A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL
Autor: Maria Coeli Simões Pires
Em que pese às críticas, e ao tratamento por vezes desabonador, o fenômeno da chamada
“Globalização” é reconhecido como propiciador do maior intercâmbio de bens, pessoas e de
valores já verificado na história da humanidade.
Essa intensa troca não é impulsionada somente pelo comércio mundial e pelo deslocamento de
polos industriais, como também pela enorme rede de comunicações, cujas extensão,
complexidade e consequências não parecem ainda ter sido plenamente compreendidas.
Nesse contexto, estruturam-se redes sociais complexas, que, na medida em que permitem um
acesso amplo a informações, também atuam como poderosos instrumentos exportadores de
padrões comportamentais e valorativos, até certo ponto, similares às tradicionais relações de
oferta e demanda. O choque entre esses bens imateriais resulta no padecimento daqueles valores
desguarnecidos e ainda não consolidados por sua sociedade de origem, ou simplesmente na
quebra da autonomia, da liberdade e da igualdade que devem ser reciprocamente reconhecidos a
todos os membros de uma comunidade em conjunto ou solidariamente.
Esse quadro de “colonialismo intelectual” é, de fato, um forte fator de alienação cultural, de
conseqüências gravosas, especificamente, no que diz respeito à integração e à autonomia dessas
sociedades.
Em parte, é a preocupação com tal quadro que motiva a defesa do direito de autodeterminação
dos povos perante a Organização das Nações Unidas, instância política e jurídica capaz de
guarnecer as minorias e de acautelar a diversidade cultural.
Os Direitos Humanos abarcam em sua amplitude o direito à herança cultural, seja na perspectiva
dos indivíduos, seja na da sociedade, a possibilitar a expressão e a vivência coletiva desses valores.
É nesse ponto nevrálgico que se insere a importância axial do Patrimônio Cultural material. Como
representação viva da história e do legado de uma sociedade para experiencificação no espaço
comunitário, o Patrimônio Cultural material é uma referência extremamente eficaz contra a
“desterritorialização” por que passam grupos sociais, culturas e mesmo nações de todo o globo.
Trata-se de um fenômeno de virtualização das referências ocasionado pelas rápidas
transformações a que são submetidos os grupos sociais ao influxo das complexas soluções
tecnológicas e consumistas.
Sob a ditadura desse avanço unilateral, são sacrificados centros de tradição cultural e importantes
marcos históricos regionais, o que facilita ainda mais o progressivo esvanecimento do Patrimônio
Cultural lato sensu e a inserção de padrões e valores comportamentais ditos “mundiais”, e sem
qualquer conexão com as reais demandas, experiências ou vocações das sociedades atingidas.
Contra este modelo de “desterritorialização” é que deve ser consolidada uma proteção eficaz do
Patrimônio Cultural, como Direito Humano multifacetado. A preservação do patrimônio material,
sem prejuízo das cautelas relacionadas com a proteção daquele de caráter imaterial, e, ainda, de

1 Artigo publicado no caderno Direito & Justiça do jornal Estado de Minas, edição de 26 de setembro de 2011.
um processo criativo de construção da eticidade concreta, pode ser o último fator aglutinador dos
valores de um povo, capaz de assegurar o compartilhamento do desenvolvimento social em nível
regional e o intercâmbio de bens e informações sem desintegração das fronteiras do mundo
contemporâneo.
Uma visão atualizada da defesa, da promoção e da gestão do Patrimônio Cultural, em sua
dimensão humanista e universal, como contraponto ao processo de alienação da sociedade,
decorrente da faceta deletéria da “Globalização” econômica e cultural, passa, necessariamente,
pelo domínio do Direito Internacional, que é, também, o nascedouro tutelar dos Direitos
Humanos.
A proteção do patrimônio cultural deve ser, assim, tratada em uma dimensão humana. As
medidas acautelatórias e de preservação são fundamentadas pelo poder que os bens culturais
carregam, de referência para a identidade dos seres humanos, pelos valores que traduzem ou
expressam, pela capacidade de transmitir testemunho ou sentimento.
Essa perspectiva antropocêntrica afasta a compreensão de um patrimônio cultural divorciado do
olhar, dos tantos sentidos e do sentimento das pessoas.
Como referência de identidade, o Patrimônio Cultural não é uma mera expressão de carga
valorativa herdada, mas, sobretudo, a carga valorativa que lhe é atribuída no processo identitário
e de fruição.
Os valores estéticos, artísticos, históricos e paisagísticos estão ligados, necessariamente, à lógica
da fruição; não existem por si, mas em relação com sujeitos, na reciclagem identidade-objeto. Do
mesmo modo, a cultura imaterial está intrinsecamente ligada à dimensão humana. Não há
expressão possível do patrimônio cultural dissociado das pessoas que o ergueram e daqueles que
lhe constituíram o destino.
A dignidade humana, superado o plano existencial em seus múltiplos desafios, deve ser garantida
pelo direito cultural na complexidade de sua expressão: produção de bens culturais; participação
democrática na gestão do patrimônio cultural; respeito à diversidade étnica e regional; acesso aos
bens culturais e fruição; direito à informação cultural, participação no controle; e por fim, o direito
de identidade com o patrimônio. É dizer – as pessoas precisam, não apenas fruir do legado, mas
ver-se refletidas nele.
Maria Coeli Simões Pires – Secretária de Estado de Casa Civil e Relações Institucionais, membro
efetivo do Instituto de Advogados de Minas Gerais