DIREITO URBANISTICO, MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO CULTURAL
Maria Coeli Simões Pires
Maria Coeli Simões Pires é Mestre em Direi- to pela Faculdade de Direito de Minas Gerais, doutoranda na mesma área de concentração daquela isntituição e Professora Assistente da disciplina na Graduação.
Sumário
- Gestão urbanístico-ambiental como desa- fio contemporâneo.
- Direito Urbanístico – uma visão ampliativa de seu objeto.
- Direito Urba- nístico e gestão do patrimônio cultural.
- Da interface dos aspectos social e urbanístico.
- Ci- dade e cultura – recíprocas interferências e repre- sentações – O direito da cidade e o direito à cida- de.
- Cidade e cultura: recíproca destruição – a contradição das forças de formação e deforma- ção da cidade.
- A força do Estado.
- A força do mercado.
- A força da sociedade.
- A polí- tica urbano-cultural e as estratégias de gestão.
- A função social da propriedade urbana como prin- cípio orientador da atuação urbanística.
- Di- reito à propriedade e direito de construir.
- Direito de construir e direito de configuração da cidade.
- Propriedade do bem cultural.
- Di- reito à propriedade e direito de construir.
- A emergência de edição do Estatuto da Cidade para consolidação das políticas locais.
- Comentário sobre a versão provisória do Estatuto da Cidade.
- Plano Diretor.
- Instrumentos sancionató- rios.
- Consórcio imobiliário.
- Usucapião especial de imóvel urbano.
- Concessão de uso especial para fins de moradia.
- Direito de su- perfície.
- Preempção.
- Outorga onerosa do direito de construir.
- Transferência do di- reito de construir.
- Outorga onerosa de alte- ração de uso.
- Operação urbana consorcia- da.
- Estudo de impacto de vizinhança.
- Instrumentos urbanísticos aplicáveis para fins de preservação.
- Tombamento.
- Direito de superfície.
- Edificação compulsória e IPTU progressivo.
- Preempção urbanística.
- Operação interligada.
- Urbanização consor- ciada.
- Solo criado.
- Transferência do di- reito de construir.
- Usucapião.
- A tutela judicial da preservação do patrimônio cultural.
- Conclusão.
1. Gestão urbanístico-ambiental como desafio contemporâneo
Um dos grandes desafios da pós-moder- nidade é a gestão da cidade sob a perspecti- va urbanístico–ambiental.
Tal desafio, justificado pelas demandas de uma sociedade de massas, pelos impac- tos da tecnologia crescente e da ordem glo- bal, é tanto maior quando se têm em vista as megacidades, as capitais em processo de ex- pansão desordenada, as regiões metropoli- tanas e os aglomerados urbanos, em que, resguardados apenas os espaços elitizados por muralhas de defesa e segregação, pre- valece a pressão do “progresso” e de suas mazelas sobre o patrimônio natural e cultu- ral. Qualitativamente, é o mesmo problema que se apresenta no âmbito de pequenos núcleos urbanos ameaçados por múltiplos fatores de desequilíbrio ambiental, sejam os agenciamentos espaciais transgressores, se- jam as práticas sociais e econômicas impac- tantes das condições de sustentabilidade.
O enfrentamento desse quadro invoca a transdisciplinariedade da matéria urbanís- tica, suscitando, no campo jurídico, a asso- ciação direta entre Direito Urbanístico e Di- reito Ambiental, sem prejuízo de outras re- lações daquele com outros ramos, como o Municipal, o Administrativo e o Social, este referenciado às políticas públicas e à cida- dania. Sob o signo da unidade do Direito, as diferentes regras e princípios desses ra- mos devem ganhar na aplicação ao mesmo objeto, a chamada “coesão dinâmica”, no sentido da convergência finalística.
2. Direito Urbanístico – uma visão ampliativa de seu objeto
O Direito Urbanístico, referido expressa- mente no art. 24, I, da Constituição da Re- pública Federativa do Brasil, trilhando o caminho de sua autonomização como ramo multidisciplinar do Direito e voltando-se para o seu objeto central – a cidade, tomada não apenas na perspectiva de sua ordena-
ção territorial, mas também na de sua di- mensão social, na sua multifária constitui- ção como espaço de vivência coletiva e lu- gar de todos e, por força de sua redenção ética, como bem de fruição por habitantes – , vem consolidando um núcleo de normas cada vez mais complexas e demandando a especialização de métodos e princípios e a releitura de institutos tradicionais. Desse modo, o ramo evolui da compreensão de imposições urbanísticas do velho direito luso-brasileiro, passando pela de noções de ordem e estética, pela regulação das rela- ções de acesso ao espaço urbano e de apro- priação deste, até chegar ao campo de cogi- tações de sustentabilidade social, econômi- ca e ambiental da cidade sob inspiração democrática. Nesse mister, alcança um im- portante campo de incidência – o da políti- ca urbana vocacionada para a ordenação do pleno desenvolvimento das funções so- ciais da cidade, informadas essas pelos in- teresses difusos que alimentam a cadeia de conflitos urbanos e que mais se adensam, conforme seja a pressão das necessidades impostas pelas desigualdades sociais his- tóricas, das demandas da ordem global e dos avanços tecnológicos. O Direito Urba- nístico sai, portanto, da esfera do positivis- mo imobilizador e enquadra-se no processo político-social.
Em face dessa latitude do objeto do Di- reito Urbanístico, registram-se sob seu foco, direta ou indiretamente, as múltiplas dimen- sões da cidade:
• a física – como expressão de sua orde- nação territorial, envolvendo o seu traçado, os arruamentos, a ocupação, a sua configu- ração – retratada pelo desenho de sua rela- ção direta com a terra e com a natureza sob o prisma da horizontalidade, e, pois, pelos registros de seus cheios e vazios, e da verti- calidade, que recorta o céu;
• a dinâmica – como trama urbana na sua lógica de mobilidade funcional, estimulada pela cadeia de bens, serviços e rendas, isto é, essencialmente como palco de produção econômica;
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• a sociológica – como espaço de repre- sentação da conformação ou estratificação social, de expressão das relações sociais de produção e dos correspondentes graus de cidadania;
• a simbólica – como dado de cultura e valor transcendente da materialidade, como base para fruição de valores diversos por meio do espírito e dos sentidos, que captam e interpretam os símbolos, e como elemento de construção da memória: a cidade como espaço de evocação “que integra cultural- mente, dá identidade coletiva a seus habi- tantes e tem um valor de marca e de dinâmi- ca com relação ao exterior”, na expressão de Borja e Castells (1977).
Esses planos da cidade, conquanto dis- tintos pela natureza que os informa, são apreendidos pelo Direito Urbanístico a par- tir de tessitura única, de modo que a eventu- al percepção de um dos estratos terá os demais em posição subjacente, eis que in- dissociáveis como unidade. Não obstan- te a indissociabilidade das diversas di- mensões, as regulações são específicas, o que impõe a necessidade de harmoniza- ção dessa disciplina fragmentária no campo de aplicação.
Ora, sendo objeto do Direito Urbanístico a cidade multifacetada, tem-se que a esse ramo incumbe papel superlativo: desde a interferência na configuração do espaço pela definição de índices, escalas, coefici- entes, volumetrias, gabaritos, altimetrias, entre outros, passando pela aplicação de mecanismos de intervenção voltados para a conformação de usos, a distribuição de mobiliários urbanos e a garantia de infra- estrutura, tudo referenciado à cidade dinâ- mica, e pelo enfrentamento da relação de ex- clusão e inclusão de cidadania, com a po- tencialidade de conformação da geografia social da cidade, até a regulação das formas de proteção dos elementos urbanos que sus- tentam a memória e projetam a cidade sim- bólica.
A cidade simbólica é exatamente a que inspira o esforço do Direito Urbanístico
como núcleo da regulação da preservação do patrimônio urbano de valor cultural – a cidade como expressão poética de suas for- mas; a supracidade edificada na memória de seus viventes; a cidade intuída ou reve- lada por seus marcos referenciais e pela in- terpretação de sua linguagem; a cidade das utopias representadas por múltiplos ícones.
Se não há aqui abertura para a evocação da cidade simbólica na concepção poética, haja vista a filosofia deste estudo, longe es- tarão A poética do espaço, de Bachelard (1978), As cidades invisíveis, de Calvino (1990), e ou- tras, tantas vezes capturadas pela cadência da palavra, enquanto, muito próxima, sob as lentes da perplexidade, a visível cidade caótica da realidade brasileira, de cuja tra- ma ainda será possível extrair-se a teia da memória coletiva.
3. Direito Urbanístico e gestão do patrimônio cultural
O tema invoca, assim, em primeiro pla- no, a relação cidade física e cidade simbóli- ca, mas suscita o tratamento daqueloutras dimensões – dinâmica e sociológica. Além disso, mais especialmente, o patrimônio cultural há de ser tratado indissociadamente do natural, uma vez que são ambos expres- sões do patrimônio ambiental, em conso- nância com a tendência mais recente do di- reito contemporâneo, que, numa visão alar- gada, apreende o fenômeno ambiental em sua globalidade.
A proteção ambiental tem sido paulati- namente consolidada, desde as proclama- ções da Convenção da ONU, realizada em Estocolmo, em junho de 1973, passando pelo tratamento da Lei no 6.938, de 1981, pela constitucionalização da disciplina no capí- tulo específico da Carta de 1988, ao que se seguiu a Convenção da ONU de 1992 – ECO 92 –, realizada no Brasil, no Rio de Janeiro, e, especialmente redirecionada pela Agen- da Habitat de 1996, que definiu a orienta- ção de integração das agendas urbana e ambiental. Mais recentemente, a Lei no 9.605,
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de 12 de fevereiro de 1998, prescreve maior rigor relativamente à tutela do meio ambi- ente natural e cultural, impondo variadas sanções às pessoas físicas e às jurídicas cau- sadoras de dano a esse patrimônio. Isso para ater-se aos principais pontos de demarca- ção da linha evolutiva da disciplina.
A proteção ao patrimônio cultural, à sua vez, esteve sustentada no Decreto-Lei no 25, de 1937, recebendo interferência de conven- ções internacionais, notadamente a de Es- tocolmo, e de diplomas internos e vindo tam- bém a ser constitucionalizada em capítulo específico da Carta de 1988. A despeito da autonomia de tratamento no texto constitu- cional, a proteção ao patrimônio cultural perseguiu o caminho da integração com a política de meio ambiente natural na legis- lação ordinária, consoante evidencia a Lei no 9.605, de 1998.
Assim é que, nos dias atuais, discutir gestão das espécies patrimônio cultural, am- biência urbana, cidade simbólica e equipa- mentos e espaços de produção e fruição de cultura é, ao mesmo tempo, lidar com con- ceitos e estruturas do gênero meio ambien- te, posto ser o dado cultural integrante da noção matriz daquele. Daí a densidade da idéia de sustentabilidade da cidade como espaço de dupla fruição que inspira o mo- derno urbanismo: cidade material e cidade simbólica, fruíveis pelos múltiplos sentidos do homem nos planos biológico, espiritual e social.
Contudo, por razões metodológicas deste estudo, o interesse volta-se para o patrimônio cultural, no âmbito da políti- ca de cultura na interface com a gestão urbanística.
Não se desenvolverá aqui, todavia, a análise de resultados de experiências pon- tuais ou sistemáticas de política de patri- mônio no Brasil nem se estará a oferecer al- ternativa metodológica de formulação e im- plementação de políticas nessa seara – de reabilitação de centros históricos, de regu- lação e acompanhamento de zonas especi- ais de proteção, de tombamento de conjun-
tos urbanos especiais e implementação das respectivas diretrizes urbanísticas de pro- teção, de integração de núcleos históricos estagnados a outros de maior potencialida- de revitalizadora e de sustentabilidade e outras.
Procurar-se-á alinhar considerações an- teriores a essas questões, quiçá decorrentes, ou, ainda, simplesmente, discutir possibili- dades, que abrem caminhos, ou anteparos, que impedem os avanços no campo urba- nístico, com natural repercussão sobre a tu- tela do patrimônio cultural.
3.1. Da interface dos aspectos social e urbanístico
Não se pretende, com a associação cul- tura e urbanismo, sustentar que a política de cultura, cuja espinha dorsal é o art. 216 da Constituição da República, sede da nor- ma de reconhecimento da pluralidade de valores referenciais da identidade, deva migrar-se da ordem social para a seara ur- banística, mas buscar o necessário campo de intersecção desses domínios, tendo em vista as recíprocas interferências de cidade e cultura. A ênfase ao dado cultural como elemento de gestão urbanística dá-se, por- tanto, sem superação do caráter social da cultura, como objeto de interesse dos diver- sos agentes da sociedade, compreendida esta em sua base ampla e plural, como sua produtora e destinatária.
A Constituição da República, definindo as bases de organização das funções esta- tais, entre elas inclui a de promoção e defe- sa do patrimônio histórico, no Título VIII, “Da Ordem Social”, no Capítulo III, “Da Educação, da Cultura e do Desporto”, rela- cionando, na Seção II, “Da Cultura” (art. 216), os lineamentos específicos.
Tal enquadramento, seguido pelos Esta- dos e pelos municípios, vincula as políticas de memória e patrimônio cultural ao órgão responsável pela área de cultura, prática destacada em ordenamentos locais de refe- rência como Florianópolis, Salvador, Curi- tiba, Santa Catarina, São José dos Campos,
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entre outros, embora se verifique, em alguns casos, o atrelamento da gestão do patrimô- nio edificado ao núcleo de Política Urbana, o que, de resto, mostra a necessária interfa- ce da política de proteção desse patrimônio urbano de valor social com a atuação urba- nística que lhe deve emprestar a especifici- dade de seus instrumentos.
De outro lado, não se pode desconhecer a moderna função social do Direito Urba- nístico como núcleo de proteção dos excluí- dos por meio de mecanismos de legalização fundiária e regularização urbanística em re- lação a áreas urbanas deprimidas e de pro- moção da participação democrática da co- munidade na governança da cidade. Não obstante isso, a mera intersecção de política cultural e política urbana é suficiente, não se justificando a migração completa, ou seja, o abandono das especificidades de cada qual.
4. Cidade e cultura – recíprocas interferências e representações – o direito da cidade e o direito à cidade
Neste estreito campo, o binômio cidade e cultura ganha relevância e há de ser cono- tado segundo as recíprocas interferências.
A cidade, como produção do homem, materializa a cultura, expressa na forma de apropriação do espaço urbano, no traçado de suas vias, na construção de seus padrões tipológicos e estéticos, na formação de seus marcos referenciais, e configurada pelas suas variadas representações de segregação espacial, sob a pressuposta lógica de sua funcionalidade e hierarquia, e pelas formas de relação com a natureza. E mais, a cultura revela-se nitidamente na trama das tantas cidades que se erguem, harmônica ou con- flituosamente, a partir de uma ou mais cen- tralidades que projetam a unidade da urbe na sua composição plural, ou que impõem sucessivas exclusões de núcleos urbanos, desenhando a cidade marginal.
Fruto do agenciamento humano coleti-
vo, a cidade é representação dos valores e da estrutura da sociedade, com a sua força de hierarquia ou equalização, de inclusão ou marginalização. É, assim, a dimensão pri- mária da cultura espacializada e a repro- dução dos modos de vivência e de relacio- namentos.
Outros relevantes desdobramentos po- dem ser deduzidos do mesmo binômio ci- dade e cultura, além do constituído pela di- mensão de representação, como os decor- rentes do impacto que a atividade cultural impõe àquela em termos sociais, econômi- cos e urbanísticos.
Não há, pois, negar as recíprocas inter- ferências: a cultura produz a cidade pela materialização de seus valores e pelas prá- ticas de sua produção e consumo que reper- cutem no espaço urbano, e é aquela mesma que permite o mais generoso contato dos habitantes com a alma da cidade em seus diversos significados. De outro lado, a cida- de, além de ser, em si, dado cultural, gera e consome cultura a partir de seus espaços, suas ambiências e vias de acesso à fruição de valores culturais.
A propósito, lembra a economista Dra. Júnia Santa Rosa (Fundação João Pinheiro) que a cidade mantém uma complexa cadeia de produção de bens e serviços, de consu- mo desses, de relações e de interesses, da qual participa uma diversidade de agentes, sendo certo que a cultura alimenta essa ca- deia, de forma mais ou menos substantiva, de acordo com o grau de importância a ela atribuído pela sociedade e pelo Estado, da articulação intersetorial, do compartilha- mento entre o público e o privado e da ade- quação e da integração dos instrumentos de gestão.
Essa é a razão por que a cultura, quer tratada como elemento ideológico conforma- dor da cidade física, quer sob a perspectiva da produção e da fruição que potencializam aqueles reflexos, há de ser componente in- dispensável e estratégico no sistema de ges- tão urbanística, sem que implique a opção o acolhimento da idéia da cidade empresa
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projetada sob a égide das cadeias produ- tivas mundiais ou das que nelas se inspi- ram.
A cidade, fruto da construção coletiva, em perspectiva harmônica ou caótica, tra- duz a aplicação de um conjunto normativo, à sua vez, informado pela concepção políti- ca que o edita, pela visão paradigmática que amolda o arcabouço normativo e o comuni- ca à dinâmica processual de constituição da cidade e à esfera contenciosa sob a res- ponsabilidade do Juiz, que lhe deve fixar a definitiva exegese. Nesse sentido, a cidade não é só objeto do Direito, mas representa- ção deste, seja como elaboração, seja como atualização na esfera pública ou privada, seja como interpretação.
Desse modo, ao binômio cidade e cultu- ra, em cujos elementos, verificam-se dicoto- mias, soma-se o direito com sua força segre- gadora ou integradora, tendencialmente à primeira, diante da carência de legitimida- de social. É que, nesse trinômio, conquanto, em princípio, tenha-se no direito a potenci- alidade da força de amálgama para a for- mação da unidade positiva, pode, às vezes, projetar-se o papel do direito como elemen- to de desagregação das forças da cidade e da cultura.
Demais disso, o Direito, como núcleo conformador, circunstanciado por tempo e espaço, põe-se, naturalmente sob a tensão da permanência e da mutação, de resto, pre- sentes na sua dialética.
Registra-se que, conforme seja o objeto de tutela jurídica, as forças tensionais em relação ao Direito variam: se se tem em con- ta a tutela do patrimônio ambiental natural, as forças presentes são, de um lado, a de preservação e, do outro, a representada pe- las atividades de exploração dos recursos naturais ou de produção e a do núcleo de necessidades dos excluídos. No campo de proteção ao patrimônio cultural, vislum- bram-se, de um lado, a força da preserva- ção, e, de outro, especialmente, o investidor do mercado imobiliário, conquanto se tenha também a presença das necessidades, nota-
damente retratadas pelos cortiços em cen- tros históricos degradados.
Em ambos os casos, o segmento da tute- la pretende contrapor ao exagero do propri- etário a força simbólica do Direito no senti- do da alteração do conteúdo de poder do- minial, ou seja, da atenuação da relação de poder do proprietário. O segmento de resis- tência à tutela, por sua vez, pretende a valo- rização da propriedade como moeda de tro- ca, ou como base de sustentação de produ- ção de riqueza, ou simplesmente o acesso à terra pelo impulso da necessidade. Os seg- mentos de tutela devem, assim, ter olhar di- ferenciado para o problema, conforme seja o ponto tensional de seu contraste, para o emprego de mecanismos e estratégias ade- quadas a cada caso, sabido que o Direito deve encontrar formas de socorro às neces- sidades e de neutralização do egoísmo que escraviza o coletivo. O Direito há também de ser suficientemente razoável de modo a permitir que se identifiquem, mesmo em se- ara de conflituosidade, convergências para a garantia de superação do egoísmo e os antagonismos, explícitos ou sob máscaras de consensualidade, que ameaçam subju- gar o coletivo. É da seara do Direito, especi- almente tomado em sua versão democráti- ca, instrumentalizar a provisão de necessi- dades e aquela neutralização, sem embargo de ser a solução objeto de outras ciências. É dizer: não é preciso afastar-se do Direito para a solução que prestigie os valores que ele mesmo sustenta e que lhe inspiram a con- cepção.
Assinale-se que a integração social pe- los campos do Direito a partir da explora- ção de potencialidade criativa, interativa e dia- lógica da pessoa humana no sentido de ampliar a sua inserção autônoma no contexto como meio de minimização das privações é o tema desen- volvido com profundidade por Gustin (1999) em obra de leitura obrigatória para compreensão de metodologias inclusivas, que podem subsidiar a aplicação do Direi- to, com ênfase na seara das regulações ur- banísticas.
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5. Cidade e cultura: recíproca destruição – a contradição das forças de formação e deformação da cidade
À relação da recíproca constitutividade da cultura e da cidade opõe-se a da recípro- ca destruição.
Paradoxalmente, são os processos cons- trutivos da cidade que, também, ameaçam e destroem a cidade cultural, as referências da memória coletiva, as representações de mundo, o patrimônio arquitetônico, estéti- co, histórico, as ambiências e os cenários importantes da vida da comunidade, com repercussão direta ou indireta na geração e no consumo de bens e serviços culturais. De outra parte, é a própria cultura que investe contra a cidade física, impondo a substitui- ção de espaços de sociabilidade, sepultan- do, pelo inconsciente coletivo, formas e es- calas e formando novos mapas de geografia cultural que levam à deterioração espaços consolidados e à emergência de novas cen- tralidades pela relação funcional cultura e espaço, ou seja, pela consagração de novos locus de reforço à identidade. Mostras de destruição por essa via são a degradação de centralidades pela perda de função cultu- ral; a ocupação predatória de espaços ina- dequados para fruição da cultura de mas- sa; a pressão sobre os núcleos urbanos tom- bados, constituída pelo artificialismo da “indústria cultural”, entre outras.
Enfatizando a lógica construção–des- truição, que ora se projeta sobreposta ao bi- nômio cidade–cultura, Edésio Fernandes, em recente palestra para Grupo de Estudo de Direito Urbanístico da Faculdade de Di- reito da UFMG, em Belo Horizonte, lembra fatores importantes, como os processos es- peculativos, que, pelos caminhos da legali- dade, legitimam-se pelas previsões casuís- ticas; os processos que, infringindo a lei, são tolerados pela conivência ou pela inoperân- cia das instâncias sociais e formais de con- trole da cidade legal; e, enfim, pelos absoluta- mente marginais, por se desenvolverem fora do próprio âmbito da cidade legal, sem que
sobre eles se volvam os olhos do Direito ou da Administração, para planejá-los ou contê-los por meio de mecanismos de inclusão.
Conquanto não se possa dizer de uma sintonia das diversas forças potenciais e efe- tivas de formação da cidade e da cultura e de contraditória destruição daqueles obje- tos nas diversificadas manifestações, é pos- sível registrar, na dúplice relação, com graus diferenciados de poder, a presença de ato- res governamentais, econômicos e sociais que se projetam a partir de três esferas: o Estado, o mercado e a sociedade.
5.1. A força do Estado
Prioritariamente no âmbito do Estado, lo- calizam-se a política, o Direito e o aparelho de gestão.
De fato, o Poder Público, especialmente pela definição de regras urbanísticas, pelo planejamento e oferta de infra-estrutura e serviços, é um figurante importante entre as forças que constroem a cidade.
Sabe-se, porém, que, em grande margem, o caos urbano revela postura tímida do Es- tado, que impede mudanças mais profun- das e estruturais. Na contramão de avanços significativos, no plano político, a formula- ção normativa dos institutos enovela-se em contradições decorrentes das posições ide- ológicas conflitantes, incapazes de formar o consenso sobre bases coerentes. Ainda no plano do Direito, mostra-se o Estado ana- crônico e impotente para a construção da cidade ideal, na medida em que se aquila- tam a sua pouca ousadia no plano da apli- cação administrativa ou contenciosa daque- le e a persistência de cultura jurídica resis- tente à reformulação conceitual.
É verdade que o preceito, aplicado com preconceito, esclerosa-se. Só a inspiração principiológica o rejuvenesce porque o prin- cípio é pregnante e ideológico.
Sob esse ângulo, cabe ao Juiz o desafio de operar a permanente adaptabilidade do preceito às situações concretas, sob a luz dos princípios que protegem a regra contra a decadência da emanação nela contida e da
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proposta teórica que inspira o sistema nor- mativo. Contudo, não têm as normas prin- cipiológicas conseguido transmitir a força vivificante às regras para a alteração do sta- tus quo da ordem social em linha sucessiva de produção de novos consensos, sem radi- cais rupturas. Fraqueja o Direito quando não apreende, por exemplo, a dinâmica do pro- cesso de pressão sobre o patrimônio, e, em conseqüência, fragiliza-se a proteção: em resposta à ordem jurídica impotente, criam- se práticas de contraste, as quais, sem as mais sólidas bases de neutralização, levam a um quadro de conflito solucionado pelo próprio Direito tradicional, orientado por paradigma que resiste a novas matrizes de compreensão e visão.
De qualquer modo, o Direito exerce pa- pel fundamental na construção do espaço urbano e na preservação da cidade cultu- ral, papel de construção do caos ou da cida- de harmonizada. Daí a necessidade de que, sem se abandonar o processo histórico da lei, busque-se a perspectiva espacial de seus efeitos e que, por isso mesmo, tome-se, no mister de sua elaboração, a racionalidade territorial.
De outra parte, o equívoco e as disfun- ções do planejamento urbanístico, em mui- tos casos, ainda considerado como mera ação regulatória estatal, e a ausência de co- ordenação das relações intragovernamen- tais e intergovernamentais são fatores de ine- ficácia da política urbanística, em especial no tocante ao patrimônio cultural. A situa- ção está a invocar uma aprofundada dis- cussão, seja sob a tônica federativa, seja sob o ângulo da gerencialidade interna.
Na mesma linha, as rejeições recíprocas de Câmara Municipal e arenas de consenso social – duelo permanente entre democra- cia representativa e instâncias sociais dire- tas – são empecilhos a políticas mais pro- gressistas.
5.2. A força do mercado
O mercado, por sua vez, é forte agente de construção da cidade, em razão principal-
mente do domínio no que diz respeito ao acesso à terra. Tendo ele a hegemonia do espaço urbano, impõe a conformação da ci- dade segundo as regras do capital e a cate- gorização da cidadania cliente. De fato, o poder econômico, se não tangido a seguir rigorosas pautas, preordenadas pelo Esta- do e pela sociedade, esta por meio das ins- tâncias de que participa, tende a arvorar-se titular da conformação da cidade e até da sua desfiguração ou destruição, do que de- corre virtual ameaça ao patrimônio cultural pela predominância da ordem do mercado da terra e dos interesses econômicos. Acos- tumado com a garantia de sua prevalência, reage o mercado diante de posições que bus- cam o reequilíbrio de forças entre os demais atores de construção da cidade. Faz parte da reação do mercado, por exemplo, a sua malfazeja interferência no plano de produ- ção da norma, quebrando a vocação da lei para o relacionamento com a comunidade, imprimindo-lhe papel tático e projetando sua relação intrusa com a sociedade.
5.3. A força da sociedade
A sociedade, agente ativo potencialmen- te mais relevante da construção do espaço urbano e sua principal destinatária, é tam- bém a instância que diretamente mais so- fre os impactos da construção plural no âmbito dela própria, construção operada sob a necessária influência daquelas ou- tras forças.
Por isso mesmo, é necessário intensifi- car a inclusão efetiva e conseqüente do ci- dadão e da comunidade no processo políti- co de cidade, essencialmente o de edição do direito, para que a lei deixe de ser imposi- ção e ganhe o sentido de consenso, e o de tomada de decisões, especialmente no to- cante à aplicação dos recursos e ao reconhe- cimento de seus valores culturais. Em ou- tras palavras, a sociedade há de sair da po- sição prevalecente de sujeito passivo da construção da cidade para ser agente de mudança pela contribuição individual e coletiva de seus membros.
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A propósito, é preciso fazer logo a adver- tência de que, se a sociedade se mostra inep- ta como agente de construção e controle da cidade ou confusa em relação à realidade urbana que deseja, o mercado, de lógica in- variável, estará cada vez mais apto a capi- talizar as fragilidades da sociedade e do Es- tado (Legislativo, Judiciário e Executivo) e de outras esferas discursivas, como a im- prensa e a academia.
6. A política urbano-cultural e as estratégias de gestão
Vistas as recíprocas interferências de cultura e cidade, impensável uma adequa- da política de gestão urbana que não aco- lha a dimensão cultural do espaço em posi- ção estratégica e, do mesmo modo, afasta-se a política cultural divorciada da urbanística.
São os instrumentos do direito urbanís- tico que, especialmente, podem ser invoca- dos numa política urbano–cultural, isto é, para proteção, valorização e gestão do pa- trimônio cultural no seio do espaço urbano.
Na prática, algumas administrações vêm tentando, em meio a ácidas críticas, a conju- gação dos tradicionais institutos com ou- tros mais progressistas como possibilidade de solução para a complexidade do setor, circunstanciado pela intensa conflituosida- de dos interesses envolvidos, não faltando atitudes de apologização de determinados instrumentos urbanísticos em detrimento de outros.
De tudo resulta que os instrumentos mais ousados, seja pela resistência de proprietá- rios de imóveis urbanos, seja pelo desconhe- cimento da filosofia dos institutos, não fo- ram ainda amplamente assimilados na prá- tica urbanística, de modo que possam ser avaliados sob o enfoque dos resultados so- ciais e dos impactos no mercado imobiliá- rio, razão pela qual a sua adoção e sua apli- cação devem ser precedidas de aprofunda- dos estudos e discussões que permitam con- senso em torno de idéias que lhes servem de pressuposto.
Contudo, é preciso deixar claro que ne- nhum instrumento é, em si, solução e que a maior potencialidade se tem do conjunto deles. Eles não podem ser vistos com pre- conceito: o mais ingênuo pode-se perverter e o mais questionável pode-se converter, conforme a ideologia que o maneje e o con- trole que o garanta.
Demais disso, não se há de ter pudor no desnudamento da inspiração de determina- dos institutos. Ao contrário, as equações que os estruturam devem ser colocadas às ex- pressas, sob pena de incoerência e contra- dições e de artificialização de consensos que, por isso mesmo, não se sustentam.
Igualmente, não deve a atuação urbanís- tica local ser temerária, projetando soluções que extrapolem o âmbito da competência municipal ou, por outra via, desconsideran- do lacunas legislativas da órbita federal in- superáveis pelo poder autonômico do Mu- nicípio.
Não se há, no entanto, de desconhecer a consistente competência legislativa do Mu- nicípio em matéria urbanística, a qual se deduz da combinação dos arts. 30, I, II e VIII, e 182 da Constituição da República, ressal- tando-se, especialmente, a referente aos instrumentos que se relacionem com o di- reito de construir e com a definição do con- teúdo da função social da propriedade ur- bana. Essa compreensão tem garantido a alguns municípios a possibilidade de polí- ticas urbanísticas arrojadas, com a ousadia capaz de demarcar espaço real do poder lo- cal no concerto federativo, valendo o regis- tro de Porto Alegre como a mais enfática re- velação da afirmação da luta pela munici- palidade, no campo das políticas públicas participativas, tendente à construção de nova ordem político-social.
7. A função social da propriedade urbana como princípio orientador da atuação urbanística
Nesse sentido, o desenvolvimento de uma política urbano-cultural desafia, em
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primeiro lugar, a revisão do modelo tradici- onal de propriedade, que persiste no imagi- nário de grande parte da sociedade brasi- leira, e da conformação espacial e temporal- mente compreendida do correspondente direito, conquanto não se afastem outros fatores impeditivos ou facilitadores de sua viabilidade.
A Constituição de 1988, superando o pa- radigma da Constituição de 1934, no tocan- te à propriedade, além de acatar no espectro desta muito mais que o objeto material, pres- creve tratamento diferenciado para as diver- sas espécies e opera mudança conceptual profunda, cujo ponto nuclear é a integração da função social à esfera interna da propri- edade como componente qualificador des- sa, mais ou menos determinante de sua con- figuração, conforme seja o seu objeto (SIL- VA, 1995).
Barreira referenda essa verdadeira con- junção das noções:
“Estão, pois, os conceitos de pro- priedade e de função social agora amalgamados, não se concebendo um sem o outro. A função social não age (…) como elemento restritivo ou con- dicionador do livre exercício dos três elementos que compõem a proprieda- de, quais sejam, uso, gozo e disposi- ção (Código Civil Brasileiro, art. 524); incide, sim, sobre sua própria estru- tura, qualificando-a, dando-lhe uma nova natureza intimamente vincula- da ao Direito Público (…)” (1998, p. 22).
Depreende-se do novo ordenamento, pois, que nenhuma propriedade pode pre- valecer na versão exclusiva de poder de seu titular senão na de poder-dever. De fato, é preciso compreender que a Constituição de 1988 altera fundamentalmente o teor da re- lação dominial, impondo ao proprietário a obrigação de abrir a intimidade do domínio para nela introjetar a prática da função so- cial que a propriedade potencializa.
A propriedade não é assim valor em si nem a potencialidade do querer privado aprioristicamente legitimado. É poder vin-
culado a formas públicas de expressão do correspondente encargo funcional.
Ora, se qualquer coisa, em si, já deve ter uma função transcendente a si mesma, o que dizer da propriedade informada pela fun- ção social? Como propriedade privada pura, já tem uma função a cumprir que ul- trapassa o seu conteúdo estático, como ca- tegoria explicitamente funcionalizada em favor do coletivo, mais perde o seu valor apriorístico, para projetar, de forma vin- culada, sua conformação e dinâmica es- pecíficas.
Essa funcionalidade compreendida na dinâmica interna do domínio comunica, portanto, ao indivíduo a condição de pro- vedor direto da prestação positiva de sua propriedade em favor do coletivo e à socie- dade, o papel difuso de provisão, seja pela força de sua representação, seja de sua in- terferência nos processos comunicativos, seja ainda pela de sua atuação direta, espe- cialmente no controle.
O Estado deixa, assim, de ser provedor exclusivo da função social da propriedade, condição que sustentava a antiga lógica de restrição ao correspondente direito e a posi- ção hegemônica do Poder Público no cam- po social. Sem prejuízo de suas prestações positivas nessa seara e da atuação interven- tiva direta no campo dominial, maior desta- que se deve dar à necessária aplicação pelo Estado de instrumentos que assegurem a inversão da socialização dos ônus da rique- za ou da privatização dos bônus dos inves- timentos públicos, reservando-se-lhe a tute- la enfaticamente orientadora e sancionató- ria, objetivando o cumprimento da função social da propriedade pelo seu titular.
A propriedade urbana recebe tratamen- to mais arrojado na nova ordem. Nesse sen- tido, a política da cidade, engalanada em roupagem constitucional, traduz preocupa- ção fundamental com a ocupação democrá- tica do espaço urbano, o que desafia o Direi- to Urbanístico como inegável campo de re- gulação da função social da cidade a incor- porar tal princípio à base de sua racionali-
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dade, como pedra angular de toda sua cons- trução.
Por outro lado, fazendo intersecção em capítulos específicos, como os de meio am- biente e de política cultural, a política urba- na ganha perspectiva difusa, informada pela intensa conflituosidade subjacente e pela cidadania ativa.
Assim, a função social, como princípio de inclusão da cidadania, como atributo do domínio e como nota de transcendência da noção de propriedade das esferas egoísti- cas para os sucessivos planos metaindivi- duais, é também o parâmetro de relativiza- ção da conformação do direito em si. Os atri- butos internos do direito à propriedade – exclusividade, absolutividade e perpetuida- de, conotados como prerrogativas –, con- quanto mantidos em essência, ao rivaliza- rem espaço interno com a função social, de- vem ser ressemantizados a partir da nova visão paradigmática do Estado Democráti- co de Direito.
Tal relativização, sem desconsiderar a prefiguração da propriedade pela presença dos atributos elementares ampliados, afas- ta necessariamente o seu reconhecimento a priori em uma tal densidade uniforme e in- variável, independentemente do objeto do domínio. Um grande desafio é, portanto, o de superar essa noção apriorística.
Isso se explica pelo fato de que “seu con- torno, seu aspecto interno, seu conteúdo eco- nômico, sua senhoria, a extensão de suas faculdades ou direitos elementares ficam na dependência da natureza do bem que lhe serve de objeto” (LIMA, 1998).
Ocorre que, a despeito da ruptura con- ceptual que pretendeu o Constituinte ope- rar no tocante à propriedade, e da relativi- zação imposta ao seu conteúdo, a lógica de racionalidade social, de base estrutural de- sigual, jurídica e urbanisticamente, pouco se alterou, mantendo-se a compreensão re- trógrada da função social como elemento de defesa da propriedade histórica e não como fator de sua mudança, com naturais reações de grupos mais progressistas.
Aliás, é elementar a constatação de que é a propriedade urbana histórica que se colo- ca como mecanismo de proteção do status quo e vinga, na prática, como propriedade integral, de modo que o paradoxo continua explícito – espaço urbano limitado e propri- edade privada ilimitada, com o quadro so- cial decorrente.
Segundo Maricato, há um consenso que precisa ser desmanchado:
“…pois se trata de um ponto cego re- corrente e funcional –, o futuro quase nenhum de nossas cidades continua atrelado à cláusula pétrea do pacto histórico entre as classes dominantes brasileiras, esse o consenso de todos os consensos, o caráter intocável da propriedade do solo desde a fami- gerada Lei de Terras de 1850”(2000, p. 9).
O certo é que, em larga medida, o direito infraconstitucional continua com seu traço segregador e promete não romper facilmen- te a cadeia de exclusão social.
De resto, tem prevalecido o contraste – a propriedade, singular, intocável, única, ver- sus sociedade, binária, literalmente plural porque duas: a de excluídos e a de privilegi- ados.
No campo da preservação, o duelo é evi- denciado pela presença, de um lado, das forças progressistas que pugnam pela con- servação como forma de garantia da iden- tidade e como resposta à massificação da cultura decorrente da imposição de padrões artificiais e à mercantilização da cidade e, de outro, das forças transformadoras da ci- dade e, paradoxalmente, de mantença do seu status quo consistente na estruturação econômica centrada na propriedade priva- da do solo urbano protegido pelo liberalis- mo jurídico clássico.
Assim, a prática constitucional ainda não se garantiu, de modo que as matrizes do liberalismo econômico continuam forjan- do, com prevalência, os padrões de aplica- ção do instituto e a orientação dos desdo- bramentos do Direito em linha individua-
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lista, que esclerosa o sistema quanto mais o impede de incorporar os avanços deman- dados pela complexidade da era pós-mo- derna.
Não obstante esse nítido império do in- dividualismo, muitas municipalidades têm investido na efetividade constitucional, es- pecialmente no tocante à função social da propriedade, elemento orientador do Direi- to Urbanístico, e na invocação do paradig- ma democrático como informador do siste- ma, o que, na prática, tem levado à conflitu- osidade desses paradigmas – óptica do Ju- diciário versus visão de administrações mu- nicipais progressistas – que se sobrepõem relativamente a um mesmo objeto de foco.
7.1. Direito à propriedade e direito de construir
Uma questão importante diz respeito à relação direito à propriedade e direito de construir. Seria este ínsito àquele? Integra- ria o direito de construir o conteúdo do do- mínio? Grande avanço seria a definição cla- ra de autonomia desses direitos, o que po- deria sustentar a adoção de um modelo de política urbana capaz de interferir com mais radicalidade no quadro de exclusão.
A questão posta, contudo, é complexa e encontra soluções variadas nos ordenamen- tos jurídicos.
Em alguns sistemas, não se reconhece a edificabilidade como faculdade do proprie- tário, sendo o direito de construir tratado como concessão do Poder Público, que o constitui em favor daquele. Este é o trata- mento adotado, por exemplo, pela reforma italiana – Lei no 10, de 28 de janeiro de 1977 – e pelo direito português.
Outras legislações tratam a edificabili- dade como faculdade inerente à proprieda- de, vingando, como essência mesma desta, casos em que cabe ao legislador prescrever as condições para o exercício daquela fa- culdade, o que se insere no regime do licen- ciamento consistente na atuação declarató- ria do Poder Público relativamente ao aten- dimento daquelas prescrições para a valia
do direito preexistente, concepção que, de resto, concilia-se com antiga prática urba- nística interna.
Por fim, há ordenamentos nos quais, a despeito da configuração inequívoca de uma propriedade privada robusta, acolhe-se maior espaço de abrangência de um ônus dominial, justificando solução intermediá- ria nesse particular.
A leitura dos dispositivos constitucio- mais remete para o plano infraconstitucio- nal o efetivo delineamento do conteúdo in- terno da propriedade urbana, ao condicio- ná-la ao cumprimento da função social nos termos explicitados no Plano Diretor.
Há nisso induvidoso propósito de se amoldar a propriedade a um modelo de dupla face de domínio, a do bem considera- do em sua funcionalidade social que, em última análise, a publiciza; e a do bem pa- trimonial, que se há de conciliar, mesmo no campo de sua intimidade, com aquela, e que, por tal razão, sem se afastar da esfera do titular, migra também para o campo do di- reito público, sujeitando-se às regras desse.
No Brasil, a partir de 1988, vislumbra- se, como já dito, no tangente ao espaço ur- bano, o gizamento de uma propriedade sui generis.
Desse modo, parece revelar-se mais con- sentâneo com o modelo de propriedade atu- al o tratamento normativo do direito de cons- truir segundo uma concepção intermediá- ria, que o tome como inerência ao de propri- edade num patamar geral, único, que pode- ria corresponder, por exemplo, ao plano do terreno, figurando o excesso desse coefici- ente como direito do Poder Público, a ser objeto de concessão.
7.1.1. Direito de construir e direito de configuração da cidade
De qualquer que seja o ângulo de análi- se, seja partindo da imanência do direito de construir, seja do caráter autônomo deste, seja da perspectiva conciliadora de uma fa- culdade a ser reconhecida em relação ao patamar comum, com a titularidade do Po-
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der Público considerada no tocante ao res- tante potencial, tem-se que a compreensão não pode interferir na da titularidade do direito de configuração da cidade. A even- tual titularidade privada do direito de cons- truir não privatiza o direito de configura- ção da cidade nem de fruição desta como espaço coletivo.
Cabe à coletividade e ao Poder Público projetar a configuração da cidade por meio das leis oriundas de processos democráti- cos de produção de consenso, do planeja- mento e da gestão da política urbana, ga- rantida a integração intra-institucional e interinstitucional e o compartilhamento com as múltiplas instâncias sociais e eco- nômicas.
Essa mesma titularidade deve susten- tar a esfera do controle, seja pelo governo, seja pelas instâncias democráticas, na bus- ca da efetivação da função social da cidade.
7.2. Propriedade do bem cultural
No camspo da preservação, um desafio importante é o que diz respeito à definição da propriedade do bem cultural. Sustenta Giannini (Apud ÁVILA, 1994, p. 666-) a du- pla conotação da coisa de valor cultural: como entidade imaterial, é bem público, e como bem patrimonial, liga-se ao seu pro- prietário. Adverte que esses bens, inconfun- díveis pela natureza, que assim convivem, devem ser apreendidos, contudo, em pro- funda conexão, tendo em vista a unicidade de seu suporte material. O titular do bem patrimonial não é sujeito ativo de poder em relação ao bem cultural correspondente, bem de fruição pública. É sujeito passivo de de- ver, de obrigação, de encargos que, em últi- ma análise, limitam o conteúdo do seu po- der ativo incidente sobre a patrimonialida- de. Essa a grande construção elaborada pelo doutrinador italiano.
Explica o autor que ao particular inte- ressa a integridade patrimonial; ao Poder Público, a integridade física que sustenta o testemunho, a figuração, o valor e garante a fruição deste.
Desenvolvendo essa concepção, pode-se afirmar que o bem material que suporta um bem cultural de interesse social não se colo- ca como objeto de uma propriedade aprio- risticamente concebida como um conteúdo potencial à mercê do querer privado, mas de uma propriedade limitada à sua patri- monialidade realizada. Só poderá ser obje- to de uma propriedade potencial se esta for compatível com a funcionalidade cultural.
Dessa compreensão decorrem conseqüên- cias diferentes da aplicação de institutos ur- banísticos de proteção. Vale dizer, por exem- plo: se o regime de tombamento for incom- patível com a garantia patrimonial do bem já efetiva no momento de sua incidência, cabe ao Poder Público promover a desapropria- ção competente, o que se admite como exce- ção. A desapropriação, importando na am- pliação da propriedade pública, deve ser assumida como encargo de todos, mediante indenização sustentada pelo princípio da solidariedade social. Se a situação for de restrição a direito com afetação significati- va do equilíbrio dominial, a eventual com- pensação ao proprietário por perda efetiva parcial decorrente de gravame direto do conteúdo patrimonial, conquanto hoje en- quadrável no sistema de indenização geral, haverá de ser pensada como ônus do con- junto das propriedades, e não dos contribu- intes em geral, afastando-se a antiga e falsa noção de que a todos eles cabe assumir os encargos. Ora, nem todos são proprietários. Por outro lado, não se estará, como visto, em face de situação de ampliação da proprie- dade pública, a justificar a chamada geral, mas de redefinição da densidade do con- teúdo dominial específico, que deverá ser equalizada no campo dos proprietários. Nesse sentido, viável seria a previsão de uma espécie tributária que incluísse em sua sistemática a lógica desse financiamento como encargo do conjunto delas, o que po- deria ser viabilizado mediante o direciona- mento para um fundo de equalização da propriedade privada para fins de cumpri- mento da função social, em cujo bojo se en-
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quadra a cultural. Isso, para efeito de com- pensações parciais, consoante já explicitado. Por outro lado, se o regime de tombamen- to for incompatível com a situação futura do bem, estar-se-á tão-somente diante de um encargo potencializado pela própria propri- edade e que haverá de ser suportado por
seu titular.
Outros defendem simplesmente a propri-
edade privada do bem cultural imaterial quando o bem patrimonial que lhe dá su- porte se encontra na esfera privada.
Não se coaduna com a idéia de função social a escravização do bem imaterial à es- fera privada. Dada a inseparabilidade, a que já se aludiu, o titular do bem patrimonial há de ser considerado como um curador da- quele, sujeitando-se, enfaticamente, a regi- me público consubstanciador da proteção.
8. A emergência de edição do Estatuto da Cidade para consolidação das políticas locais
Não raras vezes, as ambigüidades escu- samente reconhecidas no tocante à matriz constitucional de definição de competênci- as – diga-se: apesar do traço nítido de maior generosidade do Constituinte com os muni- cípios – têm socorrido interesses conserva- dores que tentam erguer muralhas de prote- ção da propriedade para mantê-la confina- da na seara do Direito Civil. Em outras situ- ações, esquemas de neutralização do poder local, por meio da postergação da eficácia constitucional engendrada pelos artifícios da inoperância do legislador federal, têm de- tido os propósitos de alteração do status quo.
Não se vislumbrando a transferência do espaço urbano para a esfera do Poder Pú- blico como alternativa para a superação da ordem de exclusão, há de se desafiar não só a lei como a sensibilidade intelectual, social e política para a necessidade de novas solu- ções, como: dissociação dos direitos de tro- ca dos de uso, do direito de propriedade do de construir; do direito de propriedade do de superfície e, por que não dizer, criação
de novos instrumentos urbanísticos tribu- tários que pressuponham equações compen- satórias capazes de levar em conta, por exemplo, base territorial e densidade urba- na, como forma de efetivação do direito de todos à cidade, e outras ao alcance do arrojo dos tributaristas.
Em face dessa realidade, é urgente a edi- ção do Estatuto da Cidade (arts. 24, I, 21, XX, e 182, § 4o da Constituição da Repúbli- ca) para a definição dos pontos, que, guar- dando relação direta com o direito de pro- priedade, têm-se constituído em nós górdi- os do sistema, especialmente pelas interpre- tações mais conservadoras: transferência do direito de construir, natureza pública do bem cultural, autonomia e concessão do direito de superfície e outros que se colocam na base de alguns institutos urbanísticos, incluídos os sancionatórios, enfim, as normas gerais de “desenvolvimento inte- rurbano” e o “delineamento para o desen- volvimento intra-urbano”, no dizer de Sil- va (1981, p. 58).
Uma adequada base normativa, contu- do, haverá de ser conjugada com outras con- dições de sustentabilidade de uma política urbana inclusiva: a intensificação dos pro- cessos discursivos, a sinergia dos movimen- tos sociais, o investimento em pesquisas para suporte de alternativas de intervenção no quadro de realidade, inversão de priori- dades no campo dos investimentos públi- cos e integração dos diversos atores envol- vidos na dinâmica urbana por meio de ca- mais legítimos e equalização das forças em contraste, como forma de garantir a forma- ção de consensos em plano de equilíbrio.
9. Comentário sobre a versão provisória do Estatuto da Cidade
O projeto de lei que visa à regulamenta- ção dos arts. 182 e 183 da Constituição da República e estabelece as diretrizes da Políti- ca Urbana – as por ele intiluladas de normas de ordem pública e de interesse social do uso da propriedade urbana – encontra-se em fase
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final de tramitação no Congresso Nacional, na versão da Emenda Substitutiva, de 28 de novembro de 2000, ao Substitutivo da Comis- são de Desenvolvimento Urbano e Interior.
A proposição estrutura-se em cinco ca- pítulos, a saber: I – Diretrizes Gerais; II – Dos Instrumentos da Política Urbana; III – Do Plano Diretor; IV – Da Gestão Democrá- tica da Cidade; V – Disposições Gerais.
Do ponto de vista do seu conteúdo, apre- senta-se como um conjunto de normas dis- ciplinadoras de instrumentos urbanísticos, só assumindo a linha relativamente discur- siva e ideologizada no capítulo das “Dire- trizes Gerais”, não obstante se defina como Estatuto da Cidade.
O Capítulo I, fiel ao objeto central da Po- lítica Urbana definida na Constituição – or- denação do pleno desenvolvimento das fun- ções da cidade e da propriedade urbana –, reprisa-o, ao fixar as múltiplas diretrizes que orientarão aquela política. Tais diretrizes são: garantia do direito a cidades sustentá- veis; gestão democrática; cooperação entre Estado, mercado e sociedade civil; planeja- mento do desenvolvimento, da distribuição espacial da população e das atividades eco- nômicas do Município; oferta de equipamen- tos urbanos e comunitários e de serviços públicos; ordenação e controle do solo; inte- gração e complementariedade entre ativida- dês urbanas e rurais; adoção de padrões de produção e consumo e de expansão urbana compatíveis com a sustentabilidade global do Município; distribuição de benefícios e ônus da urbanização; adequação de instru- mentos de política e de gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano; recu- peração de investimentos urbanos; proteção, preservação e recuperação do meio ambien- te natural e construído; audiência do poder público e da população interessada quanto à implantação de empreendimentos ou ati- vidades potencialmente negativos; regula- rização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda; simplificação da legislação urbanística e isonomia de condições para agentes públi-
cos e privados em empreendimentos e ativi- dades de urbanização.
Ao dispor sobre “ gestão democrática da cidade”, o projeto revela-se bastante tímido, limitando-se a mencionar os instrumentos mais comuns, encontradiços em experiên- cias exitosas de administrações municipais, como orçamento participativo e assemelha- dos, sem grandes inovações.
No rol dos instrumentos gerais e especí- ficos de Política Urbana que restringem ou limitam o exercício do direito de propriedade urbana, o projeto relaciona os planos nacio- mais, regionais, estaduais, metropolitanos, microrregionais e municipais, entre estes va- lendo enfatizar o Plano Diretor e o orçamento participativo; os institutos tributários e finan- ceiros; o estudo prévio de impacto ambiental e o estudo prévio de impacto de vizinhança, além de outros institutos jurídicos e políticos, que, com maior ou menor interesse para este estudo, são aqui invocados: desapropriação; servidão administrativa; limitações adminis- trativas; tombamento; unidades de conserva- ção; zonas especiais de interesse social; con- cessão de direito real de uso; usucapião espe- cial de imóvel urbano; direito de superfície; direito de preempção; outorga onerosa do di- reito de construir e de alteração de uso; trans- ferência do direito de construir; operações ur- banas consorciadas; regularização fundiária; assistência técnico–jurídica gratuita; referen- do popular e plebiscito.
Uma breve leitura das disposições suge- re ter o legislador federal assimilado impor- tantes proposições dos movimentos sociais, não sendo possível, no entanto, vislumbrar- se a partir delas solução de maior radicali- dade para o caos urbano.
De outra parte, o projeto parece invocar papel mais ativo das municipalidades, seja pela generalidade dos comandos, seja pela ênfase à importância da instância, sobre cuja competência não parece avançar.
9.1. Plano Diretor
Prestigiando o planejamento urbanísti- co, o legislador ordinário enfatiza a impor-
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tância do plano diretor e estende a obrigato- riedade de sua elaboração para as cidades integrantes de regiões metropolitanas e de aglomerações urbanas, ou inseridas em áre- as de especial interesse turístico ou de in- fluência de empreendimentos ou atividades de impacto ambiental mais abrangente, além de explicitar a necessidade de sua elabora- ção como pressuposto da aplicação dos ins- trumentos previstos no § 4o do art. 182 da Constituição da República.
Por outro lado, a proposição sugere mai- or dinâmica na aplicação do instrumento, estabelecendo a obrigatoriedade de sua re- visão a cada 10 anos e de adoção de meca- nismos de compartilhamento da população na sua elaboração e na fiscalização da im- plementação das diretrizes nele previstas.
9.2. Instrumentos sancionatórios
O projeto trata de modo especial, pela necessidade da disciplina em nível federal, dos instrumentos definidos no art. 182, § 4o, da Constituição da República, que se dis- ponibilizam no âmbito da política urbana como sanções pelo não-uso do solo urbano, não mais uma legítima manifestação de do- mínio, mas conduta passível de repressão. São as sanções: parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, determinando-se os critérios de aferição de subutilização, a obri- gação de notificação ao proprietário para o cumprimento da obrigação, além dos pra- zos mínimos a que este se sujeitará; IPTU progressivo no tempo como medida sucessi- va, definindo-se alíquota máxima e prazo de aplicação da medida sob pena de desa- propriação; a desapropriação com pagamentos em títulos, prevendo-se critério de apuração da indenização, obrigação de aproveitamen- to do imóvel pelo Poder Público em prazo determinado.
9.3. Consórcio imobiliário
O substitutivo apresenta, ainda, como mecanismo de viabilização de aproveita- mento de imóvel atingido pela obrigação a que se refere o art. 182, § 4o, da Constituição
da República, o consórcio imobiliário consis- tente na transferência do imóvel ao Poder Público para futura compensação ao pro- prietário por meio de unidades imobiliárias urbanizadas ou edificadas, em valor corres- pondente ao do imóvel antes da edificação das obras. A disciplina guarda a inspira- ção da requisição urbanística, não tratada na proposição, conquanto se preveja apli- cação mais restrita do consórcio imobiliá- rio. A requisição urbanística pode incidir sobre várias propriedades e viabiliza-se por ajuste entre o Poder Público e os proprietá- rios visando à implementação, por aquele, de projeto urbanístico, que será ressarcido mediante incorporação de parte dos terre- nos ao seu patrimônio, para revenda.
9.4. Usucapião especial de imóvel urbano
A proposição cuida ainda destacada- mente da usucapião especial de imóvel urbano de até 250 m2, de propriedade particular, pre- vendo-se a possibilidade de áreas urbanas com mais de 250 m2 serem usucapidas cole- tivamente, hipótese em que o Juiz, na sen- tença, atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, salvo acordo escrito entre os condôminos. O condomínio assim cons- tituído é indivisível, não sendo passível de extinção, ressalvada hipótese prevista.
Dá-se à ação o rito sumário e faz-se am- pliação da legitimidade ativa: possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originá- rio ou superveniente; possuidores em esta- do de composse, e associação de morado- res, quando autorizada pelos representados para atuar como substituto processual.
A proposição trata da alteração da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, sobre registros públicos, para dispensar a regula- ridade do parcelamento do solo ou da edifi- cação como condição para o registro da sen- tença declaratória da usucapião.
9.5. Concessão de uso especial para fins de moradia
Trata-se de polêmico instituto envolven- do imóvel público cujo uso poderá ser con-
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ferido ao possuidor individualmente consi- derado ou a uma coletividade, mediante tí- tulo administrativo ou sentença judicial, caso ocorra omissão ou recusa por parte da Administração Pública.
Prevê-se que, em caso de ocupação de área de risco, o Poder Público garantirá uso especial em outro local. Ao instituto comu- nicam-se a filosofia da usucapião e algu- mas de suas regras, assentando-se os dois na segurança da posse e na idéia da função social desta, conquanto não se confundam. A usucapião é forma de aquisição do domí- nio de bens privados, e a concessão de uso especial, de outorga de uso de bem público, não obstante se tenha sustentado a conces- são de direito real de uso não apenas para facilitar o uso do solo público, mas também de terrenos particulares como se fora um ins- tituto análogo ao direito de superfície, con- forme lembra Weigand (Apud FERNAN- DES, 2000, p. 304).
O título ou a sentença são documentos suficientes para as anotações no Cartório de Registro de Imóveis, que independerão da regularidade do parcelamento do solo ou da edificação.
Relativamente aos contratos de conces- são de direito real de uso no âmbito de pro- gramas e projetos habitacionais de interes- se social desenvolvidos pela Administração Pública, comunica-lhes a proposição o ca- ráter de escritura pública e de título de ga- rantia de contratos de financiamentos habi- tacionais, de aceitação obrigatória.
Por fim, prescreve-se a extinção da con- cessão como sanção em caso de desvio de destinação do bem e de remembramento dos imóveis pelos concessionários, devendo ser a medida objeto de averbação no Cartório de Registro, conforme proposta de alteração da Lei de Registros.
9.6. Direito de superfície
O projeto prevê a inclusão no ordena- mento jurídico pátrio do direito de superfície como fruto do desmembramento do direito de construir do de propriedade do terreno,
mantendo-o, contudo, na esfera do proprie- tário, que poderá concedê-lo, gratuita ou onerosamente, ao superficiário por via con- tratual e mediante escritura pública, reser- vando-se a este direito sobre a construção durante o prazo ajustado. Sustentam alguns que seu arremedo foi tratado no Decreto-Lei no 271, de 28 de fevereiro de 67, com a con- cessão de direito real de uso, que é o
“contrato pelo qual se transfere, a tí- tulo real, a fruição temporária, por prazo certo ou indeterminado, de ter- reno público ou particular, remune- radamente ou não, para fins específi- cos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social” (LIMA, 1998).
O professor da UERJ, contudo, critica a confusão entre os institutos, apontando ele- mento básico de distinção:
“É que no direito de superfície ocor- re a suspensão ou interrupção dos efei- tos da acessão (tudo aquilo que acede permanentemente ao solo passa a ser da propriedade do dono do solo, por mais valioso que seja o incremento, o que significa dizer que o incremento é propriedade do superficiário, sendo, portanto, hipotecável. Tal não aconte- cenaconcessãododireitorealde uso”.
Ocorre, porém, que o tratamento dado pelo direito positivo aos institutos acaba por comunicar-lhe quase identidade, especial- mente em face da ampliação das garantias da concessão de direito real de uso.
De acordo com o projeto, a concessão do direito de superfície transfere ao superficiá- rio o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno de confor- midade com a legislação urbanística, sendo vinculante a destinação convencionada.
A concessão do direito de superfície é passível de transmissão intervivos ou causa mortis, submetendo-se à condição resoluti- va do desvio de finalidade.
Segundo o regime previsto no projeto, o superficiário responde pelos encargos e tri-
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butos incidentes sobre a propriedade super- ficiária e pela eventual parcela devida pela ocupação efetiva do terreno, salvo conven- ção em contrário.
Extinta a concessão ordinariamente ou extraordinariamente, o proprietário do ter- reno recuperará seu pleno domínio bem como das acessões e benfeitorias, que, até entao, colocavam-se na esfera de proprie- dade do superficiário, exceto se se conven- cionou outra solução.
Em caso de alienação do terreno ou do direito de superfície, assegura-se preferên- cia ao superficiário ou ao concedente, res- pectivamente.
Retomando-se as considerações acerca da concessão de direito real de uso e as per- tinentes ao direito de superfície, observa-se distinção entre os institutos: o primeiro tem aplicação mais restrita e institui a garantia de fruição, enquanto o direito de superfície, assentado sobre a idéia básica da separa- ção negocial do direito de construir do di- reito de propriedade do solo, está vocacio- nado à ampla dinamização daquele medi- ante a garantia da titularidade do objeto de seu exercício.
9.7. Preempção
Cuida-se do direito de preempção ou pre- ferência, instituto que tem incidência sobre o atributo da livre disposição do bem. O ins- trumento jurídico, usual na França, assegu- ra ao Poder Público preferência para aqui- sição de imóveis urbanos incluídos em áre- as definidas na Lei de Uso que, postos em transação como objeto de alienação onero- sa entre particulares, poderão ser compra- dos pelo preço arbitrado judicialmente.
Trata a proposição de vinculá-lo, con- correntemente, à exigência de delimitação de áreas de sua incidência no Plano Dire- tor, com o que se enfatiza o seu atrelamento ao planejamento urbanístico, e ao cumpri- mento de uma das seguintes finalidades: re- gularização fundiária ou constituição de reserva de terrenos, ordenamento e direcio- namento da expansão urbana de modo a
permitir ao Poder Público maior facilidade de intervenção no espaço da cidade, desen- volvimento de programas e projetos habita- cionais de interesse social, proteção do meio ambiente natural e cultural, implantação de equipamentos urbanos e comunitários e es- paços de lazer, e outras metas públicas ou sociais definidas no Plano Diretor.
O projeto cuida do procedimento, que en- volve ações do proprietário e do Poder Pú- blico, desde a notificação a cargo daquele, acompanhada da proposta de compra, pas- sando pelo edital do Poder Público conten- do o aviso da notificação, até a operação decorrente do exercício da preferência ou, em caso de liberação do proprietário para a alienação a terceiros nas condições da pro- posta e de efetiva venda, até a apresentação do instrumento público correspondente.
9.8. Outorga onerosa do direito de construir
O projeto, respeitando a competência mu- nicipal para a fixação de coeficiente de apro- veitamento básico único ou diferenciado dentro da zona urbana, prescreve que este seja definido no Plano Diretor, o qual pode- rá prever áreas nas quais o direito de cons- truir poderá ser exercido acima do coefici- ente básico, até o limite previsto. Dissocian- do do direito de propriedade o direito de construir além do coeficiente básico, reco- nhece a titularidade do excedente ao Poder Público, que poderá outorgá-lo onerosamen- te ao beneficiário, de acordo com lei munici- pal disciplinadora, vinculando-se os recur- sos auferidos às mesmas finalidades que sustentam o direito de preempção. Desse modo, mantém-se sob regime de licencia- mento o direito de construir no limite do coeficiente básico, a pressupor a imanência deste ao de propriedade, transferindo-se para o regime de concessão o direito de cons- truir em patamar excedente.
9.9. Transferência do direito de construir
Cuida o projeto de matéria correlata, qual seja, a de transferência do direito de construir. Em princípio alçada à competência da
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União, a disciplina é delegada à lei munici- pal, que cuidará não só de autorizar o pro- prietário de imóvel urbano, privado ou pú- blico, a exercer em outro local o direito de construir inviabilizado, como também a ali- ená-lo, mediante escritura pública. A trans- ferência é, assim, uma operação entre o titu- lar do direito e o adquirente, previamente autorizada pelo Poder Público municipal mediante lei.
9.10. Outorga onerosa de alteração de uso
Segundo o Projeto, o Plano Diretor pode fixar ainda áreas passíveis de alteração de uso a ser concedida mediante contraparti- da do beneficiário, sendo a outorga tratada em lei municipal específica que, como se viu, disciplinará também a relativa ao direito de construir.
9.11. Operação urbana consorciada
Em outra vertente, cuida-se da operação urbana consorciada, instrumento de gestão emparceirada, aplicável em áreas pré-deter- minadas pela legislação municipal, à sua vez, baseada no Plano Diretor.
Na proposição, define-se operação urba- na consorciada como o conjunto de inter- venções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários perma- nentes e investidores privados, objetivando alcançar, em área determinada, transforma- ções urbanísticas estruturais, melhorias so- ciais e valorização ambiental.
O que se coloca como motivação ao seg- mento privado relativamente ao instrumen- to é a filosofia de flexibilização dos requisi- tos gerais da legislação urbanística e a pos- sibilidade de regularização de situações des- conformes com o direito.
A operação deve ser aprovada em lei es- pecífica, a qual conterá o seu plano, que in- cluirá, entre outras previsões, as relativas à contrapartida e à forma de controle da ope- ração, necessariamente compartilhado com a sociedade civil.
Prevê-se a possibilidade de emissão pelo
Município, nos termos da lei específica da operação urbana, de certificados de poten- cial adicional de construção, que serão alie- nados em leilão ou utilizados no pagamen- to das obras necessárias à operação. Serão, contudo, conversíveis em direito de cons- truir exclusivamente na área da operação, para superação de padrões estabelecidos pela legislação de uso e ocupação do solo, até o limite flexibilizado pela lei da operação.
9.12. Estudo de impacto de vizinhança
Por fim, cogita o projeto do estudo de im- pacto de vizinhança, medida altamente posi- tiva de controle a priori de empreendimen- tos e atividades potencialmente impactan- tes da vizinhança, os quais serão especifi- cados em lei municipal.
O EIV, que não substitui o estudo prévio de impacto ambiental quando exigido, deve abranger a análise de questões como gera- ção de tráfego, demanda por transporte pú- blico, reflexos na paisagem urbana, relação com o patrimônio natural e cultural, entre outros, e assegurar, em sua elaboração, a audiência da comunidade afetada.
10. Instrumentos urbanísticos aplicáveis para fins de preservação
10.1. Tombamento
Entre os instrumentos urbanísticos que podem ser cogitados no contexto de uma po- lítica urbana voltada para a preservação do patrimônio cultural, destaca-se naturalmen- te o tombamento. Este, porém, deve estar associado a outros mecanismos, como as zonas de proteção, preempção, transferên- cia de direito de construir, desapropriação, inventário e outras formas de acautelamen- to e gestão urbanística do patrimônio.
Sabe-se que o arrojo das construções ju- rídico–urbanísticas não conseguiu superar o instituto do tombamento como alternativa mais eficaz para a proteção do patrimônio cultural, podendo-se atribuir, não só no pla- no interno, mas, também, no internacional,
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à engenhosidade do instrumento a preser- vação da herança das gerações passadas. É o tombamento, consagrado sob diversos ró- tulos, que se coloca como o último anteparo a deter a força destruidora do “progresso”. Contudo, se não se pode desprezar a poten- cialidade e mesmo a efetividade do tomba- mento, é verdade também que ele há de ser defendido contra o esclerosamento natural dos institutos que não se aprimoram em face da realidade, mais dinâmica e mais com- plexificada. Por isso, ele deve ser revisto e inserido no conjunto de instrumentos urba- nísticos, para ganhar a sinergia desses e romper com a perspectiva mais estática. Essa mesma sinergia entre os instrumentos há de ser também considerada como indicativa da necessidade de relação dialógica dos bens sob proteção com os de seu entorno e da área mais abrangente de sua influência, segun- do diretrizes apropriadas.
Entre nós, o instituto, permanecendo inalterado em sua trajetória de cerca de 63 anos, é, ainda, aplicado tendo em vista ma- trizes paradigmáticas já ultrapassadas, embora tenha sido a sua formulação, ao seu tempo, marco de avanço no tocante ao po- der do Estado no campo dominial privado.
Não obstante as profundas transforma- ções conceptuais acerca da propriedade, o impacto da economia e cultura globaliza- das, com ameaça da identidade e imposi- ção de modelo de desenvolvimento preda- tório, e o paradigma democrático a impor novas relações de poder e gestão, o tomba- mento não foi submetido a um grande deba- te e continua tratado e resistido pela lógica do liberalismo econômico. Assim é que se impõe uma ampla discussão, que se volte menos para os aspectos de sua construção, de seus efeitos, de suas espécies, de seu ob- jeto, mais para as questões que envolvem sua interface com a propriedade.
Este, porém, não é o espaço para a apo- logia do tombamento nem tampouco para a polemização de teses que se colocam na cen- tralidade dos estudos dedicados ao tema. É propósito, tão-só, buscar aqui a sinalização
desses pontos e a convergência dos diver- sos institutos como mecanismos de gestão urbanística.
Veja-se, à vôo de pássaro, a possibilida- de de tal convergência, isto é, a aplicabili- dade de alguns deles ao objetivo comum da preservação do patrimônio cultural no seio da política urbanística, sem prejuízo dos tra- dicionalmente adotados e conhecidos.
10.2. Direito de superfície
O instrumento pode ter cabida no cam- po da preservação, especialmente para a composição de ambiências, para garantir a ocupação adequada de lotes vagos em con- juntos urbanos especiais cujos proprietári- os não disponham de recurso para edificar e para reconstruir imóveis demolidos.
10.3. Edificação compulsória e IPTU progressivo
Enquanto o parcelamento compulsório se presta mais ao propósito de induzir a densificação urbana, o IPTU progressivo e a edificação compulsória, instrumentos ur- banísticos de caráter sancionatório, pode- rão ter aplicação em relação a conjuntos ur- banos de interesse cultural, como alternati- va para recomposição de ambiência.
10.4. Preempção urbanística
O Decreto-Lei no 25/37 já prevê a aplica- ção de instrumento semelhante a bens tom- bados, assegurando ao Poder Público a pre- ferência para aquisição de imóveis assim re- conhecidos que se disponibilizam no mer- cado. Pode ser conjugado esse direito de preferência para fins de preservação previs- to no Decreto-Lei no 25/37 com a preemp- ção urbanística, esta especificamente volta- da para a finalidade de constituição de re- serva de terrenos públicos, de modo a ga- rantir, em última análise, maior poder de interferência do Poder Público no espaço urbano. Vale dizer, preempção em rela- ção ao bem tombado e, por força da legis- lação urbanística, em relação a terrenos de entorno.
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10.5. A operação interligada
Podendo ser tomada como variação das Operações urbanas, a operação interligada constitui a possibilidade de alteração de determinados parâmetros urbanísticos de- finidos em lei nos limites e na forma por ela também previstos, mediante contrapartida dos interessados. O instituto é compatível com a valorização do patrimônio cultural, cabendo à lei instituí-la especificamente para esse fim, estabelecendo as condições de sua implementação.
Segundo Lima (1988), a contrapartida nas operações interligadas pode assumir a forma de: a) recursos para fundo municipal de desenvolvimento; b) obras de infra-estru- tura urbana; c) terrenos e habitações desti- nados a populações de baixa renda; d) re- cuperação do meio ambiente ou de patrimô- nio cultural.
Entre nós, as rotuladas negociações ur- banas, conquanto não estejam suficiente- mente disciplinadas no plano legal, são um arremedo de operação interligada, sendo idêntico o arranjo subjacente a esses insti- tutos.
Trata-se de mecanismo de flexibilização de regras urbanísticas mediante compensa- ção para a coletividade, na forma de contra- tualização.
O grande desafio é a adequada regula- ção do instituto, que tem ao centro a questão do próprio direito de construir.
10.6. Urbanização consorciada
Trata-se de instrumento apoiado na ló- gica de parceria entre a iniciativa privada e o Poder Público, para, sob a coordenação deste, viabilizar a implementação de proje- tos urbanísticos, podendo ser adotada para fins urbanístico–culturais, especialmente para viabilizar projetos mais complexos de revitalização, por exemplo.
10.7. Solo criado
Define-se objetivamente como tal “a área adicional de piso artificial, não apropriada
diretamente sobre o solo natural” (LIMA, 1998).
Do ponto de vista prático, constitui-se em mecanismo de controle do adensamento urbano, a par de propiciar a ampliação das áreas públicas por essa forma de incorpora- ção e de deter a pressão para assunção soci- al dos ônus dos investimentos privados.
Pressupondo a adoção de coeficiente único de aproveitamento do solo – que ga- rante tratamento isonômico aos proprietá- rios –, equivale ao excesso de construção, superior ao limite estabelecido pela aplica- ção daquele coeficiente e dentro do teto le- gal, pelo qual cabe ao beneficiário compen- sar a comunidade mediante contrapresta- ção pelo impacto gerado pelos novos pisos sobre a estrutura urbana. Solo criado é, por- tanto, a superação do coeficiente único den- tro do limite legal. O direito de construir re- lativo a essa diferença pode ser adquirido do Poder Público pelo proprietário ou de outro particular. A contraprestação na ver- são urbanística do solo criado deverá ser, preferencialmente, a cessão de terreno co- munitariamente útil correspondente ao ex- cesso, sendo, na versão financeira, represen- tada por um valor pago à municipalidade. Pode, em sua versão urbanística, relativa- mente a conjuntos tombados, voltar-se para a compensação mediante investimento na estrutura cultural.
Sustentam, com razão, estudiosos do Di- reito Urbanístico que a definição do coefici- ente único, como limitação urbanística, pode ser feita por meio de lei municipal. Contu- do, há os que entendem que tal definição caberia à União.
A discussão ficará resolvida com o Esta- tuto da Cidade, que expressamente deixa aos municípios a fixação de coeficiente básico, único ou diferenciado.
10.8. Transferência do direito de construir
O instituto guarda relação com a con- cepção acerca do próprio direito de cons- truir. Se inerente este ao direito de proprie- dade, o potencial construtivo aferido em face
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do máximo demarcado pela lei é direito do proprietário, comportando teoricamente a aplicação do instituto, se autônomo ao di- reito de propriedade, só a concessão do Po- der Público poderá constituir o direito de construir, o que afasta o instituto da esfera do proprietário, pelo menos em caráter ori- ginário.
Esse direito, se considerado originaria- mente integrado à esfera do proprietário do imóvel, seria um consectário da imanência deste ao de propriedade, tendo por objeto o solo potencial de impossível utilização em razão de alguma imposição urbanística es- pecial como o tombamento, ou, de acordo com o modelo legal, o potencial voluntaria- mente não utilizado, para outro imóvel em condições de recebê-lo.
Considerada, no entanto, a dupla face da propriedade, pública e privada, esta in- formada pelos atributos elementares cuja densidade à lei cabe definir, deve-se ter como fator de equalização da função social do solo urbano a definição de um coeficiente único, no limite do qual o direito de construir inte- gra o de propriedade e a partir do qual todo acréscimo correrá à conta da face pública da propriedade. Falar de transferência de direito de construir na ausência de coefici- ente único é admitir um superdireito de pro- priedade.
10.9. Usucapião
Como instrumento da política urbanís- tica temos a usucapião especial urbana, que assegura ao possuidor de terreno urbano de extensão enquadrada no limite legal, por determinado prazo, ininterruptamente e sem oposição, para sua moradia ou de sua família, o direito de adquirir-lhe o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel.
O processo judicial para obtenção de de- claração de domínio, tal como hoje discipli- nado, revela-se pouco eficaz como forma de regularização fundiária, pela complexibili- dade que apresenta, demandando atenção do legislador no sentido de simplificar e
agilizar as soluções e adequá-lo ao plano de exercício de legitimação coletiva.
Conquanto o instituto não aproveite os fins da preservação, pode-se no plano da ideação e, portanto, meramente propositi- vo, dele cogitar-se para aquele desiderato.
Sabe-se que o Estado, apesar de não po- der ser sujeito passivo em ações de usuca- pião, tendo em vista a imprescritibilidade de seus bens, pode incorporar bens ao seu patrimônio por meio da prescrição aquisiti- va.
Sob esse aspecto, vale aqui acenar para a possibilidade de alteração das normas fundamentais, com o objetivo de dar à usu- capião um novo fôlego para aquisição, por exemplo, de imóveis tombados abandona- dos que deveriam colocar-se, de fato, e de direito, sob a imediata gestão pública. Tal medida poderia conter a saga do abandono deliberado de bens culturais.
11. A tutela judicial da preservação do patrimônio cultural
Por fim, invoca-se a Lei no 7.347, de 1985, que disciplina a Ação Civil Pública, forte mecanismo judicial de tutela dos bens cul- turais e de outros direitos difusos, alertan- do para o fato de que o Poder Público, legiti- mado para propô-la, tem em mãos, junta- mente com o Ministério Público, um instru- mento bastante eficaz que é o termo de ajus- tamento de conduta com força executiva extrajudicial.
Há de se ressaltar, também, a tutela pe- nal ao lado da civil e da administrativa. Com função sancionatória em matéria de lesão ao patrimônio cultural, comparece o Direito Pe- nal como última ratio, com seu papel repres- sivo, intimidativo, para afastar lesões ou ame- aças intoleráveis e socialmente reprováveis.
A Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, constitui um avanço no tratamento da ma- téria, apesar de não ter previsto instrumen- tos de tutela dos bens imateriais incluídos no rol constitucional dos valores protegidos.
Assim, cuidou dos crimes contra o orde-
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namento urbano, o patrimônio cultural e o ambiental e, admitindo a modalidade cul- posa de dano, parece indicar o eixo da tute- la penal para o patrimônio cultural.
Contudo, a lei deve ser aperfeiçoada para dar suporte a intervenções rápidas, preci- sas e severas para garantia da preservação e da censurabilidade das condutas.
O projeto do Estatuto da Cidade, por sua vez, reforça o controle sobre os agentes pú- blicos, especialmente tendo em vista os as- pectos de gestão da cidade. Assim, trata com rigor a responsabilidade desses agentes, em especial, a do Prefeito Municipal, a quem prescreve sanções por desvios em matéria urbanística, resultantes de ações ou omissões, enumerando diversas situações de caracteri- zação de improbidade administrativa.
No mesmo diapasão, a proposição am- plia o objeto de tutela por via da Ação Civil Pública, especialmente para admitir a defe- sa da ordem urbanística, categorizada esta como interesse difuso, cuja ameaça ou lesão pode justificar a invocação da proteção ju- dicial cautelar ou corretiva por parte de um amplo espectro de legitimados.
12. Conclusão
De todo o exposto, é relevante assinalar, à guisa de conclusão, que o Direito Urba- nístico, no movimento de expansão de seu foco, há de alcançar, em perspectiva trans- disciplinar, as múltiplas dimensões da ci- dade, transcendendo a cidade física, para cumprir também lato papel social na busca da garantia plena de sustentabilidade do espaço urbano sob o aspecto dinâmico, so- ciológico e simbólico.
Que a cidade, mais que objeto do direito, é a própria representação deste, cabendo, pois, despertar a ordem jurídica para o pa- pel de transformação do status quo – de ex- clusão e precariedade –, o que passa neces- sariamente pela revisão de conceitos e prá- ticas e pela incorporação do componente democrático aos processos de formulação, aplicação e controle das normas.
Nesse sentido, mais que o destrinçamen- to dos instrumentos urbanísticos ou das me- todologias de gestão de patrimônio cultu- ral, é urgente a superação de questões ante- riores e enfaticamente persistentes: o con- ceito e o conteúdo da propriedade privada urbana, a função social da propriedade, o locus de sua ordenação, a escassez do solo urbano e a pressão para o acesso, o papel do direito, a nova ordem de sustentabilida- de, entre outras.
Que a potencialidade dos instrumentos só se realizará na prática quando se romper com a matriz liberal público versus privado e se conceber o Direito Urbanístico como o ramo ordenador do direito à cidade na ópti- ca social, isto é, quando se romper com a lógica de neutralidade do Direito diante do quadro de exclusão social e segregação es- pacial das cidades.
Finalmente, registrando passagem – ca- rinhosamente selecionada por um grupo de alunos – que vem a calhar no momento pre- sente de revisão de conceitos e práticas, traz- se aqui um alerta a todos que testemunham as mazelas da sociedade binária e a cada um que, mesmo solitário, faz combate à du- alidade urbana de privilégios e exclusão.
Simão Brayer, estudioso na área de ad- ministração, conta a história:
“Quando houve um grande incên- dio na floresta, todos os animais co- meçaram a fugir.
Só um pardal enchia seu bico no riacho e voava de volta, despejando a água nas labaredas.
Um elefante, que corria, perguntou:
— Ô pardal, tá maluco? Você acha que vai apagar o incêndio?
— Não. respondeu o bichinho. Tô só fazendo a minha parte.”
No fechamento dessas reflexões, vem em socorro uma metáfora bem familiar ao mun- do rural – o tição aceso encoberto de cinzas, que atravessa a noite para acender o fogão de lenha no dia seguinte – e com ela o alerta: a exclusão é o braseiro ardente que o siste- ma pretende encobrir de cinzas. As cinzas
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fazem a latência das chamas que, nas ma- zelas e molambos da injustiça social, podem encontrar o elemento de combustão para devorar em convulsão o próprio sistema.
E haverá um alento: muitos terão sido pardais na empreitada do combate a esse pior desastre ecológico há 500 anos poten- cializado.
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