo a qual, sendo a norma protetiva de status infraconstitucional, a limitação dela deduzida dirige-se ao administrador e ao juiz e, se de nível constitucional, vertida estará também ao legislador.
Tal normatividade, à sua vez, é assimilada no processo comunicacional, sob o paradigma da linguagem, e, a partir do nível abstrato, permeia também contextos e vivências no processo de apropriação da dinâmica realidade. É dizer: o arcabouço normativo estruturado no plano ideativo se reconfigura processualmente, em procedimento discursivo.
5 – Constituição, efeito imediato e o axioma da inoponibilidade de direito adquirido à Constituição
Sob a idéia de efeito imediato das normas constitucionais, firma-se a compreensão de que a garantia do direito adquirido, ainda que estabelecida em plano de normatividade suprema, não é oponível ao constituinte originário ou derivado, e sobre aquela concepção constrói-se o axioma de todos conhecido e recorrente nos discursos pretorianos, em especial no Brasil: não há direito adquirido contra a Constituição, ou, dito de outro modo, o direito adquirido não é oponível a normas constitucionais, o que, equivocadamente, entende-se à margem da distinção entre normas oriundas do poder constituinte originário e normas estipuladas pelo poder constituído, como se também estas contassem com a virtualidade de desconstituição de direitos adquiridos em despeito de terem elas sua fonte de validade na obra do poder constituinte originário que expressamente os abriga.
6 – O arranjo especial de proteção na Constituição de 1988
A Constituição de 1988, fiel à história constitucional brasileira, que, desde a Constituição de 1934, prevê a proteção ao direito adquirido, salvo em breve hiato correspondente ao período de vigência da Constituição de 1937, manteve o status do princípio e o tripé da segurança jurídica – ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido – e avançou no sentido de sua densificação. Assim, além de trazer a norma insculpida no tópico relativo aos direitos fundamentais (art. 5o, XXXV), a Constituição vigente apresenta um arranjo mais sofisticado, presente na matriz conformadora do processo legislativo, na medida em que recobre o direito adquirido e a garantia respectiva com o manto das chamadas cláusulas intangíveis, a teor do disposto no art. 60, § 4o, que não se limita, no inciso IV, a mera remissão ao art. 5o, XXXVI, mas refere-se genericamente a direitos e garantias individuais. Isto é, a Carta Magna estabelece seara de reserva nessa matéria, assim como em relação às constantes nos incisos I, II e III do mesmo parágrafo, com categóricos limites negativos expressos ao constituinte derivado, assinalados, entre outras advertências, na seguinte: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.
Ao lado desses limites materiais expressos opostos ao constituinte derivado, a Constituição explicitamente estabelece limites formais a sua revisão ou a sua reforma, quais sejam os previstos nos §§ 1o e 5o do aludido art. 60. Deduzem-se ainda, de modo implícito, imposições voltadas para a preservação dos limites formais expressos e outras para proteção da essencialidade da Constituição, contra subversão de sua concepção teleológica e de seu espírito.
Do tratamento especial dado à matéria da segurança jurídica no Direito brasileiro e revelado pelo constituinte originário, ressai clara a própria evolução no tratamento do direito adquirido como garantia jusfundamental e, nesse sentido, como princípio considerado primordial, acolhido na consciência jurídica e situado na escala máxima do ordenamento, como expressão primeira da racionalização ética e com blindagem de cláusula intangível.
Vê-se que, a par da posição assimilada pela doutrina tradicional, que atribui ao status da positivação relevante papel na avaliação da limitação que a garantia opera, a sofisticação de um arranjo assim construído, em cuja estrutura estão presentes componentes materiais e formais de balizamento, traz imposição mais extremada no tocante à segurança jurídica, resguardando, às escâncaras, o princípio, mesmo pela sua essencialidade no concerto do Estado Democrático, contra investidas nos processos de revisão ou de reforma constitucional.
Ressalte-se, porém, que não basta o arranjo normativo. Por mais sofisticado que seja, faz-se necessária a permanente e adequada apropriação do princípio no plano lingüístico, em foro de ampla legitimidade, efetiva blindagem das garantias democráticas contra manipulações e distorções da retórica oficial de vulneração da segurança jurídica.
7 – O poder constituinte derivado e a limitação da revisão ou da reforma
A compreensão de limitação da revisão ou da reforma constitucional é compatível com a própria noção do poder constituído, ao qual se dá o designativo de derivado para explicitar o fundamento de sua atuação na delegação constitucional, diferentemente do poder constituinte propriamente dito, que tem sua autoridade sustentada fora da normatividade constitucional expressa e tão-só referenciada pelos marcos da liberdade e da igualdade. Em outros termos: há de se entender em escala de segundo grau a atuação do constituinte derivado, para usar a linguagem de Raul Machado Horta, que lembra a submissão daquele ao chamado centro comum de imputação, ao qual o constitucionalista aloca as matérias protegidas por cláusulas intangíveis.4
7.1 – Argumentos contrários à extensão da limitação ao poder constituinte derivado
Diversos são os fundamentos que alimentam as controvérsias acerca da oponibilidade dos referidos limites ao poder constituinte derivado: o alcance do termo lei; o assentamento dogmático do efeito imediato das normas constitucionais; a distinção entre direito adquirido e garantia de direito adquirido e outros.
De fato, a previsão genérica do enunciado constitucional, que impõe a observância do direito adquirido como limite à retroação da lei, ato por excelência expressivo do Poder Legislativo, é argumento a que se aferram defensores da insubmissão do constituinte derivado àquela limitação, ao entendimento de que as normas estabelecidas pelo poder constituinte derivado são hierarquicamente superiores às leis e parificadas às normas originais no bojo da unidade constitucional, a todas aproveitando o caráter de imediatidade dos respectivos efeitos. Em outras palavras: sustenta-se que o produto jusnormativo nesse nível é qualitativamente equiparável ao oriundo da atuação do constituinte pleno e não se abriga na acepção do termo lei.
Na esteira dos discursos reformistas oficiais, constrói-se também a argumentação segundo a qual a matéria comporta dupla angulação com base nas estruturas lógicas de direito e de garantia; os direitos assentam-se na pessoa e valem por si, como bens do sujeito; as garantias reportam-se ao Estado, ao Poder Judiciário para sua coerção, e têm valor instrumental e derivado.
Sustenta-se, assim, a partir da visão dicotômica de direito e garantia, especialmente pela voz de Paulo Modesto, que só se afasta a atuação supressiva ou modificativa do dispositivo constitucional que veicula a garantia, ao argumento de que a garantia dos direitos adquiridos constitui cláusula intangível, e não os direitos adquiridos em si.5
7.2 – Contra-argumentos pela oponibilidade do direito adquirido ao constituinte derivado. Ausência de poder desconstitutivo
Além do arranjo constitucional da proteção à segurança jurídica, o qual se reveste de maior sofisticação de que todos os apresentados na história do constitucionalismo pátrio, outras razões neutralizam o discurso da insubmissão do constituinte derivado a limites na conformação de emendas.
7.2.1 – Lei em sentido genérico
O fato de o enunciado da garantia construir-se a partir do termo lei, não pode ser tomado como empecilho à ampla proteção da estabilidade jurídica. Ao contrário, lei há de ser compreendida em acepção ampla, como qualquer produto jusnormativo do processo legislativo, como direito legal emanado do legislador ordinário, do Constituinte derivado, do Presidente da República, ou decorrente das delegações legislativas, consoante o disposto no art. 59 da Constituição da República, o que se aplica, com as adaptações necessárias, aos diversos planos federativos.
O termo, tomado em conotação mais abrangente, alcança emendas à Constituição, idéia que se fortalece em face da posição de sujeição do poder constituinte derivado a um centro comum de imputação, em que se inclui a intangibilidade do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, conforme o disposto no art. 60, § 4o, IV, que determina a submissão do poder reformador ou revisional àqueles limites.
Há de se registrar que as emendas constitucionais, apesar de hierarquicamente superiores às leis em geral, não se revestem do caráter de inicialidade, não são originais e têm sua validade a depender de sua conformidade com a matriz autorizativa, que é a Constituição como criação suprema e fonte primeira de juridicidade.
7.2.2 – Submissão à processualidade da vontade originária e condicionamento da eficácia da manifestação derivada à nova temporalidade
Contra o argumento da separação das estruturas lógicas de direito e garantia, há de se afirmar que o art. 60, § 4o, IV, da Constituição obstaculiza não apenas a abolição da garantia como também a vulneração do próprio direito adquirido, como conseqüência necessária do fato de ser aquela mera instrumentalização que não pode prescindir do direito correspondente.
Na verdade, distorcer o sentido da construção do arranjo para afastar sua incidência sobre direitos adquiridos afigura-se como um discurso de desproteção da segurança, que, por isso mesmo, falseia a teleologia da norma. Ora, a afirmação constitucional é abrangente de vedação ao legislador constituinte de proscrever a garantia do direito adquirido e de desconstituir o próprio direito adquirido configurado sob a vigência da ordem constitucional, especialmente porque o direito adquirido se reveste do caráter de fundamentalidade, e são os direitos fundamentais genérica e expressamente protegidos pelo mesmo comando.
De fato, há de se entender que ao constituinte derivado retira-se o poder de dispor das garantias e de impor seus comandos com eficácia imediata, com desconsideração de direito adquirido, que invoca a sobrevivência da normatividade constitucional vigente ao tempo da constituição da situação subjetiva de que decorra.
Ao contrário do que se vislumbra na insubmissão apregoada por Modesto, o poder reformador há de servir à processualidade da vontade constituinte originária. De outro modo, há de se admitir que contra o poder constituinte inicial, de constituir, está-se contrapondo impensável poder de desconstituição da patrimonialidade incorporada à esfera do titular sob regência do texto constitucional vigente à época de tal integração.
José Afonso da Silva, refutando o critério da separação das estruturas lógicas de direito e garantia defendido por Modesto, afirma que um tal argumento e uma tal doutrina valem como uma fraude à Constituição.6
Nesse sentido, vale recordar a advertência de Raul Machado Horta, ao referir-se ao núcleo intangível expresso na Constituição, de que a vedação contida no dispositivo não se circunscreve à abolição pelas formas ostensivas, rombudas, mas alcança aquelas oblíquas, dissimuladas e ladeantes.7
7.2.3 – Desrespeito ao direito adquirido como forma indireta de vulneração da garantia
Ora, o desrespeito ao direito constituído sob a égide de texto constitucional revogado ou alterado ou por ele recepcionado equivale a mecanismo indireto de vulneração da garantia em si, que tem, no mínimo, sua eficácia suspensa, no momento pontual de revisão ou de alteração.
Se se admite a retroatividade da norma constitucional oriunda de emenda para desconstituir direito adquirido, está-se diante da interseção indevida da vontade constituinte originária, única e soberana, por outra derivada, fragmentária e de caráter subalterno, que não pode transcender sua temporalidade. Está-se igualmente diante de solução fraudulenta.
7.2.4 – Afirmação de direito adquirido como forma oblíqua de negação
No mesmo diapasão, há de se registrar que se revela paradoxal a afirmação de direitos adquiridos pelo legislador na operação pós-Constituição. Em verdade, forma oblíqua de ofensa aos direitos adquiridos pela farsa do reconhecimento ou de ressalva de situações constituídas. Arvora-se o constituinte derivado em árbitro de aplicação da garantia, adentrando esfera do Poder Judiciário.
Ao constituinte derivado e ao legislador ordinário cabe atentar nas expectativas, nas esperanças para projetar soluções mais desejáveis por meio de normas de adaptação. Tal normatividade, contudo, embora referente ao entretempo jurídico, não diz respeito a conflitos e, assim, comporta-se no âmbito da autonomia do legislador como possível solução legislativa de acomodação com vistas a projetar justiça.
Quando as normas novas incidem sobre direitos adquiridos, atos jurídicos perfeitos e coisa julgada, instalam- se conflitos intertemporais, e, assim matizadas, as situações devem-se acomodar no campo de aplicação, fugindo à seara do legislador. Nessa mesma via, ao estudioso afigura-se intrusa a atuação do legislador que se avoca o poder de discriminar, no plano abstrato, as ressalvas de direito adquirido em matéria de aplicação.
Deve o legislador, sim, nos domínios da tecnicalidade da produção legislativa, ater-se aos princípios a que se encontra jungido na atividade e dominar as noções fundamentais que põem balizas à criação do direito, isto é, contar com o suporte da ciência que lhe empresta o subsídio para criação legislativa, com os elementos do discurso de justificação da produção normativa, especialmente para não abalroar as barreiras materiais e formais que se lhe opõem para a construção de normas válidas. Não lhe cabe, contudo, meter-se na complexidade das questões cujo deslinde se reserva ao intérprete do Direito, embora, em alguma medida, haja sempre uma mitigação de aplicação na definição das opções regulativas. Admitir tal intromissão equivale à dispensa, no caso concreto, da função do juiz e confusão de papéis político e jurídico.
Daí por que, silente a norma quanto a direitos que a novel disciplina decorrente de emendas não deva alcançar sob sua regência, prejuízo não há para a segurança jurídica, eis que os comandos devem ser aplicados com observância das normas de intertemporalidade conflitual, sem se olvidar que se mantém a tarefa de reconhecer, com definitividade, a configuração de direito adquirido, na esfera de manejo das garantias, a do Judiciário, ainda quando o legislador dá à matéria tratamento expresso, com a ressalva de Celso Antônio Bandeira de Mello, no sentido de que, mesmo em se tratando de poder constituinte originário, a proteção do direito adquirido só poderá ceder passo diante de nova Constituição que deixasse bastante claro seu propósito de desabrigá-lo nos casos tais ou quais. Nenhuma outra regra de direito teria força para elidir direitos adquiridos.8
8 – Posição da jurisprudência
8.1 – Pela inadmissibilidade de oposição de direito adquirido a normas da Constituição da República
8.1.1 – STF – Decisões anteriores à Constituição da República de 1988
Faz-se sintético registro das principais posições jurisprudenciais assumidas no trato do binômio direito adquirido e Constituição.
Seguem-se excertos e referências de julgados:
[…] Contra preceito constitucional não é invocável o direito adquirido (STF, 2a Turma, RE n. 14.360, Rel. Min. Edgar Costa, RF, p. 423, abr., 1951);
Não há direito adquirido contra preceito expresso da Constituição. A correlação de matérias, para efeito de acumulação remunerada, é exigida quando ambos os cargos são do magistério (STF, RE n. 35.491-SP, Rel. Min. Luiz Gallotti, RDA 54/215, j. 30/10/1958);
[…] O direito adquirido, garantido no § 3o. do art. 153 da Constituição Federal, somente é oponível à lei. Contra a própria Constituição não há direito adquirido. […] (STF, PLENO, Representação n. 895, Rel. Min. Djaci Falcão, RTJ 67/327);
Não há direito à acumulação remunerada, porque não há direito adquirido depois da Constituição (STF, Rel. Min. Cândido Motta Filho, RTJ 42/345, j. em 17/03/1967);
[…] Quando sucede alteração constitucional que modifique a estrutura de um instituto jurídico, não se tem como admitir a persistência das leis ordinárias que se encontrem a contraditar a nova estrutura, pois […] é a vontade inovadora do constituinte que prevalece. Recurso extraordinário provido (STF, RE n. 84797-SP, Rel. Min. Antônio Neder, RTJ 80/944, j. em 10/08/1976);
[…] A Emenda Constitucional n. 8/77 fixou em quatro anos o prazo de validade dos concursos (art. 97, § 3o, da Constituição Federal). – Trata-se de regra imperativa, que incide imediatamente por força de sua natureza constitucional. – Inocorrência de direito adquirido contra a Constituição. Precedentes: MS 20.157, Pleno, RTJ 95/51. RE não conhecido (STF, RE n. 93.290-RJ, Rel. Min. Cordeiro Guerra, RTJ 99/869, j. em 28/08/1981);
A norma da Emenda Constitucional n. 8/77, que estabeleceu o prazo máximo de quatro anos para validade de concursos, tem aplicação imediata. – Não há como invocar, contra essa norma, as garantias do direito adquirido que se dirigem à lei ordinária e não à Constituição (STF, RE n. 95175, Rel. Min. Soares Munoz, RDA 123, j. em 20/04/1982);
[…] Inexistência de direito adquirido para regime jurídico do servidor público cuja modificação decorre de texto constitucional (STF, RE n. 100.144-SP, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 109/1175, j. em 7/07/83);
Magistrado. Incidência imediata da proibição contida no artigo 114, I, da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional n. 7/77. – Não há direito adquirido contra texto constitucional, resulte ele do Poder Constituinte originário, ou do Poder Constituinte derivado. Prece-
dentes do STF. Recurso extraordinário conhecido e provido (STF, RE n. 94.414-SP, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 114/237, RDA 160/144, j. em 13/02/1985);
[…] O § 3o do art. 153 da CF impede que a lei prejudique o direito adquirido, mas não que a própria Constituição regule, como lhe parecer, a eficácia temporal de concursos futuros ou já realizados, inclusive mediante emenda, como aconteceu, no caso, a de n. 8, de 1977, ao acrescentar o § 3o do art. 97 (STF, AR n. 1.212, Rel. Min. Sydney Sanches, RDA 174/183, j. em 3/09/1987).
Registra-se que, da análise levada a efeito neste tópico, prevalece no conjunto dos julgados o culto ao axioma de que não há direito adquirido contra a Constituição, o que se sustenta à margem da consideração de se tratar de Constituição como elaboração original ou como sede de normas aportadas por emendas.
8.1.2 – STF – Decisões posteriores à Constituição da República de 1988
[…] O disposto no artigo 5o, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de Direito público e lei de Direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedente. S.T.F […] (STF, Tribunal Pleno, ADIN 493-DF, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 143–03/724, j. em 25/06/1992);
Transformação de cargo de datilógrafo em técnico de planejamento, por desvio de função. Alegação de direito adquirido contra a Constituição. […]. Não há direito adquirido contra a Constituição. Recurso extraordinário conhecido e provido (STF, 1a Turma, RE 157.538-RJ, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 151/992, j. em 22/07/1993);
[…] Não há dúvida de que a Constituição se aplica de imediato, alcançando os efeitos futuros de fatos passados (retroatividade mínima), como sucede com a alteração da competência, mas, a menos que o declare expressamente, não desconstitui os fatos consumados no passado (retroatividade máxima), como é o caso da preclusão já ocorrida anteriormente. […] (STF, Primeira Turma, RE–136926-DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ DATA–15–04–94 PP–08062, j. em 16/11/1993);
[…] A supremacia jurídica das normas inscritas na Carta Federal não permite, ressalvadas as eventuais exceções proclamadas no próprio texto constitucional, que contra elas seja invocado o direito adquirido. Doutrina e jurisprudência (STF, ADIN 248-RJ, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, RTJ 152/341, j. em 18/11/1993);
[…] O constituinte, ao estabelecer a inviolabilidade do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, diante da lei (art. 5o, XXXVI), obviamente, excluiu-se dessa limitação, razão pela qual nada o impedia de excluir, dessa garantia, a situação jurídica em foco. Assim é que, além de vedar, no art. 37, XIV, a concessão de vantagens funcionais “em cascata”, determinou a imediata supressão de excessos da espécie, sem consideração a “direito adquirido”, expressão que há de ser entendida como compreendendo não apenas o direito adquirido propriamente dito, mas também o decorrente de ato jurídico perfeito e da coisa julgada. […] Inconstitucionalidade não configurada. Recurso não conhecido (STF, RE 140894, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 09–08–1996, PP–27102, j. em 10/05/1994);
Pensões especiais vinculadas a salário mínimo. Aplicação imediata a elas da vedação da parte final do inciso IV do artigo 7o da Constituição de 1988. – Já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que os dispositivos constitucionais têm vigência imediata, alcançando os efeitos futuros de fatos passados (retroatividade mínima). Salvo disposição expressa em contrário – e a Constituição pode fazê-lo –, eles não alcançam os fatos consumados no passado nem as prestações anteriormente vencidas e não pagas (retroatividades máxima e média). – Recurso extraordinário conhecido e provido (STF, Primeira Turma, RE–140499-GO, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 09–09–94/p–23444, j. em 12/04/1994);
(…) A vedação da vinculação do salário mínimo, constante do inciso IV do art. 7o da Carta Federal, que visa impedir a utilização do referido parâmetro como fator de i n d e x a ç ã o p a r a o b r i g a ç õ e s , a p l i c a – se i m e d i a t a m e n t e so b r e a s p e n sõ e s q u e anteriormente foram estipuladas, não havendo que se falar em direito adquirido. Recurso extraordinário conhecido e provido (STF, RE n. 143812–6-GO, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. em 27/08/1996).
Os julgados trazidos à colação seguem a vertente dos processados sob o império de ordens constitucionais anteriores, sobretudo vinculando-se a axiomas e sustentando a incompatibilidade entre Constituição e direito adquirido, independentemente da consideração de se tratar de preceito original ou decorrente de emenda, não obstante a mudança do arranjo normativo que sustenta a matéria no Texto Magno.
As decisões, porém, deduzem, de forma simplista, do papel constitutivo de nova ordem, atribuído originariamente ao constituinte, equivalente poder desconstitutivo da precedente, sem se ater aos aspectos relativos à intangibilidade de alguns princípios e aos condicionamentos do tratamento de certos direitos fundamentais essenciais ao Estado Democrático–liberdade e igualdade.
Por fim, deve-se registrar, por um lado, a necessidade de que as soluções nesse campo, mesmo quando veiculadas por dispositivos constitucionais originais, sejam consideradas em face dos chamados invariantes axiológicos, externos à textura constitucional, no plano dos direitos fundamentais, ou, em outra vertente, dos postulados deontológicos máximos da igualdade e da liberdade. Por outro lado, o fato de o Constituinte originário, ao estatuir ordem nova, fazê-lo para efeito imediato, e não, retroativo, importa em recepção daquilo que com ela se compatibiliza. Para desconstituir situações jurídicas consolidadas, efeito no passado ou abalroar o direito adquirido e seus desdobramentos, só excepcionalmente e por restrita exceção expressa à irretroatividade pode fazê-lo.
8.1.3 – STJ – Decisões posteriores à Constituição da República de 1988
Na mesma vereda, ilustrando a posição do STJ sob o pálio da Constituição de 1988, aparecem as seguintes soluções:
[…] Não se há de invocar direito adquirido contra o que posto induvidosamente na nova ordem constitucional, em modificação não apenas do texto mas do próprio sistema, até porque as garantias do direito adquirido se dirigem à lei ordinária e não à Constituição. […] (STJ, Rec. Esp. n. 506 – RJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, R. Sup. Trib. Just., Brasília, 2(06) p. 360, 1990, j. em 25/09/1989);
Mandado de Segurança. Servidor público. Acumulação de cargos. Constituição Federal de 1988. Direito adquirido. Inexistência. Inexiste direito adquirido contra o texto constitucional, em especial no que se refere a regime jurídico de servidores públicos. Precedentes do STF. – Impossibilidade de se entender estável o servidor que incida em acumulação de cargos, vedada constitucionalmente (STJ, Mandado de Segurança n. 7-DF, Rel. Min. Miguel Ferrante, R. Sup. Trib. Just. 2(7) p. 173, 1990, j. em 12/12/1989);
(…) Não há como invocar direito adquirido contra a Constituição e, se o problema da remuneração dos militares – como da maioria dos brasileiros assalariados – reclama soluções, não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos (STJ, MS n. 834-DF, Rel. Min. Hélio Mosimann, R. Sup. Trib. Just., v. 4, n. 29, p. 191–192).
8.2 – Direito adquirido e Constituição – soluções mitigadas da jurisprudência
Ainda em sede pretoriana, situações mitigadas em variadas direções refletem posições titubeantes da doutrina.
Xavier Albuquerque, após ampla pesquisa jurisprudencial, acerca da polêmica direito adquirido e Constituição, identifica, no tocante à matéria, orientações divergentes que se encaminham para quatro vertentes, a saber: 1) a da prevalência do cânone de inexistência de direito adquirido em face da Constituição; 2) a do acatamento do direito adquirido mediante a compatibilização intraconstitucional das normas coetâneas; 3) a de sustentação da irretroatividade como regra, só excepcionada por força de norma constitucional expressa; e 4) a da amenização da exigência de norma expressa, para admiti-la implicitamente enunciada, quer como dedução do teor da normatividade constitucional, quer como decorrência da natureza da norma tendo em vista a matéria veiculada.9
Referindo-se à posição do STF pela prevalência do cânone de inexistência de direito adquirido em face da Constituição, Albuquerque registra:
Entre os antigos julgados, podem ser lembrados o RE 14.360 (RF. 134/423 – 427), o RE 35491 (RTJ 5/194) e o RE 60.047 (RTJ 42/385), ao passo que, entre os julgados recentes, merecem ser apontados o RE 90.391 (RTJ 94/1258), o RE 93290 (RTJ 99/869), o RE 95.175 (RTJ 103/795), o RE 100.144 (RTJ 109/1.175) e o RE 94.414 (RTJ 114/237). (1991:42)
A corrente do acatamento do direito adquirido, à sua vez, defende o argumento de que, em uma Constituição que acolhe a garantia do direito adquirido, não se pode dizer de direito adquirido contra ela, mas em conformidade com seus ditames, o que, na visão de Albuquerque, justifica a compatibilização interna do Texto Maior para abrigar soluções compatíveis com a normatividade como um todo. Nesse sentido, recapitula passagens importantes: no MS 196.455, versando matéria de direito adquirido à aposentadoria e Constituição, em que o TJSP considera inócua a 1a parte do art. 177, § 1o da Constituição de 1967, destinada a resguardar direitos dos servidores à aposentadoria segundo a legislação vigente à sua data, em face do atendimento anterior dos requisitos para aposentação, eis que a Constituição já trazia o princípio do respeito ao direito adquirido; julgado do MS 209.035, em que o mesmo TJSP lavra a seguinte conclusão: Não se trata de admitir o direito adquirido contra a Constituição, mas em consonância com o próprio mandamento constitucional.10
Numa terceira vertente, o parecerista traz à baila outros julgados do STF, ressaltando os votos majoritários do acórdão proferido no RE 74284 (RTJ: n. 66, 211–221) e, na Repr. 875 (RTJ 68/9–15), o voto do Relator Min. Djaci Falcão, unanimemente acompanhado, de cujo teor se extrai que
[…] os fatos ou atos passados e seus efeitos, verificados na vigência de preceito anterior, não podem ser atingidos pela regra nova, salvo quando esta dispõe expressamente em contrário;
e, no acórdão prolatado no RE 10927 (RF 128/447), a lição de Orozimbo Nonato: A cláusula de retroatividade há de ser expressa, inequívoca, posto que se não exijam palavras sacramentais.
Finalmente, relatando a posição do STF pela retroatividade implícita, mostra que alguns amenizam a solução anterior, admitindo a supressão de direitos adquiridos, pela Constituição, por força de cláusula implícita nesse sentido, ou da própria natureza da disposição.
Sobressai, como conclusão da análise desses julgados, que o labor pretoriano nesse particular reflete as posições titubeantes da doutrina, o que induz a que se atente na evidente necessidade de aprofundamento da discussão e de adequada sistematização de seus pressupostos, para além do apego aos falsos postulados, especialmente à luz da teoria dos direitos fundamentais e à vista do novo arranjo constitucional de preservação da segurança jurídica.
Fica claro, porém, que as jurisprudências anterior e posterior à Constituição de 1988 revelam um certo culto ao axioma não há direito adquirido contra a Constituição, o que se sustenta à margem da consideração de se tratar, ou não, de Constituição como elaboração inicial ou como normatividade decorrente de emendas e, por isso mesmo, dá margem a controvérsias no tocante a limites em sede de revisão ou de reforma da Constituição.
9 – Quebra das certezas e revisão de axiomas
O certo é que, aqui e em outros lugares, no bojo das incertezas, colocam-se antigos dogmas, como o da inexistência de direito adquirido em face da Constituição e a própria noção de segurança jurídica.
Contra a prevalência de dogmas, a postura há de ser reflexiva, discursiva e desafiadora, tendo em vista a consecução de novos sentidos dos respectivos enunciados, de modo a atualizá-los segundo novas matrizes e cenários gerais prevalecentes, ou, em outras palavras, de modo a romper com a visão ontológica que separa idealidade de realidade.
Carlos Ayres de Britto, antes de integrar a mais alta Corte de Justiça do país, e Walmir Pontes, combatendo jurisprudência consolidada à sombra das Constituições anteriores, procuram restringir a aplicação do dogma de que não há direito adquirido contra a Constituição, para admiti-lo apenas em relação à primária manifestação do Poder Constituinte. Na mesma esteira, defendem a proteção dos direitos subjetivos também contra lesão por conduto de reforma constitucional.11
A posição no tocante ao poder constituinte originário está de acordo com a orientação doutrinária prevalecente no sentido de que, sendo o mesmo titular de poder normativo pleno, inicial, incondicionado e ilimitado, não deve encontrar barreiras a sua atuação. Resultam dessa compreensão as seguintes idéias básicas: a da imediatidade da eficácia das normas constitucionais originais; a de que só a Constituição, fonte de validade de todo o sistema, pode relativizar os efeitos de suas disposições em relação às normas anteriores contrárias ao novo ordenamento; a de que a legislação infraconstitucional não confrontante com o Estatuto é por ele recepcionada; e a de que, ocorrendo o confronto, não ressalvado, entre o antigo ordenamento e a nova Constituição, sobrepõe-se esta, pelo princípio da supremacia.
Na mesma vertente, a doutrina e a jurisprudência pátrias defendem que a Constituição original tem à sua mercê qualquer norma que lhe seja cronologicamente anterior, mesmo que envolva direito adquirido, situação em que a ela cabe preservá-lo ou deixar de fazê-lo. É dizer: a Constituição, para fugir à lógica natural da imediatidade, deve ser expressa quanto à retrooperância de suas normas, isso porque, em face da Constituição como manifestação primária, prevalecem os princípios da soberania e da eficácia imediata das normas constitucionais.
Pesquisa histórica, no entanto, mostra que, no Brasil, as alterações de regime político e a adoção de novas Constituições não representam rupturas como as ocorridas em países estrangeiros, tendo em vista as cautelas compatibilizadoras entre o Direito anterior e a nova Constituição, salvo raras exceções, como as previstas na Constituição de 1988, pelos arts. 17 e 44, e seus parágrafos, do ADCT, não se operando, neste último caso, quebra radical da segurança.12
A tendência prática do constitucionalismo, como se vê, é respeitar as relações constituídas, e mesmo a teorização a respeito pode ganhar novos rumos, notadamente em momento de fortalecimento das formulações sobre direitos fundamentais e princípios democráticos.13
Começa-se a defender, assim, a restrição da aplicação do dogma de que não há direito adquirido contra a Constituição à manifestação primária do poder constituinte, e já se sustenta a ressalva da intangibilidade, também nesse nível, dos princípios essenciais ao Estado Democrático.
Nessa linha, ressai da hermenêutica constitucional, especialmente à vista do tratamento dos direitos fundamentais, por um lado, e do novo arranjo normativo, por outro, que o constituinte, originário ou derivado, sujeita-se a condicionamentos, mais estreitos ou mais dilargados, conforme a sua natureza. Ao constituinte originário impõem-se as limitações da liberdade e da igualdade, e ao poder constituinte derivado cabe, além de respeitar tais limitações e a garantia de segurança jurídica como construção lógica de proteção, por razões mais fortes, reconhecer o conteúdo da proteção aplicada, sob pena de negativa da própria garantia constitucional e de prevalência do constituinte derivado sobre o originário. Deve o constituinte derivado, portanto, imprimir aos seus comandos efeitos ex nunc, sendo a potencialidade de sua atuação essencialmente reformadora e demarcada pela temporalidade da emenda que a traduz. Ao prescrever efeito retroativo – o que se admite apenas excepcionalmente – há de observar os limites do direito adquirido e das outras garantias de segurança jurídica.
No mesmo sentido de revisão de dogmas, aqui se sustenta que o conceito de segurança jurídica, para que se compatibilize com o novo paradigma de imparcialidade do Direito, há de ser ressemantizado na perspectiva de uma segurança compartilhada. O conceito, tal como forjado pelo constitucionalismo e fio condutor do projeto jurídico de sustentação do capitalismo mercantil, ou tal como apresentado em face do Estado de funções alocativas, corretivas e distributivas, não responde à complexidade dos conflitos que põem em xeque soberania, territorialidade, estruturas ocupacionais, processos de construção e reconstrução política e a idéia de justiça viabilizada por instrumentos fiscais.14
Nesse intento, deve-se assinalar que, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, a matriz positiva invoca não apenas a observância estrita da garantia no sentido de não olvidá-la, mas também a normatividade que vocacionadamente busque a segurança justa, a sociedade de equilíbrio, sem os sobressaltos do direito cambiante e incerto, porém determinantemente construtivo de um status permanente de segurança partilhada, o que tem de ver com a igualdade na segurança por meio de padrões de reciprocidade e de ampliação da responsabilidade coletiva.
Por fim, há de se atentar no fato de que o determinismo do passado não pode mais prevalecer, e isso traz novos elementos para a avaliação da segurança jurídica que se desafia na abertura para o presente e para o futuro, especialmente para que se preserve a sintonia entre os planos de abstração e concreticidade.
10 – Referências bibliográficas
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Notas
1 DANTAS. 1997, p. 3.
2 FRANÇA. 1998, p. 8–55.
3 GABBA. 1891, p.279.
4 HORTA. 1995, p. 94–95.
5 MODESTO. 1995, p. 196.
6 SILVA. 1998, p. 131.
7 HORTA. 1995, p. 94, 95, 97.
8 BANDEIRA DE MELLO. 2003, p. 13.
9 Veja-se a propósito o Parecer alusivo a aposentadoria de membro de Tribunal de Contas (1991:41–43) 10 ALBUQUERQUE. 1991, p. 41.
11 BRITTO e PONTES FILHO. 1996, p. 23 e 27.
12 HORTA. 1995, p. 277.
13 TOLEDO. 2003.
14 FARIA, Prefácio in CITTADINO. 2004, p. XVI a XXI.