Poesias

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Sou a Pedra redonda
Zoiúda
Que vigia sem parar os arredores.


Sou o Pico do Itambé
Encoberto de nuvens
Que se esgarçam ao primeiro sol.


Sou a Serra do Cipó
De sinuosas curvas
Perdidas entre nós
Cegos e
Vendados mistérios


Sou a Lapa da Boa Vista
Que soluça lágrima seca
Em tardes mornas de sol.


Sou o condado virgem
No recato de seus medos.


Sou o Quatro vinténs
Que corre para o Lucas
Em curso lento e choroso.


Sou o Morro Centenário
Que deita a cabeça no colo de Deus
Pedindo um cafuné
Na rara cabeleira.


Sou os veeiros depauperados
De outras riquezas encobertas.


Sou a Fonte do Vigário
Gotejando esquecida
Pelos cantos do Chaveco


Sou o coreto em destroços
Sufocando a sinfonia da vida.


Sou o palco do mundo
À espera da melhor peça.


Sou as ruas de Baixo e de Cima
E os becos sem saída.


Sou a Ladeira do Pelourinho
Batizada pelo grito escravo
Que retumba na senzala do tempo.


Sou o Paredão da Matriz
Na contenção da encosta
Da fé primeira.


Sou a palmeira gigante e altiva
Que ameaça o céu
Sem fazer requebros
Quase inerte sobre raízes profundas.


Sou o casario de linhagem nobre
Contrariando a lei da gravidade.


Sou o cargueirinho alienado
Que desce a rua
Atravessa a festa
O discurso
E estruma no chão
Em pose para a posteridade.


Sou a Capela de São Miguel
Que badala a morte
Ao dar sinal de vida.


Sou o prédio da Cadeia
E o pensamento livre
Que escapole inteiro
Ou em fragmentos
Pelas grades
E vai sem peia.


Sou Igreja Santa Rita
Em esplêndida janela
Espiando da colina
A cidade baixa
Ressuscitar das brumas.


Sou a gente
Que pede licença
Para pisar este chão
Para respirar estes ares
Para poetar sob este céu.


De onde vim
Só pra ser uma flor exótica
Entre rochas e colinas
Da minha terra.

Alto
Chamas
Cenas
De
Luz
Arauto
Do alto
Acenas
Chamas
Rasgando essas trevas
Espalhando o sopro
Por tua criação

Emergente
Emerge
Entre
De mim
Emergente
Menos ente
Mais gente
Emerge

Fulgente
‘’ Full’’...
Da Mortalha de um tempo
Do assombro do vazio
Nova face
Nova mulher
Na aventura do recomeço
Mias gente
Só.

De
Vagar
Cansado
Passo a passo
Lenta
Mente...
Com
Passadas
Toadas
Do Caminhar...

Eu
Ca
Li
Pito
Cheira
Bom
Quase
Bálsamo
De mim.

Sensual
Sem
Idade
Sensualidade
Não
Caduca.

Serro
Com Frio
De alma acalorada
Com Sol
E de sombra remansosa
Serro
Com chuva
E de sombra remansosa
Serro
Com chuva
E de ribeiros secos
Serro
Sem erro
Concerto de Minas
Velho Serro
Sem idade
Que teus serros
Vigiarão por nós
Serro
Com teus morros calvos
Sem tua farta cabeleira
De fala eloqüente
E memória silenciosa
Sem o tumulto do progresso

A RESSEMANTIZAÇÃO DA AUTONOMIA MUNICIPAL EM FACE DOS DESAFIOS CONTEPORÂNEOS

Maria Coeli Simões Pires

Maria Coeli Simões Pires é Mestre em Di- reito Administrativo pela Faculdade de Direito da UFMG, doutoranda e professora junto à mesma Faculdade.

Sumário

  1. Considerações preliminares.
  2. Pontos de reflexão para a ressemantização do conceito de autonomia.
    1. O princípio da subsidiariedade.
    2. O princípio democrático e os múltiplos veto- res do poder local.
    3. A crise do Estado e a globalização: complexificação social e da trama urbana.
  3. Breve visão comparativa do modelo de autonomia do Município brasileiro.
  4. Relei- tura dos elementos da autonomia municipal. Conclusões.

1. Considerações preliminares

Se, internamente, projeta-se a ruptura do pacto federativo pela onipotência da União, que ameaça a autonomia de Estados e Mu- nicípios, razões quase universais apontam para a necessidade de que se retomem esses entes sob novo prisma.

A realidade contemporânea, sensivel- mente impactada, por um lado, pelo marcan- te fenômeno de complexificação social, em muito ditado pelos avanços tecnológicos a impor a densificação de demandas e rela- ções, e, por outro, pela tendência globalizante da economia de traço capitalista e da cultu- ra, está a invocar forte trama de proteção das comunidades contra a perda de identidade desses núcleos de vivência coletiva. O Mu- nicípio, especialmente, há de se afirmar como contraponto da tendência universali- zante, como espaço de expressão do homem- sujeito, de significação do dado ou estatísti- ca e, ainda, há de ser visto como o locus de apropriação dos benefícios da civilização e de revelação de seus efeitos perversos e, por- tanto, como a base física que sustenta os efei- tos das diversas políticas. Assim, o Municí- pio, tradicional objeto de investigação nos campos do Direito, da Administração Pú- blica e do Urbanismo, emerge como desafio em outras áreas do conhecimento, colocan- do-se, sobretudo, como categoria funcional estratégica de garantia de referência e de identidade dos cidadãos e de superação da crise contemporânea.

Nessas circunstâncias, o próprio Direi- to, na tentativa de articular respostas satis- fatórias para as perplexidades atuais, há de desenvolver ânimo criador de nova reflexão acerca dos conteúdos desse núcleo de estu- dos, na busca da releitura e da ressemanti- zação de seus elementos, a partir de consi- derações outras, que, classicamente, refugi- riam ao plano comum de análise ou ao rigor da cogitação estritamente jurídica.

A autonomia municipal, tema estrutu- rante das construções jurídicas nesse cam- po, há, pois, de ser retomada tendo em vista a nova contextualização e a contribuição multidisciplinar que se adensa no estudo de estratégias de gestão contemporânea e de compreensão da trama urbana e dos di- versos atores que a tecem.

Sob esse aspecto, as questões relaciona- das com as tendências internas, quanto à organização local e à composição de forças nas arenas de consenso, e com o comporta- mento social, os reflexos do cenário externo e as perspectivas do direito comunitário, em especial, assumem um papel fundamental na ressemantização do conceito da autono- mia municipal no Brasil, o que está a de- mandar estudo específico.

2. Pontos de reflexão para a ressemantização do conceito de autonomia

Do aporte feito por Horta sobre o tema, a partir de abalizados autores, especialmente da doutrina italiana, extrai-se rigoroso tra-

tamento jurídico do princípio posto como essencialidade da organização federal, cuja revelaçãao se dá pela capacidade de edição de normas que estruturam o ordenamento dos entes da referida organização. Sustenta o constitucionalista que a relação necessária entre autonomia e a criação de normas próprias, para construir ordenamento típico, é suficiente para justificar a noção jurídica de autonomia (1995, p. 426).

Percebe-se, contudo, que a noção tradi- cional de autonomia é hoje insuficiente para sintetizar a compreensão de todos os veto- res do poder local. Sua aplicação, circuns- tanciada por múltiplas variantes contempo- râneas, deve estar informada por novos prin- cípios e estratégias que lhe permitam uma adequada conformação ao contexto. Nesse caso, devem aportar nessa análise o princí- pio da subsidiariedade aplicado no contras- te Estado–Sociedade e no próprio federalis- mo; o princípio democrático, que invoca a participação do cidadão nos planos de con- cepção, execução e controle de políticas pú- blicas, impondo uma versão mais completa de poder local, sem excludência da face ati- nente aos atores não-integrantes do poder oficial; a perspectiva da globalização, a ameaçar a permanência da individualida- de, alçada à responsabilidade da esfera municipal; o desafio contemporâneo do ente local de se pôr como efetivo agente do proces- so internacional e de arrojar-se em criativida- de para superação da crise contemporânea.

É certo que várias dessas considerações perpassam searas metajurídicas, contra o que se coloca alguma reserva por parte de estudiosos. Horta, por exemplo, citando Francisco Campos, acena para a necessária depuração das influências dessa ordem para o tratamento jurídico da autonomia:

“o conceito de autonomia ingressou no campo publicístico ‘pela porta es- cusa da política, como um título de reivindicação das comunidades locais contra o absolutismo do poder central’, e essa origem obstava o tratamento jurídico da autonomia.” (1995, p. 422)

Percebe-se, porém, que a sobrevivência dos Municípios e a construção da defesa das referências da cidadania estão a deman- dar a cogitação de elementos que, embora se apartem da esfera estritamente jurídica, pos- sam interferir na releitura do princípio. Es- cusas são as pressões que avançam sobre o campo autonômico dos municípios em es- pecial, fortes os impactos do macrocenário sobre a esfera de atuação do ente local, e renovadas são as inspirações de ordem de- mocrática que impulsionam novas relações da cidadania no âmbito da vivência coletiva.

2.1. O princípio da subsidiariedade

O princípio enunciado, sob um ângulo, postula o respeito, por parte do Estado, às liberdades dos indivíduos e dos grupos, a pressupor a construção do plano de bem- estar em processo natural, a partir das or- dens enucleadas no cenário de convivência coletiva. Requer, assim, a presença do Esta- do quando e onde necessária para subsidiar a ação dos indivíduos e grupos.

Vista assim, a autoridade estatal é, em última análise, desprovida de valor em si mesma, pelo que se dimensionam suas atri- buições a partir da necessidade de atuação, que, por sua vez, deriva de outra instância, sendo, portanto, supletiva – para suprir as deficiências da sociedade – e subsidiária, capaz de sustentar medidas positivas.

Sob a perspectiva de aplicação às rela- ções internas, sinaliza o princípio da subsi- diariedade no sentido de que as ações evo- luam dos cidadãos para as famílias, pas- sando pelos grupos intermediários, até che- gar ao plano mais coletivo, só admitindo a inversão da lógica em função da necessi- dade de suplência ou em caráter subsidiá- rio e prospectivo.

Tendo em vista a aplicação ao federalis- mo, a subsidiariedade pressupõe o respeito às ordens federativas mais simples. Assen- tado na unidade federativa, o princípio in- voca a ação paulatina e sucessiva das esfe- ras locais, regionais e nacionais, tendo como referências básicas a necessidade ou a de-

manda de ação do poder público na sua lo- calização primária e a capacidade de res- posta do centro de poder envolvido. Igual- mente, só se abrem ensanchas à inversão dessa sucessão quando se verifica a neces- sidade de suplência, vale dizer, o Municí- pio é o primeiro núcleo de poder que deve ser acionado e, na medida de suas condi- ções, cabe-lhe desenvolver a ação correspon- dente. Transcendendo a demanda a referi- da esfera ou verificada a impossibilidade de atendimento naquele nível, o espaço abre- se à esfera intermediária até chegar ao pla- no nacional. Sob esse aspecto, o plano de competência formal se relativiza, e a indevi- da intervenção só restaria configurada em situações em que a instância mais complexa se arrogasse o espaço de ação do ente nela circunscrito, sem ocorrência da necessida- de real de suplência ou de medidas positi- vas indicadas pela visão prospectiva de ca- ráter mais transcendente.

Entre nós, a doutrina tem-se ocupado acanhadamente dessa matéria, valendo des- tacar a contribuição de Baracho, especial- mente representada por sua obra O princí- pio da subsidiariedade: conceito e evolução.

Mostra o constitucionalista que o prin- cípio da subsidiariedade, conquanto tenha inserida sua doutrina no Direito Adminis- trativo, no Econômico e no Constitucional, é tributário do Direito Canônico:

“A doutrina aponta antecedentes do princípio da subsidiariedade como na Encíclica Quadragésimo Ano, de 15 de maio de 1931, na qual o Papa Pio XI declarou que seria cometer injustiça, ao mesmo tempo que torpe- dear de maneira bem criticada a or- dem social, retirar dos agrupamentos de ordem inferior e conferir a uma co- letividade bem mais vasta e elevada funções que eles próprios poderiam exercer. Posteriormente, o princípio é regularmente reafirmado em outra En- cíclica, sendo assim formulada: as re- lações dos poderes públicos com os cidadãos, as famílias e os corpos intermediários, devem ser regidas e equi- libradas pelo princípio da subsidiari- edade.” (BARACHO, 1995, p. 45)

Dissertando sobre o tema, destaca o pu- blicista a tônica do princípio a partir da apre- ensão de seu papel na relação público–pri- vado, sociedade–Estado. Alerta, contudo, para as repercussões da idéia de subsidia- riedade no condomínio dos diversos entes da Federação. Nesse sentido, sustenta:

“Apesar de sugerir uma função de suplência, convém ressaltar que ele cumpre, também, a limitação de inter- venção de órgão ou coletividade su- perior e pode ser interpretado ou uti- lizado como argumento para conter ou restringir a intervenção do Estado.” (Op. cit., p. 45)

Deve-se realçar que o princípio da sub- sidiariedade está profundamente enraiza- do na cultura política européia contempo- rânea.

  1. O princípio democrático e os múltiplos vetores do poder local

    A noção de poder local, notadamente in- formada pelo princípio democrático, deve ser apercebida sob uma nova perspectiva que permita a compreensão da articulação das diversas facetas com as quais aquele se apresenta e dos atores coletivos que se in- ter-relacionam na vivência das cidades.

    Bava, mestre em Ciências Políticas e Pre- sidente do Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais – Polis –, inova na conceituação dessa categoria de poder:

    “Poderíamos entender o poder lo- cal não estritamente como o poder da administração pública, mas o poder originário da consertação da negoci- ação entre os atores coletivos que dis- putam os interesses na cidade e que produzem a cidade nas suas duas di- mensões, no que diz respeito à quali- dade de vida dos cidadãos e no que diz respeito à condição da cidada- nia.” (p. 81– 82)

    Esse o conceito que se deve contrapor à idéia estruturada e excludente de poder lo- cal no quadro político brasileiro, a qual, con- soante lembra aquele cientista político, sus- tenta uma estrutura hierárquica vertical de co- mando nas prefeituras, de defesa de uma ideolo- gia meio tecnocrática, que de alguma maneira exclui o cidadão da competência de discutir os destinos da administração pública . (p. 84)

    Busca-se um quadro renovado de forças do poder local, no qual seja possível confor- marem-se novos pactos e novas negocia- ções. Essa combinação de esforços de cons- trução de um novo conceito de poder local é bem delineada por Bava, cuja compreensão aponta para uma nova interpretação do poder local, pressupondo

    “… a iniciativa da administração pú- blica na abertura do espaço público de negociação e (…), de outro lado, a presença ativa desses cidadãos que se organizam por interesses plurais nes- se espaço de negociação, para fazer valer seus interesses.”(p. 83)

    Dessa forma, o espaço político de âmbi- to local deve ser acessível aos distintos seto- res da sociedade para que possa efetiva- mente viabilizar a negociação, a regulação do conflito, podendo intervir o cidadão de forma propositiva na gestão da coisa públi- ca, fazendo valer a advertência mexicana, a concilia traduzida nas seguintes palavras de ordem: Protestar com propuestas.

    Somam-se a esses pressupostos os me- canismos de controle social, como forma de dar consistência e fazer conseqüente a filo- sofia participativa. Tais mecanismos devem assentar-se na transparência das ações pú- blicas, na garantia de adequado fluxo de in- formações e, portanto, no próprio espaço da cena pública, no qual se explicitem as deci- sões, as circunstâncias, os eventuais fatores facilitadores e dificultadores, as responsa- bilidades e, ainda, na garantia de integra- ção de representantes da sociedade aos cen- tros decisionais atuantes em todas as fases das políticas – concepção ou planejamen- to, execução e controle propriamente dito.

Adverte Borja para a insuficiência dos modelos tradicionais de organização e de gestão da instância local:

“Parece evidente que as atuais es- truturas políticas locais, seus esque- mas organizacionais e meios de ges- tão não são os mais adequados para construir essa liderança local e assu- mir as novas competências e funções propostas.”(1996, p. 95–96)

E completa:

“…um governo local promotor não pode funcionar segundo as formas de gestão e de contratação próprias da administração tradicional.”(1996, p. 95–96)

Com efeito, deve-se romper com a dita- dura das simetrias e dos modelos de gestão. Como as cidades, pela realidade que lhes é imanente, invocam o princípio de diversi- dade, o poder local há de tomar conforma- ção e teor próprio, em cada espaço, pois di- ferentes são as cidades, as populações, e di- ferentes devem ser seus atores e interlocuto- res e suas formas de atuação e de compreen- são das vivências que nela têm lugar.

O poder local, portanto, revela-se tam- bém por meio dos diversos instrumentos de democracia semidireta postos expressamen- te pela Constituição à disposição do Muni- cípio ou do cidadão, ou como simples de- corrência da autonomia e do princípio de- mocrático. Nesse sentido, enumeram-se: a consulta prévia mediante plebiscito, conso- anteodispostono§4odoart.18daCReno art. 2o do ADCT, alterado pela Emenda Constitucional no 2/92; a iniciativa popu- lar para apresentação de projetos de lei, nos termos do art. 29, XI, da CR; o controle de contas, conforme o disposto no § 3o do art. 31 da mesma Carta; a ação popular, potente instrumento de controle jurisdicional posto à disposição do cidadão; outros meios por opção do Município, como o referendo po- pular, mecanismo de confirmação dos pro- jetos ou de veto popular; o Ombudsman, ins- trumento de afirmação democrática; as for- mas de participaçao no planejamento, na

execução e no controle das políticas públi- cas; o direito de petição previsto no art. 5o, XXXIV, da CR e o controle popular deferido ao cidadão pelo art. 74, § 2o, daquele docu- mento.

Já se verifica, na prática, uma nova ten- dência com vistas à densificação do poder local. As administrações democráticas, por um lado, têm buscado o reconhecimento de novos interlocutores, viabilizando espaço sócio-político para a representação coleti- va, para a defesa de interesses e negociação das ações pelos diversos atores; por outro, a própria sociedade civil vem-se organizan- do em torno de interesses plurais das comu- nidades, o que ganha expressão fática por meio dos milhares de conselhos de saúde voltados para o acompanhamento da ges- tão dos serviços nessa seara, de conselhos de cultura que partilham entre segmentos nele representados a responsabilidade pela construção e proteção da memória coletiva, dos colegiados de política de proteção e apoio à criança e ao adolescente, entre ou- tros.

Nota-se, também, uma acentuada mu- dança com o objetivo de acolher representa- ções dos diversos movimentos sociais, nos órgãos do Poder Executivo e nas Câmaras Municipais, quebrando a lógica da política tradicional e da intermediação de índole cli- entelista. Desse modo, a própria relação do Poder Público, especialmente do parlamen- tar, com a sociedade civil organizada passa a se estabelecer sobre novas referências. Sob esse aspecto, o espaço legislativo já se abre à participação popular – mais de uma ma- neira fetichizada e emblemática, é verdade – para subsidiar técnica e politicamente o conserto formal da instituição na produção legislativa, na intermediação de conflitos e na concepção de políticas públicas. Ainda não se conseguiu, contudo, evoluir na dire- ção da densificação social do poder fiscali- zador. Entre nós, esses mecanismos apenas se esboçam, remanescendo o controle como um campo de acanhada eficácia da partici- pação popular.

Dessa forma, o poder local não instituci- onalizado em Câmaras ou em Prefeituras, ou seja, o poder local de índole social e eco- nômica, deve ganhar relevância nos diver- sos momentos da manifestação das ações de interesse coletivo por meio dos mecanis- mos disponíveis. A sintonia entre as forças componentes oficiais, sociais e privadas há de ser encontrada na experiência construti- va e projetiva de uma verdadeira cultura de- mocrática que conjugue instâncias de go- verno inspiradas em adequada base princi- piológica e forças econômicas e sociais or- ganizadas, conseqüentes e instrumentaliza- das. Esse o desafio na estruturação do novo poder local.

A despeito da tendência democrática, persiste enorme distância entre a concep- ção ideal de poder local e sua conformação real, restrito que se encontra, na maioria dos Municípios, aos centros oficializados de competências, o que vulnera os próprios Municípios pela ausência da trama forte de proteção que se faz pelos laços da cidada- nia.

2.3. A crise do Estado e a globalização: complexificação social e da trama urbana

Os indicadores econômicos e sociais de- correntes da crescente ameaça dos conflitos civilizacionais, das sociedades hipercom- plexas, da emergência de interesses difusos, da persistência de um quadro de desigual- dades inaceitáveis, da progressiva mundi- alização da economia, da mídia, da cultura e das relações, bem assim da revolução tec- nológica evidenciam um grave estágio da Civilização e o desequilíbrio do Estado como um todo, desenhando uma crise multiface- tada do setor público, resultante da conver- gência de vários fatores de pressão, inter- nos e externos.

Esse cenário de dificuldades tão abran- gentes joga reflexos sobre a trama urbana de uma forma geral, imediatamente alcan- çada pelos efeitos perversos daqueles fenô- menos e processos. Tudo, efetivamente, acon- tece ou repercute nas cidades, impondo-lhes,

em especial às megacidades, desafios imen- suráveis de superação da crise e das dis- funções da política mundial.

Huntington, professor da Universidade de Harvard, ex-diretor de Planejamento do Conselho de Segurança Nacional do Gover- no Carter, autoridade em assuntos interna- cionais, desenvolvendo várias análises so- bre a política mundial, assinala o conflito entre civilizações como a virtual ameaça para a paz mundial, projetando a estratégia de uma ordem internacional baseada nas civilizações, ou seja, na própria cultura, como salvaguarda contra a guerra. A partir dessa análise, aponta para um mundo mul- ticivilizacional, assentado numa ordem in- ternacional complexa, na qual figura, tam- bém, o ente local:

“Conquanto os Estados continu- em sendo os atores principais nos as- suntos mundiais, eles também estão sofrendo perdas de soberania, funções e poder. As instituições internacionais agora afirmam seu direito de julgar e de impor limitações ao que os Esta- dos fazem em seus próprios territóri- os. Em alguns casos, sobretudo na Europa, as instituições internacionais assumiram funções importantes que anteriormente eram desempenhadas pelos Estados, e foram criadas pode- rosas burocracias que operam direta- mente sobre os cidadãos num plano individual. De forma global, vem se verificando uma tendência para que os governos dos Estados também per- cam poder através da devolução de poder para entidades políticas abai- xo do nível de Estado, nos âmbitos regionais, provinciais e locais. Em muitos Estados, inclusive nos do mundo desenvolvido, há movimentos regionais que estão promovendo uma autonomia substancial ou a secessão. Em grau considerável, os governos dos Estados perderam a capacidade de controlar o fluxo do dinheiro que en- tra em seus países e deles sai, e estão tendo dificuldade cada vez maior para controlar o fluxo de idéias, de tecno- logia, de bens e de pessoas. Em resu- mo, as fronteiras dos Estados se tor- naram cada vez mais permeáveis. To- dos esses desdobramentos levaram muitos a ver o fim progressivo do Es- tado sólido, tipo “bola de bilhar”, que supostamente foi a regra desde o Tra- tado de Westfália de 1648, e o surgi- mento de uma ordem internacional complexa, de múltiplos níveis, que se parece mais com a da Idade Média.” (1997, p. 36–37)

Destacando o professor a presença das entidades políticas de âmbito local nessa or- dem multicivilizacional, nelas reconhece o locus verdadeiro de coexistência das pesso- as, mostrando que em seu território se faz aparente a crise dos Estados fracassados e da anarquia crescente representada por

“… uma onda global de criminalida- de, máfias transnacionais e cartéis de drogas, crescente número de viciados em drogas em muitas sociedades, um debilitamento generalizado da famí- lia, um declínio na confiança e na so- lidariedade social em muitos países, violência étnica, religiosa e civilizaci- onal e a lei do revólver que predomi- nam em grande parte do mundo. Numa cidade atrás da outra – Mos- cou, Rio de Janeiro, Bangcoc, Xangai, Londres, Roma, Varsóvia, Tóquio, Jo- hannesburgo, Délhi, Karachi, Cairo, Bogotá, Washington –, a criminalida- de parece estar subindo vertiginosa- mente, e os elementos básicos da civi- lização estão se esvanecendo. Fala-se de uma crise global de governabilida- de.”(1997, p. 409)

Esse quadro de violência urbana, de am- pla criminalidade é preocupante também para o Brasil, uma vez que pelo menos duas cidades brasileiras integram o rol das me- gacidades do mundo, no chamado Mega Cities Project: Tóquio, Cidade do México, Calcutá, Nova Iorque, Cairo, Nova Delhi,

Bombaim, Jacarta, Buenos Aires, Los Ange- les, Londres, Moscou, São Paulo e Rio de Janeiro (Jornal do Brasil, 13 jul. 1992).

Mas se os problemas são mais contun- dentes para as cidades, se nelas ganham ex- pressão, têm também nesse espaço a pers- pectiva mais aberta de solução mediante processos criativos.

As considerações registradas no tópico precedente denotam a importância do ente local como referência de cidadania e como espaço estratégico de enfrentamento da cri- se atual. A eminência das cidades é, por isso mesmo, enfatizada em diversas experiências de abordagem internacional e de tratamen- to de situações de crise.

Sob esse enfoque, eventos como a Confe- rência de Cidades Européias (Roterdã, 1986), inaugurando o movimento das eurocidades, consolidado na Conferência de Barcelona, de 1989; a criação do Comitê de Regiões (Maastricht,1993), reconhecendo os gover- nos locais como integrantes de sua rede ins- titucional; a Conferência sobre População da ONU (Cairo, 1994); a Conferência de Pre- feitos, em preparação para a reunião da Cúpula Social (Copenhague, 1995) e a Con- ferência sobre o Habitat (Istambul, 1996), a chamada “La Cumbre de las Cidades”, en- tre outras, destacaram o papel das autori- dades subestatais e a necessidade de trata- mento das questões sociais (emprego, po- breza, integração sócio-cultural) em nível local.

Borja, analisando esses eventos, mostra serem eles sinais do papel assumido pelas cidades em face das novas tendências mun- diais:

“Os processos sociais, econômi- cos, culturais e populacionais tendem a globalizar-se, mas seus efeitos con- centram-se nas aglomerações urbanas e requerem soluções integradas.” (1996, p. 79)

Relata o autor as estratégias dos go- vernos locais especialmente em momentos de crise. Aponta, na Europa, a reação dos governos locais em conjunto com os diversos atores econômicos e sociais urbanos à recessão dos anos 70, traduzida aquela em um desmedido esforço para atrair investi- mentos, gerar empregos e incrementar a base produtiva da cidade. Em continentes como a Ásia, evidencia-se o papel da cidade re- presentado por uma forte complementarie- dade às ações do conjunto dos atores urba- nos voltados para o mercado externo inseri- do na economia global. Entre as cidades asiáticas, dá realce a Seul, Taipé, Hong Kong, Cingapura, Bangcoc, Xangai, Hanói (1996, p. 79).

Adverte, no entanto, para os riscos do modelo asiático:

“… o poder político urbano, ao contrá- rio do europeu, desenvolve um mode- lo de baixos custos gerais, mas de al- tos custos sociais. Não parece que esse modelo seja suportável por muito tem- po; sua permanência introduz fatores que diminuem a atração pela cidade e não qualifica suficientemente os re- cursos humanos.”(1996, p. 80)

Relativamente às cidades america- nas, realça o mesmo analista o seu impor- tante papel na mudança política e na eco- nomia, relatando a reação local ao neolibe- ralismo das gestões Reagan e Bush por meio de ambiciosos projetos estratégicos:

“Cidades como Los Angeles, São Francisco, Detroit, Seatle etc. (assim como os estados da Flórida e Wiscon- sin), através do planejamento estraté- gico e da cooperação público–priva- da, demonstraram ao mesmo tempo a negatividade da aberrante política ne- oliberal e a capacidade de resposta das cidades.” (1996, p. 80)

Igualmente, relata Borja a importância política das cidades do Leste europeu nos processos de queda dos sistemas comunis- tas estatais e de reconstrução da organiza- ção democrática e da economia competitiva, com expressão evidente em Berlim, Budapes- te, Praga, Varsóvia, entre outras (1996, p. 81).

Por fim, desenvolve o analista uma refle- xão acerca do papel das cidades na Améri-

ca Latina, cuja síntese aqui se registra pela pertinência do caso brasileiro a esse contexto: “Na América Latina, na década passada, os processos de democrati- zação política e de descentralização do Estado revalorizaram o papel das cidades e os governos locais. No en-

tanto, as limitações desses mesmos processos; os efeitos sociais das polí- ticas de ajuste, que se somaram às de- sigualdades e marginalidades herda- das; a fragilidade do tecido sócio-cul- tural das cidades e os graves déficits de infra-estrutura e serviços públicos têm atrasado a emergência das cida- dês como protagonistas. Esta situação vem mudando na década de 90. Por um lado, a reativação econômica tem estimulado a implementação de pro- jetos urbanos de grande escala (em alguns casos favorecidos pelas priva- tizações) e dinamizado o setor da cons- trução. Por outro lado, aguçam-se as contradições e as carências herdadas: infra-estrutura física e de comunica- ções, insuficiência de recursos públi- cos e da capacidade de atuação dos governos locais, fraca integração so- cial da cidade e escassa cooperação público-privada. Acrescentem-se ainda a consolidação dos processos demo- cráticos internos e a crescente abertu- ra econômica externa, que tem multi- plicado as demandas sociais e acen- tuado a sensação de crise funcional nas grandes cidades.”(1996, p. 81)

Assimilando a importância das cidades, os organismos internacionais têm incorpo- rado o esforço daquelas em seus planos de ação. Nessa linha, por exemplo, a filosofia da Organização das Nações Unidas. A ONU, criada logo após a Segunda Guerra Mundial com o objetivo de manter a paz e propugnar pelos direitos humanos, teve como estratégia de ação, desde meados da década de 60 até o final dos anos 80, a cons- tituição de organismos e agências especi- alizadas e a adoção de Convenções e Tratados Internacionais. Contudo, grandes mu- danças no contexto mundial, tais como a queda do muro de Berlim, a queda das eco- nomias planificadas, a globalização da eco- nomia capitalista, a intensificação do po- der das corporações econômicas e financei- ras transnacionais em prejuízo do espaço dos Estados nacionais, a crise fiscal dos Estados e a complexificação dos temas, a revolução tecnológica e o fim do regime de discriminação na África do Sul têm levado à redefinição do papel e da estratégia dos órgãos de cooperação internacional. Daí, a constatação de especialistas em reflexões desenvolvidas acerca do modelo de referên- cia da ONU, que apontam no sentido da inadequação da abordagem em programas internacionais apoiados na suficiência dos Estados Nacionais:

“As noções de pleno emprego, de desenvolvimento econômico e de pro- tagonismo total do Estado na resolu- ção dos problemas sociais, que cons- tituíam o modelo de referência da atu- ação da organização, não têm hoje mais vigência nem correspondência com a realidade das nações.” (RO- NULK; SAULI JÚNIOR, 1996, p. 14)

Essa mudança levou a ONU à realiza- ção de conferências relacionadas com temas globais emergentes segundo novos padrões de cooperação, incorporando, aos órgãos go- vernamentais, setores mais amplos da socie- dade, as Organizações Não-Governamentais, movimentos e associações comunitárias.

Sob essa nova inspiração, realizou- se, por exemplo, a Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos – HABITAT II –, em Istambul, em 1996, volta- da para as questões da habitação num mun- do em urbanização, que tem seus preceden- tes em 1976, quando a preocupação ainda se dirigia para as situações críticas e emer- genciais de moradia ocasionadas por desas- tres naturais, guerras e conflitos urbanos.

A Conferência, segundo os mesmos es- pecialistas, enfrentou para a multiplicida- de das questões urbanas, em especial:

“…a irregularidade e precariedade dos assentamentos populares em todo o mundo pobre, a necessidade de ex- pansão das infra-estruturas e dos ser- viços urbanos, a nova escalada dos problemas de transportes e acessibili- dades, o armazenamento, abasteci- mento e utilização de energia e água, o controle e tratamento de resíduos, a poluição ambiental atmosférica e so- nora, a degradação ambiental decor- rente da própria expansão urbana, o crescimento da pobreza, da falta de empregos e de renda, o aumento de violência, o acirramento dos conflitos de terra e despejos ilegais.”(RONULK; SAULI JÚNIOR, 1996, p. 15)

O grande avanço da Conferência no tra- tamento das questões, segundo reconhecem os especialistas, é representado pela inte- gração de novos atores na formulação de propostas e no processo de solução de pro- blemas internacionais, de setores governa- mentais e não-governamentais, público e privado, locais e internacionais, tensionan- do as posições:

“HABITAT II, ou a Cúpula das Ci- dades, é o produto desta evolução: pela primeira vez se definem e reconhecem os ‘parceiros’ – autoridades locais, ONGs e CBOs, academias e o setor pri- vado – como interlocutores oficiais, admitindo que estes compunham as próprias delegações oficiais.” (RO- NULK; SAULI JÚNIOR, 1996, p. 15)

As iniciativas no âmbito da Conferên- cia, incorporando temas urbanos de forma cada vez mais ampla, propiciaram a inter- locução da agência internacional com as ci- dades como entes políticos. Volta-se o orga- nismo para o investimento na capacidade de gestão municipal, ao mesmo tempo em que estimula a criatividade dos governos lo- cais, promovendo a seleção dasBest Practices, experiências inovadoras e exitosas, para possível aproveitamento por outras comu- nidades. Do acervo de cem experiências se- lecionadas pelo Comitê Internacional, quatro são brasileiras: o Orçamento Participati- vo de Porto Alegre; o Programa CEARA Pe- riferia de Fortaleza; o Programa de Atendi- mento à Criança de Santos e o Saneamento Ambiental de Jaboatão. Entre as quarenta selecionadas para apresentação em Istam- bul, tiveram lugar a de Porto Alegre e a de Fortaleza.

De toda a experiência, emergem com cla- reza novos papéis dos poderes locais, a im- portância das parcerias, a preocupação com novos modelos de cooperação, a perspecti- va das relações horizontais nas cidades, a participação popular e a necessidade de um novo enfoque para o tema de infra-estrutu- ras urbanas assentado numa nova lógica integrativa que associa a gestão urbana e a política ambiental. Isso leva a um redirecio- namento do Direito Internacional para o re- conhecimento do poder local como sujeito dessas relações cogitadas por aquele ramo, ao lado dos Estados Nacionais e dos cida- dãos.

Dessa forma, a Declaração de Istambul, integrando a Agenda HABITAT, propõe a descentralização da política urbana para governos locais democráticos, propugna pela parceria e participação, pelo fortaleci- mento da capacidade financeira e instituci- onal dos municípios. Sem desconsiderar a importância dos Estados Nacionais nas re- lações internacionais, aponta os governos locais como elementos determinantes do êxito das relações naquele plano. Embora reconhecendo que as causas estruturais dos problemas urbanos tenham sede em plano nacional ou internacional, vislumbra a so- lução dos efeitos perversos a partir do Mu- nicípio, espaço de convergência das ques- tões urbanas, de exteriorização da relação Estado–cidade na formulação e implemen- tação de políticas urbanas, de formação de alianças, de compartilhamento de conheci- mento e de aplicação de adequadas tecno- logias. (RONULK; SAULI JÚNIOR, 1996, p. 16–17)

Essas anotações, por si, invocam uma re- flexão mais profunda acerca do papel da

cidade no enfrentamento da crise contem- porânea .

3.Breve visão comparativa do modelo da autonomia do Município brasileiro

Hoje, a Doutrina e a Jurisprudência as- sinalam, com realce, avanço na conforma- ção do modelo da autonomia municipal no Brasil. Quadripartida, pressupõe um poder local autônomo em termos político, admi- nistrativo, financeiro e auto-organizatório. Sob esse último aspecto, assimila prática ex- cepcional, originariamente prevista na Cons- tituição do Rio Grande do Sul, de 14 de ju- lho de 1891, e absorve a Constituição Brasi- leira o modelo de Cartas Próprias do Siste- ma Americano (Charter), em que se assegu- ra poder auto-organizatório ao ente local, unidade político-administrativa com algu- ma correspondência com o Município bra- sileiro.

A partir dos suplementos da clássica obra de Meirelles (1996, p. 41–61), podemos traçar ligeiro quadro comparativo da auto- nomia do Município brasileiro – tributário da comuna portuguesa cujo modelo se den- sifica por força da incorporação de traços bastante peculiares a partir da própria ex- periência comunitária brasileira ou de in- fluências externas – em face dos principais modelos de organização do ente local, na tentativa de situar os principais pontos de identificação e de distanciamento.

Conquanto a Inglaterra tenha estrutura- do o sistema de Cartas Próprias, ela não in- fluencia a organização local brasileira. As- sim é que, por exemplo, o Constituinte de 1988 rejeita o traço de sujeição e unidade do modelo inglês, em que os burgos se subme- tem à autoridade controladora ou à censu- ra do Local Government Board, órgão central vinculado à Coroa, com jurisdição sobre to- das as municipalidades.

O modelo brasileiro de autonomia, in- corporando alguns dos traços relativos a en- tidades locais de outros países, com nenhum se identifica. Não tem sua moldura noscountry, cities ou Township americanos, apesar da tradição descentralizadora registrada nos Estados Unidos. A entidade local, sem ser objeto de qualquer alusão na Carta Política dos EUA, recebe sua autonomia do Estado- membro, com o que se coloca com acentua- do nível de eficácia no plano de execução de serviços públicos, num País em que a tô- nica ou o desafio da administração local, sem o arrojo e a organização da burocracia de outros países, é a condição do poder pú- blico para proporcionar conforto material aos munícipes. Preocupação que levou à otimização da figura do manager, adminis- trador municipal, registrando-se na Univer- sidade de Harvard, a mais notável evolu- ção direcionada ao treinamento e à prepa- ração para os encargos de gerência de servi- ços públicos em âmbito local.

Não se filia tampouco ao modelo do Ge- meinde alemão, com o qual não se reparte a competência legislativa, que fica adstrita à Federação e aos Estados-membros. E dele também se aparta, ao rechaçar o forte con- trole dos Estados sobre a atividade munici- pal, tão recorrente naquele país.

Não tem seu parâmetro na França, Esta- do Unitário, onde só se reconhece às comu- nas uma autonomia acanhada, em contra- posição aos Departamentos, com descentra- lização das coletividades locais em caráter meramente administrativo, conquanto se ve- rifique, na realidade francesa, completa identidade dos cidadãos com as respecti- vas comunas.

Do cotejo dos arranjos de autonomia pre- valentes em diversos países, chega-se à con- clusão de que, no Brasil, o modelo de auto- nomia, no plano de concepção, é arrojado e, com certeza, o mais completo para a instru- mentalização dos governos locais.

De fato, o Brasil, um país de vocação mu- nicipalista, superando a política contradi- tória da Coroa, que criava Vilas e distribuía sesmarias e que buscava proporcionar o aparecimento do ambiente urbano e estimu- lava a vocação autárquica dos grandes pro- prietários, consolidou, principalmente, com

o apoio da Igreja, um regime municipal, pau- latinamente aperfeiçoado, desenvolvendo, pelo menos no plano nominal, um lato cam- po de autonomia.

Essa tendência levou o Brasil a estrutu- rar uma complexa base municipal, e Mi- nas, mais intensamente que qualquer dos demais Estados da Federação, implementou essa vocação. Os números confirmam a pro- eminência desse Estado no cenário munici- palista, detendo cerca de um quinto das mu- nicipalidades.

Tendo como referência os dados de 1993, do Banco de Dados do IBAM-Rio, num total de 4.972, Minas contava com 756, o que re- presentava a participação mais expressiva nesse campo, posição seguida, à distância, por São Paulo, com 625, pelo Rio Grande do Sul, com 427, pela Bahia, com 415, e pelo Paraná, com 371.

O número de municípios brasileiros foi, recentemente, à larga, ampliado, como de- corrência da disciplina da Constituição de 1988 sobre a matéria, que flexibilizou as exigências para a elevação das comunida- dês ao estágio da maioridade. Assim é que o quadro mineiro exibe, só em 1995, 97 novos municípios (Lei no 12.030, de 21 de dezem- bro de 1995), dado que projeta a posição do Brasil nesse particular.

Contudo, deve-se registrar que, contra essa escalada emancipacionista no Brasil, houve forte reação do Congresso Nacional por meio da Emenda Constitucional n o 15/ 96, que definiu parâmetros mais rigorosos para a emancipão de comunidades.

Esses dados são relevantes, principal- mente se se toma em conta o teor da autono- mia municipal brasileira em confronto com o dos modelos estrangeiros, uma vez que a multiplicação de comunas em outros paí- ses é recorrente, mas naqueles não se atri- buem às administrações locais os graus de poder que se deferem aos municípios brasi- leiros.

Na Alemanha, há também uma tendên- cia de ampliação da base comunitária. Ob- serva-se a criação de novos municípios, numa inversão da anterior tendência fusio- nal, que acabou rejeitada pela persistência das relações com as originárias comunida- dês fusionadas. Tem-se, aí, a preocupação com o fortalecimento dos laços de pertinên- cia dos cidadãos à sua comunidade como fator de equilíbrio no ambiente nacional e a defesa da identidade dos grupos e da cida- dania.

Já no Brasil, não se pode dizer que haja uma relação direta entre a prática emanci- pacionista e a efetiva valorização da esfera local.

A posição de relevância há de ser conse- qüente, retratando-se, não apenas no plano nominal, mas no plano fático, pois os muni- cípios, antes de simples arranjo de burocra- cias administrativas e organização políti- ca, constituem-se na personalização de va- lores e interesses maiores. Assim, reserva- se-lhes o papel de imprimir vigor real às di- versas facetas de sua autonomia, para que os grupos territoriais sejam capazes de transcender os estreitos limites das relações primárias, na busca, seja no âmbito interno, seja no externo, de soluções para os comple- xos problemas da coletividade, de padrões de qualidade de vida compatíveis com a dig- nidade humana e, sobretudo, possam colo- car-se com tramas de proteção e autodefesa contra injunções da União e do Estado so- bre o campo autonômico dos Municípios.

Os Municípios poderão, assim, exerci- tar uma autonomia material, de linha não isolacionista e excludente, mas integrativa das diversas facetas e cooperativa das di- versas esferas de poder formal, econômico e social, buscando imprimir ao poder local um sentido novo, e usar a autonomia segundo os seus diversos desdobramentos, mas agora res- semantizados em razão dos múltiplos fato- res que conformam o poder municipal.

4. Releitura dos elementos da autonomia municipal. Conclusões

Relativamente aos quadrantes que plu- ralizam as manifestações da autonomia e

destrinçam o referido princípio, pode ser re- gistrado, em apertada síntese:

1 – No que toca ao seu aspecto político, o Município deve usar em toda a extensão o seu poder político, de modo a garantir posi- ção equilibrada em face das entidades fede- rativas, sem subserviência, sem hierarqui- zação, sem sujeição. A maioridade do Mu- nicípio não se garante pela simples escolha de seus representantes e dirigentes, mas pela efetiva capacidade do ente local de assumir a condução de seu destino, fugindo ao au- toritarismo e às manipulações que escravi- zam a comunidade e catalizando os diver- sos vetores do poder local. As prescrições da representatividade hão de ser entendi- das na perspectiva do coletivo, na qual a autonomia foge, cada vez mais, ao controle das demais esferas da Federação, para se sujeitar ao controle social, à vontade do con- junto. Por outro lado, o Município há de desenvolver capacidade reativa, para que possa garantir posição de equilíbrio no con- texto federativo.

2 – Quanto à autonomia organizatória, deve o Município exercê-la, para conceber, de acordo com as matrizes de preordena- ção, uma instituição municipal conforma- da aos paradigmas do Estado Democrático de Direito. É preciso que cada Município se descubra em suas peculiaridades, que a sua Lei Orgânica se consubstancie em instru- mento conjunto do poder público e da soci- edade, incorporando os avanços de um tem- po que rejeita a relação autoritária do poder público e sinalize para a participação, e que se traduza em verdadeira Carta Constituci- onal da comunidade, traçada em observân- cia à Constituição da República e aos prin- cípios da Constituição do Estado, mas, tam- bém, segundo os imperativos e rumos da realidade local. Ela há de ser capaz de ditar diretrizes de modernização da vida da co- munidade e projetar-lhe mudanças positi- vas, sem perder de vista o macrocenário no qual se insere o Município.

3 – Em relação ao teor financeiro da auto- nomia, lembramos que o Município não pode ficar à mercê de transferências de re- cursos de outras esferas e que só lhe será assegurada sua dimensão autonômica pela propulsão de sua base econômica e pela adequada preparação do Município para o exercício de sua capacidade tributária de modo a garantir receitas próprias. Para tanto, deve investir na organização de base cadas- tral e na melhoria da capacidade institucio- nal para que possa atingir a probalidade máxima de renda e de produtividade. O Mu- nicípio terá de fugir aos “quadros mentais de conformismo providencialista”. Com efei- to, hoje, rejeita-se o espírito conservador, que alimenta a dependência, e acredita-se no valor científico do planejamento do progres- so municipal e da participação da comuni- dade como elementos do desenvolvimento. Por outro lado, a autonomia financeira pres- supõe o avanço da entidade local na estrutu- ração das bases de interlocução com setores públicos, com os organismos internacionais de financiamento e com os agentes econômi- cos privados internos e externos.

4 – No que diz respeito ao campo admi- nistrativo, assinalamos que não se pode per- der de vista a perspectiva finalística da en- tidade municipal, de assegurar adequada prestação de serviços; a de variabilidade da organização, que se há de conduzir pelos princípios da razoabilidade, da moralidade e da instrumentalidade, porque a pior dita- dura que se impõe ao Município é a de dis- função de sua máquina, situação em que este e a comunidade se tornam escravos de uma burocracia que absorve todo o recurso em processo voltado para ela própria, e, por isso mesmo, autofágico e egoístico. Ainda, em razão das tendências globalizantes, a Administração deve estar atenta aos pa- drões internacionais de racionalidade, bus- cando apropriar os avanços da tecnologia e as alternativas mais adequadas à realida- de, acreditando no Município como instân- cia de superação da crise contemporânea e barreira de proteção contra a ameaça dos valores de referência que constroem a iden- tidade coletiva.

Não é exagerado afirmar que a reversão do quadro de crise que emoldura a realida- de brasileira depende necessariamente da rearticulação das esferas federativas, com a clara redefinição dos papéis de cada uma e da assunção, pelo Município, de seu campo autonômico e, pela comunidade, das poten- cialidades de sua força transformadora.

Finalizando, a autonomia municipal, an- tesde privilégio, é o desafio que se apresen- ta a todas as municipalidades, que a devem estruturar no plano da realidade, sob pena, aí sim, de se tornarem os cidadãos, cada vez mais, reféns das burocracias estatais, em nítido processo de desrespeito ao verdadei- ro interesse público e às coletividades, cada vez menos autônomas e sem referência.

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