Poesias

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Sou a Pedra redonda
Zoiúda
Que vigia sem parar os arredores.


Sou o Pico do Itambé
Encoberto de nuvens
Que se esgarçam ao primeiro sol.


Sou a Serra do Cipó
De sinuosas curvas
Perdidas entre nós
Cegos e
Vendados mistérios


Sou a Lapa da Boa Vista
Que soluça lágrima seca
Em tardes mornas de sol.


Sou o condado virgem
No recato de seus medos.


Sou o Quatro vinténs
Que corre para o Lucas
Em curso lento e choroso.


Sou o Morro Centenário
Que deita a cabeça no colo de Deus
Pedindo um cafuné
Na rara cabeleira.


Sou os veeiros depauperados
De outras riquezas encobertas.


Sou a Fonte do Vigário
Gotejando esquecida
Pelos cantos do Chaveco


Sou o coreto em destroços
Sufocando a sinfonia da vida.


Sou o palco do mundo
À espera da melhor peça.


Sou as ruas de Baixo e de Cima
E os becos sem saída.


Sou a Ladeira do Pelourinho
Batizada pelo grito escravo
Que retumba na senzala do tempo.


Sou o Paredão da Matriz
Na contenção da encosta
Da fé primeira.


Sou a palmeira gigante e altiva
Que ameaça o céu
Sem fazer requebros
Quase inerte sobre raízes profundas.


Sou o casario de linhagem nobre
Contrariando a lei da gravidade.


Sou o cargueirinho alienado
Que desce a rua
Atravessa a festa
O discurso
E estruma no chão
Em pose para a posteridade.


Sou a Capela de São Miguel
Que badala a morte
Ao dar sinal de vida.


Sou o prédio da Cadeia
E o pensamento livre
Que escapole inteiro
Ou em fragmentos
Pelas grades
E vai sem peia.


Sou Igreja Santa Rita
Em esplêndida janela
Espiando da colina
A cidade baixa
Ressuscitar das brumas.


Sou a gente
Que pede licença
Para pisar este chão
Para respirar estes ares
Para poetar sob este céu.


De onde vim
Só pra ser uma flor exótica
Entre rochas e colinas
Da minha terra.

Alto
Chamas
Cenas
De
Luz
Arauto
Do alto
Acenas
Chamas
Rasgando essas trevas
Espalhando o sopro
Por tua criação

Emergente
Emerge
Entre
De mim
Emergente
Menos ente
Mais gente
Emerge

Fulgente
‘’ Full’’...
Da Mortalha de um tempo
Do assombro do vazio
Nova face
Nova mulher
Na aventura do recomeço
Mias gente
Só.

De
Vagar
Cansado
Passo a passo
Lenta
Mente...
Com
Passadas
Toadas
Do Caminhar...

Eu
Ca
Li
Pito
Cheira
Bom
Quase
Bálsamo
De mim.

Sensual
Sem
Idade
Sensualidade
Não
Caduca.

Serro
Com Frio
De alma acalorada
Com Sol
E de sombra remansosa
Serro
Com chuva
E de sombra remansosa
Serro
Com chuva
E de ribeiros secos
Serro
Sem erro
Concerto de Minas
Velho Serro
Sem idade
Que teus serros
Vigiarão por nós
Serro
Com teus morros calvos
Sem tua farta cabeleira
De fala eloqüente
E memória silenciosa
Sem o tumulto do progresso

A TEMPORALIDADE DA NORMA E O PROCESSO DE CONSOLIDAÇÃO DE LEIS:VIGÊNCIA, REVOGAÇÃO E DIREITO ADQUIRIDO

Maria Coeli Simões Pires Professora da Faculdade de Direito da UFMG

Introdução

Sob inspiração da modernidade, a idéia de ordem era conatural ao Di- reito, visto como um conjunto lógico, sistemático e coerente de representa- ções e de normas de conduta, a retratar a ilusão de uma sociedade homo- gênea. Mas, já sob tal paradigma, a profusão ou inflação de leis, a fragmen- tação da disciplina normativa, a incoerência e a obscuridade das prescrições compunham o quadro caótico de diversos ordenamentos jurídicos.

Nesse contexto, o Brasil não é exemplo isolado ou recente do indesejável fenômeno da inflação legislativa.

Ocorre, porém, que, hodiernamente, razões quase universais tendem a pressionar ainda mais os sistemas normativos, por força das demandas de inclusão e da dinâmica estimulada pela complexidade funcional da socieda- de, pela heterogenia que esta assume e pela perspectiva aberta do Direito, no contexto que se vem convencionando como sendo o da pós- modernidade.

Essa lógica de pressão sobre o ordenamento sugere ou mecanismos de racionalização para contraposição à desordem legislativa, ou mesmo um novo perfil de Direito positivo, informado por princípios e assim dotado da plasticidade necessária para socorrer as múltiplas e variáveis demandas de normatização.

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Na linha da primeira alternativa, observa-se que algum tratamento espe- cífico é dado à atividade de reorganização do ordenamento jurídico, medi- ante a previsão de formas de simplificação e de depuração das leis, notadamente na Áustria, Bélgica, França, Alemanha, Grã-Bretanha, Grécia, Itália, Espanha, Suíça e na União Européia.

Importante resenha sobre as soluções desenvolvidas pela experiência ex- terna nos países europeus é feita por Rodolfo Pagano, sob o título “Notas sobre as formas de simplificação e de reorganização da legislação em al- guns países europeus”.1

É certo, igualmente, que, mais recentemente, vêm-se empenhando na tarefa de “consolidação” a Romênia, a França, o Canadá, a Itália e o Brasil.

Ordenamento jurídico brasileiro

Os números da pesquisa especializada sobre o ordenamento brasileiro mostram a extensão da base normativa interna, uma exorbitância que afronta qualquer critério de racionalidade. Quadros constantes do artigo “O ordenamento jurídico brasileiro”, de Ives Gandra da Silva Martins Filho2 , revelam que há cerca de 200.000 documentos legislativos federais, dos quais mais de 45.000 em vigor.

Esse quadro apresenta-se ainda mais preocupante se tomado sob o pris- ma da variedade de instrumentos normativos, mais de 20 formas, cuja compreensão só se faz possível a partir de cortes temporais tendo em vista os paradigmas constitucionais. Ainda impõe dificuldade maior a distinta natureza de que se revestem tais documentos em face dos comandos que lhes constituem a fonte de validade.

1 PAGANO, R. Notas sobre as formas de simplificação e de reorganização da legislação em alguns países europeus. Legislação, n. 18, jan./mar. 1997.

2 MARTINS FILHO, I. G. da S. O ordenamento jurídico brasileiro. Revista Virtual, n.3, jul. 1999.

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Assim, a tradição de proliferação legislativa, aliada à paradoxal omissão do legislador em relação a questões cruciais; as peculiaridades do ordenamento, entremeado de medidas excepcionais; a usual técnica de re- vogação tácita, a criar incertezas; o vício da lei extravagante; as remissões feitas de forma insuficiente, com o propósito de enovelamento da normatividade; a ausência de prática de republicação de leis alteradas subs- tancialmente; a ausência de efeito vinculante às decisões do Supremo quanto às Adins; e o desconhecimento, por parte do Legislativo, do comporta- mento do Executivo na aplicação dos comandos legislativos são fatores que comprometem a compreensão do sistema, o que frustra sobremaneira o ideal democrático e a materialização dos direitos, e, por que não dizer, inviabilizam a segura e responsável atuação do Legislativo, pela falta de domínio do universo normativo no qual intervém.

CaioMáriodaSilvaPereira3 chegaadizerqueaproliferaçãolegislativaé hoje o mais franco desmentido da presunção geral de conhecimento das leis. E, de fato, se o próprio parlamento não pode dominar todas as pro- víncias da normatividade, o que dizer dos cidadãos? Assim, há de se acolher a lição do civilista no sentido de que a lei a todos obriga, mesmo àqueles que a ignorem, não pela presunção ou ficção de conhecimento, mas pela exi- gência do interesse da própria vida social.

No entanto, há os que identificam como razão imediata das mazelas do ordenamento o estilo da Constituição vigente. Há quem afirme, referin- do-se à Carta de 1988, que a solução para o caos da legislação é “jogar no armário essa obra de copismo de esquerda”.4 Equivocada visão. Mais que o modelo constitucional, a legislação reflete o estado da própria soci- edade, a crise do Direito e da modernidade e a visão paradigmática do próprio tempo.

3 PEREIRA, C. M. da S. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

4 HADDAD, S. de F. Consolidação das leis federais. Marília: Universidade de Marília, [19—?].

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Tal quadro, observadas as proporções, é o mesmo que se delineia no âmbito do Estado de Minas Gerais.

Diante da realidade nacional, é justificado, sob o pálio do paradigma do Estado Democrático de Direito, o movimento de Brasília voltado para a valorização da técnica legislativa como ciência e como instrumento da de- mocracia e para a racionalização ou reorganização do ordenamento jurídi- co, conquanto se deva colocar sob reflexão aprofundada a opção metodológica da consolidação.

Merece também aplausos o esforço que, na esteira da União, ganha fôle- go no âmbito de Estados como Minas Gerais.

Um novo alento à democracia se vislumbra neste momento em que a matéria começa a ganhar importância, especialmente entre juristas, lógicos, sociólogos, políticos e técnicos da produção legislativa. Nesse contexto, deve- se assinalar que as decisões acerca da simplificação e da reorganização do corpus legislativo pertencem à esfera política, mas o discurso sobre as for- mas de simplificar é de ordem técnico-legislativa. E é, sobretudo, para os técnicos e juristas que se apresenta o desafio maior.

Simplificação/consolidação/racionalização e o desafio

Que desafio é esse que se coloca aos que se propõem a tarefa de reorga- nização, racionalização ou consolidação do ordenamento?

Para se aquilatá-lo, tematizando a consolidação (como a recolha, a coorde- nação e a sistematização formal de leis em vigor, sem alterações substanciais e como um clássico método de reorganização geral da legislação), mister se faz recordar lição do Prof. João Baptista Vilela5 , que, referindo-se ao desconfor- to psicológico inerente à atividade do consolidador, lembra que lhe cabe “um fazer que suscita, nas suas expressões paradoxistas, o sonho do impossível:

5 VILELA, J. B. Da consolidação das leis civis à teoria das consolidações: problemas histórico- dogmáticos. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 23, n. 89, p. 323–337, jan./mar. 1986, p. 333.

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formular sem produzir, reescrever sem alterar, dispor sem impor, eliminar mas não extinguir, criar o novo e no entanto manter o velho”.

A advertência de Vilela sugere limites especiais ao consolidador, não obstante não se possa reduzir sua atividade ao âmbito da estrita neutralida- de, uma vez que, pressupondo interpretação, atrai a idéia de liberdade, ain- da que restrita. Tal sorte de limitação, contudo, parece sugerir uma certa incompatibilidade entre a função legiferante e criadora do parlamento e a atividade estritamente condicionada de consolidação.

De qualquer modo, o desafio material que se coloca ao consolidador é o de tomar o direito estático (enquanto mera opção regulativa) ou objetivo e confrontá-lo com as sucessivas estatuições no tempo, atento especialmente às tensões de incompatibilidades, para identificação das possíveis revoga- ções e conformação do núcleo da opção regulativa no seu conjunto. Essa conformação pode ser feita segundo critério temático, ou de acordo com outro método de ordenação, compartimentação ou de distribuição topo- gráfica dos conteúdos normativos, ou ainda segundo combinações que res- pondam às ordens de interesse da coletividade e às necessidades do Direito positivo. Isto é, o desafio é buscar a simplificação das normas gerais que prevalecem no ordenamento legal.

Por outro lado, o desafio, sob a perspectiva temporal, é, sobretudo, o de conciliação do passado e do presente para adequação do ordenamento e para a anulação da distância cronocultural das regras, de modo a adequar as determinações preceituais da legislação ao sentido vigente no ordenamento.

Pois bem, a tarefa de reorganização ou consolidação das leis obedece a um iter, a técnicas e a métodos específicos; obedece a critérios variáveis de abrangência (geral, temática etc.); envolve procedimentos e limites operacionais ou condicionamentos próprios acerca de conteúdos, confor- me seja da alçada do parlamento, do Executivo ou de órgãos técnicos; e atende a critérios de simplificação e de ordenação.

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Do ponto de vista metodológico, o primeiro passo há de ser o conheci- mento do universo normativo, a sua disposição cronológica geral, seguin- do-se a disposição cronológica específica segundo o critério eleito. Só entao é possível dar curso às operações técnicas de racionalização, a começar pela identificação do Direito efetivamente em vigor.

Na seqüência, do ponto de vista técnico, pode-se falar, por exemplo, em categorização de operações relativas à sistemática, como exclusão de nor- mas intrusas, fusão de disposições repetitivas; relativas à linguagem, como normalização de grafia, atualização de denominações, homogeneização terminológica, eliminação de ambigüidades, etc; e, no tocante às relações entre as normas, eliminação de normas declaradas inconstitucionais, atuali- zação e adequação do texto tendo em vista derrogações expressas.

Não é nosso propósito, contudo, discutir esses aspectos, nem é este o espaço para travar discussão sobre questões pontuais. O corte de nossa exposição sobre a racionalização das leis deve ser feito pela linha da temporalidade. Mesmo porque em todo iter processual de simplifica- ção ou racionalização não se pode abstrair da temporalidade, seja ela a de edição do direito, seja a do presente, seja ainda e especialmente a do futuro, já que toda reorganização do Direito tende a prepará-lo para o tempo vindouro. O elemento tempo, contudo, há de ser conjugado com outros que integram o Direito.

Direito: sociedade, normatividade e tempo

Para tecermos um pano de fundo para as considerações que pretende- mos desenvolver daqui para frente, puxaremos, entao, três fios diferentes que fazem a trama do Direito: sociedade, normatividade e tempo.

Sociedade e Direito

O Direito, “um dos mais sofisticados instrumentos civilizatórios”, existe como mecanismo e resultado da evolução da sociedade e do Estado, con-

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cebido este como instância especial daquela e considerado em relação ao tempo e ao espaço que o circunstanciam.

A sociedade, em suas múltiplas dimensões e heterogenia, compõe, na linguagem de Luhmann6 , um “sistema global de comunicação”, do qual o Direito participa, seja como ordenação temporalmente válida, seja como concepção de valores para firmação de consensos, seja, ainda, como práti- ca, o que, em última análise, invoca a tridimensionalidade do Direito (fato, valor e norma), em contraposição às visões reducionistas do jusnaturalismo, do positivismo e do realismo jurídico.

A correlação entre Direito e sociedade dá-se em permanente tensão, sob o influxo de uma intensa variação de expectativas comportamentais que disputam a concretização no campo da experiência jurídica.

Trata-se do que Luhmann7 , ao desenvolver sua concepção de Direito, cha- ma de redução de expectativas comportamentais. Segundo ele, “o comporta- mento social em um mundo altamente complexo e contingente exige a realiza- são de reduções que possibilitem expectativas comportamentais recíprocas”.

A redução dessas expectativas, no nível temporal, equivale à normatização, isto é, à estabilização das expectativas sociais. Daí Cristiano Paixão Araújo Pinto8 direcionaroDireitoaumafunçãobásica:“ageneralizaçãocongruente de expectativas comportamentais normativas”. E porque essa “generaliza- são e congruência” se fazem segundo o critério da mais “alta seletividade”, o Direito positivo vige, ganha sua validade formal e a força de apoderamento da experiência jurídica.

Tal função, que se cumpre pela positivação do Direito, é informada pela imparcialidade do legislador na generalização de expectativas, diferentemente da imparcialidade do juiz, que se dá pela escolha da norma individual para cada uma das situações que o Direito deve abrigar, sem exclusão. Eis por que

6 LUHMANN, N. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

7 ibid., p. 109.

8 PINTO, C. P. A. Modernidade, tempo e Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 235.

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o desafio do legislador é generalizar a expectativa, em contraposição ao papel do juiz, que é o de particularizar a solução segundo a expectativa generalizada. A seleção de expectativas, ou a sua positivação, varia de acordo com o processo histórico que a circunstancia e reflete o crescente nível de comple- xidade da estrutura social, de acordo com mecanismos novos de validação

e legitimação da normatividade.

Tempo e Direito

Se há inegável relação entre Direito e sociedade, há de se reconhecer, também, a relação do Direito com o tempo. Eis que é a temporalização da expectativa o próprio sentido da positivação do Direito. Vem daí, e tendo em vista a inafastável referência do tempo à norma e aos fenômenos jurídi- cos, a importância de se compreender a concepção do tempo jurídico.

Oscar Tenório9, ao analisar a relação entre tempo e norma, mostra a indissociabilidade desses elementos como noção fundamental do Direito, sustentando, que o tempo é um dos pressupostos da norma jurídica. De fato, a lei – no dizer de Luís Recaséns Siches1 0, “vida humana objetivada” – tem dimensão temporal, que lhe fixa o nascimento e a morte.

O fenômeno jurídico, à sua vez, assentado na norma e sempre circuns- tanciado por tempo e espaço, atrai, também, a discussão acerca desses nú- cleos, transcendendo o campo de formação da lei para a seara de sua aplica- são. O tempo jurídico é, assim, elemento científico do Direito como pro- dução, como aplicação e como controle ou interpretação e, como tal, é tratado ao influxo de sucessivos paradigmas de conhecimento.

O tempo foi sempre elemento primordial na organização das socieda- dês, seja sob inspiração utilitarista, seja como objeto do conhecimento fi-

9 TENÓRIO, O. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955.

10 Citado por: BATALHA, W. de S. C. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980. 118



losófico, a partir mesmo da dimensão trágica da temporalidade do ho- mem. Eis que medir o tempo é cortejar a morte, é admitir a finitude.

Assim, a percepção do fluxo do tempo segue a evolução da ciência, como lógica associação homem-tempo. Daí, a multiplicidade de categorias temporais: o tempo do racionalismo, o do o criticismo, o do idealismo, o do positivismo, o do marxismo, o tempo coletivo, o tempo fenomenológico, o tempo existencial, entre tantos.

Malgrado a multiplicidade de teorias sobre o tempo, a visão de linearidade estabeleceu o seu primado, assentando-se o tempo jurídico na concepção unitarista da temporalidade, visão que tem prevalecido no Direito, mesmo contra novas tendências da ciência.

Sabe-se que a maneira como a ciência encara o tempo, nos dias atuais, vem sofrendo mudança radical. Tendência que se faz mais nítida quando se tomam em conta as contingências da pós-modernidade, sob cuja influência a noção de tempo experimenta drástica reconfiguração, graças aos avanços da tecnologia de comunicação (v.g., internet), à mitigação das fronteiras na- cionais/espaciais (v.g., globalização) e ao surgimento de novas formas de conhecimento não limitadas pelo rigor da lógica clássico-aristotélica.

Sabe-se, igualmente, que o Direito vem, no entanto, apresentando resis- tência à apropriação das novas formulações ditadas pelo avanço da ciência, preso a antigas e superadas concepções. Qualquer tentativa de reconfiguração da dimensão temporal do Direito é recebida pela dogmática com reações hostis, enquanto os institutos jurídicos, sustentados pela sedimentação da doutrina e da prática jurisprudencial, continuam informados pela noção linear e monolítica do tempo. Desse modo, apoiada em premissas da con- cepção unitária do tempo, persiste a teoria tradicional do tempo jurídico, tomado como noção espacializante – o tempo dividido em pedaços como o espaço.

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O tempo jurídico segundo a concepção clássica e a insuficiência das premissas do unitarismo temporal

Sob tal enfoque filosófico, o tempo jurídico é considerado em dupla perspectiva: estática e dinâmica. A primeira vislumbra-se no plano da normatividade abstrata, que é, em si, estático; a segunda diz respeito ao campo fenomenológico do Direito.

No campo estático, o tempo jurídico figura como elemento de edição do Direito e, por isso, de interpretação histórica, de sustentação do controle jurídico-formal da própria normatividade e como critério de integração e permanência desta no ordenamento. Nessa perspectiva, o passado prefigura o presente e o futuro.

O tempo jurídico dinâmico revela-se no plano da aplicação, no qual a norma ganha fluidez e variabilidade próprias da seara fática, conforme lem- bra Batalha11, ao afirmar que a “norma jurídica constitui esquema rígido a aplicar-se a uma realidade cambiante e flexível”. Ou seja: é no momento em que a norma jurídica escapa ao tempo da abstração, para alcançar a concreticidade ou facticidade, que se projeta a dinâmica do tempo jurídico.

Essas figurações tradicionais, apesar de importantes, são insuficientes. É que o próprio trato com a normatividade em abstrato não pode prescindir de múltiplas dimensões temporais, e a aplicação da lei ao caso concreto invoca não apenas a temporalidade desse caso, mas a historicidade dos sujeitos envolvidos, a temporalização da lei como momento da conduta humana e a temporalidade coletiva, entre outras dimensões, o que desafia a capacidade do Direito para a maior diversidade e abrangência de respostas e, por vezes, para enfrentar as contingências que escapam à linearidade das matrizes de regulação.

Desse modo, não se podem desprezar outras concepções de tempo, especialmente quando se leva em conta o caráter aplicativo do Direito como

11 BATALHA, W. de S. C., op. cit., p. 15.

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ciência social e, assim, a sua indissociabilidade da história. Ora, não se cons- trói o Direito, nem se maneja sua normatividade, nem se produz conheci- mento no campo jurídico com abstração da temporalidade de referência dos sujeitos envolvidos, que, para além do tempo jurídico estrito e linear, trazem a temporalidade do eu, no presente, num quadro que assim se torna mais abrangente.

Nesse sentido, as lições do filósofo Ivan Domingues1 2 acerca da necessi- dade, da contingência e da liberdade no tempo histórico podem ser apro- priadas para auxiliar na compreensão da historicidade do Direito e, especi- almente, na compreensão da possibilidade de abertura da textura da ordem jurídica, já que a normatividade, assim como a história, não pode ser toma- da como artificialização de uma unidade em perspectiva reducionista, fe- chada e totalizante do fenômeno jurídico. Em outras palavras: trata-se, no Direito, da impossibilidade de cortes de tempos jurídicos lineares ou distendidos, do mesmo modo que é impossível reconhecer “uma história sem acontecimentos, sem ações e sem homens”.

Luhmann13, à sua vez, apóia-se numa noção de tempo como interpretação social da realidade, desvinculada da experiência existencial e bem distinta da idéia de cronologia, sustentando ser o presente o único ponto de partida ou chegada, sendo o passado e o futuro linhas de horizontes. Segundo a concep- ção de Luhman, a função do passado é também radicalmente transformada.

Na mesma linha, o futuro, que era apenas mera presentificação de uma escolha já decidida anteriormente ou um resultado de interceptação no presente, apresenta-se, segundo Luhmann14, “aberto a um sem-fim de possibilidades, radicalmente diferente do passado. O presente é vivido como um ponto de inflexão instantâneo entre passado e futu-

12 DOMINGUES, I. O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história. São Paulo: Iluminuras, 1996, p. 100.

13 LUHMANN, N., op cit. 14 ibid.

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ro.” Sobre a importância do futuro para o Direito, escreveu Maurice Hauriou15:

“As sociedades humanas são ávidas pela serenidade. Elas a pro- curaram durante muito tempo no passado, apoiando-se, deses- peradamente, no costume. […] Em conseqüência de enorme revi- ravolta, elas procuram agora do lado do futuro, apoiando-se nas virtualidades”.16

Há, aqui, portanto, uma relativização do passado e do futuro como decorrência da mudança de percepção do tempo. No Direito positi- vo, há uma repercussão importante dessa nova conexão temporal e os estudiosos fazem um alerta para a necessidade de compreensão dessa mudança.

Cristiano Paixão Araújo Pinto enfatiza, nesse sentido, que o futuro substitui o passado como horizonte temporal predominante: o passado perde sua força de determinação ou conformação do presente e do futuro. O tempo e o Direito, dessa maneira, não poderiam mais ser concebidos na base de uma continuidade linear da natureza, como se os horizontes estivessem precondicionados, ou como se não pudesse o futuro ter outras possibilidades. “A assimetria das funções do passado, presente e futuro na diferenciação do sistema jurídico da sociedade moderna impede que se continue a interpretar a passagem do tempo como algo contínuo, como uma seqüência predeterminada de aconteci- mentos (…)”, afirma o autor.17

Nessa vertente, vem a calhar o estudo desenvolvido por François Ost. A par de denunciar o caráter fragmentário da teorização nesse campo, o autor

15 Citado por: OST, F. Multiplicité et descontinuité du temps juridique – quelques observations critiques. Contradogmáticas, v. 2, n. 415, p. 37–59, 1985.

16 Tradução livre de: “Les sociétés humaines sont avides de durée. Elles l’ont cherchée pendant longtemps du côté du passé, s’appuyant désespérément sur la coutume. A la suite d’un revirement prodigieux […], elles la cherchent maintenant du côté de l’avenir en s’appuyant sur les virtualités.” (ibid, p. 58).

17 PINTO, C.P.A., po. cit., p. 253

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abre novas perspectivas para a elaboração de uma teoria do tempo jurídico propriamente dito, voltada para a discussão sobre os modos de articulação das distintas temporalidades em cada sistema jurídico.

Por uma nova relação entre tempo e Direito: a contribuição de François Ost

Ost começa por notar que a dogmática jurídica não desenvolve uma teoria global sobre o tempo no Direito, limitando-se a analisar o problema de um ângulo técnico específico, qual seja, o da validade e da eficácia da lei no tempo, não havendo uma visão sistemática da relação entre tempo e Direito na literatura especializada.

Ost não pretende esgotar a análise das várias temporalidades jurídicas, mas apenas dar conta dessa multiplicidade, de maneira a evidenciar a categoria temporal como elemento carente de mais profundas investigações sob a óptica jurídica. O estudo de Ost é, assim, uma forma de ruptura epistemológica com a percepção jurídica estabilizada e instrumental do tempo.

Para introduzir o estudo específico das diversas temporalidades jurídicas, Ost traz à luz a contribuição de Husserl, que relaciona as categorias do presente, do passado e do futuro com as três funções do poder: executiva, judiciária e legislativa:

“O Executivo atua no tempo presente. O administrador aplica o Direito caso a caso.[…] Em contrapartida, surge o juiz como o homem do passado. Sua missão consiste em dizer o direito esta- belecido a propósito de fatos pretéritos. Enfim, o tempo do le- gislador é aquele do futuro. Pela atuação do legislador, o futuro permanece aberto; ele pode, mediante regras gerais, modificar as condutas sociais e, dessa forma, modelar a sociedade futura.”18

18 Tradução livre de:“L’exécutif se produit dans le temps présent. L’administrateur applique le droit au cas par cas; […] En revanche, le juge apparaît comme l’homme du passé. Sa mission consiste à dire le droit établi à propos de faits révolus. […] Enfin, le temps du législateur est celui du futur. Pour le législateur, l’avenir est ouvert; il peut, par des règles générales, modifier les comportements sociaux et ainsi modeler la societé future.” (OST, F. , op. cit., p. 41).

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A complexificação atual da teoria da tripartição das funções estatais não nega validade às idéias acima sumuladas, sendo, antes, um fator indicativo da necessidade de se aprofundar a análise.

Pois bem, com esse pano de fundo, Ost distingue sete temporalidades jurídicas diversas, que podem ajudar na compreensão da normatividade:

1a) Tempo de fundação: é um tempo dito original, místico, fundador de um grupo social e transfigurado em sua constituição, que aspira à pere- nidade.

2a) Tempo intemporal da dogmática jurídica: funda-se sobre a pretensa autori- dade e validade permanente dos princípios e regras invocados pela dogmática jurídica. Esse “presente onitemporal” faz tábula rasa do contexto histórico de enunciação e de aplicação do Direito positivo. Seu método principal é a glosa ou comentário de textos legais, que, visando à unicidade interpretativa, desconsidera o escoar do tempo social, que sempre exige novas exegeses para problemas até entao inéditos.

3a) Tempo da instantaneidade: o instante isolado pode, como em um passe de mágica, criar diversas situações jurídicas que perduram no tempo, por força dessa “magia” inicial.

Assim, a obrigatoriedade, elemento essencial ao conceito de Direito, é deri- vada de um tal momento, sem duração, que é “um puro instante de razão”.19

4a) Tempo de longa duração: liga-se a uma noção contínua do tempo. É graças ao tempo de longa duração que se tem o nascimento dos costumes, a acumulação de precedentes jurisprudenciais, a consolidação de situações de fato (v.g., prescrições aquisitivas). É também por força desse quarto gênero que ocorrem no Direito fenômenos classificados por Ost como negativos: destruição de provas, superação das razões da lei e erosão dos textos normativos em vigor.

19 OST, F., op. cit., p. 45.

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O pensamento jurídico moderno, amplamente orientado pelo positivismo, não leva em consideração a variável do tempo de longa duração, já que a missão do jurista se esgota na simples análise do Direito positivo vigente. Atualmente, no entanto, essa categoria do tempo tem sido utilizada pela escola do pluralismo jurídico como instrumento de estudo de ordens jurí- dicas diversas existentes sobre um mesmo território, v.g., favelas e colônias.

5a) Tempo prometeico: o tempo prometeico é altamente valorizado pelo pensamento jurídico moderno e abre perspectiva para o futuro, já que pri- vilegia o voluntarismo e tem em vista a realização de objetivos traçados pela razão humana. Essa variedade temporal tem como principais manifesta- ções o processo legislativo, especialmente no que toca às normas dirigentes, e as codificações.

No Direito positivo, a temporalidade prometeica sustenta a idéia de or- ganização, de instrumentalização de alternativas e de antecipação de regula- mentações jurídicas.

6a) Tempo revolucionário: a aceleração da história e o fervilhar de novas idéias fazem com que o tempo não apenas se projete para o futuro, mas dê à luz o próprio futuro.

7a) Tempo de alternância entre o avanço e o retrocesso: todas as outras variedades temporais são, na verdade, idéias-tipo insuscetíveis de realização completa na realidade, o que não ocorre com esta última espécie temporal. O tempo de alternância entre o avanço e o retrocesso revela permanente tensão do Direito.

Após dar por findo o exame das sete variantes temporais, Ost tenta encontrar um elemento comum a todas elas, assinalando como tal a aspira- ção à durabilidade, a sustentação de uma ordem de permanência. Explica que o Direito necessita de um tempo que, renegando o que há de aleatório na existência, seja uma referência para a regulação das relações sociais, para solução das contradições inerentes à sociedade. Admite que até mesmo o tempo instantâneo pode enquadrar-se nessa consideração, ao reconhecer

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que a obrigatoriedade das normas que reside no “instante mágico” é uma forma de negar a contingência do tempo aleatório.20

Entretanto, a durabilidade que o Direito tem como escopo não é a mera estratificação de solução numa linha cronológica. Assim sendo, a interação, a confrontação e a comunicação dos diversos paradigmas temporais podem oferecer ao intérprete e ao aplicador do Direito soluções até entao inéditas.

Outra não é a compreensão do fenômeno temporal e dos paradoxos que ele guarda revelada pela fala de Carvalho Netto21, que alude ao tempo como “o significado mesmo do ser do humano”. Ele percebe o tempo pregnando o objeto da ciência – tendo em vista que “a reflexão ‘temporaliza’ os conceitos” – e explica-o como indisponibilidade, na condição de passa- do reconstruído no presente, e como contingência, na condição de futuro no presente mesmo projetado.

Nessa linha, Carvalho Netto mostra que, na relação com o tempo,

“A sociedade se faz instável por si e assim produz contingência, já que, no presente, tudo também pode ser diverso. […]. Assim, a legitimidade da sociedade moderna reside na impossibilidade de nela se produzir uma representação natural e sem concorrência da sociedade e que lhe sirva de fundamento inquestionável já que compartilhado por todos”. 22

E é esse tempo em sua complexidade que deve compor os elementos de reflexão sobre a normatividade no tempo.

20 OST, F., op. cit., p. 58.

21 CARVALHO NETTO, M. de. Apresentação. In: PINTO, C. P. A. Modernidade, tempo e

Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. XI. 22 ibid., p. XIII.

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Normatividade no tempo:

permanência, mutação e conflituosidade

As normas seguem a evolução da sociedade e se alimentam pelo mesmo processo histórico de desenvolvimento, para além da linha cronológica de um tempo contínuo.

É, sobretudo, sob inspiração filosófica unitarista, e no âmbito da teoria clássica da temporalidade jurídica, que se distinguem a estática e a dinâmica, que se desenvolvem as formulações encontradiças na doutrina e na juris- prudência sobre a vigência, a eficácia e a revogação da lei.

Qualquer que seja a perspectiva sobre o tempo, a discussão da lei como opção regulativa abstrata e o ajustamento do plano normativo ao da facticidade pressupõem a adequada apropriação das noções de vigência e eficácia – malgrado insuficientes para explicar os paradoxos da temporalidade do Direito.

Kelsen23 distingue validade e eficácia. Associa a primeira à existência de uma norma que obriga no sentido do dever-ser do Direito, assentada em uma norma fundamental hipotética, que é a Constituição, e faz corresponder à segunda – eficácia – a condição de ser do Direito.

Miguel Reale24 adota o termo validade em sentido amplo, dele fazendo derivar a validade formal ou técnico-jurídica, inserida nos domínios da vi- gência; a validade social, no sentido de eficácia ou efetividade; e a validade ética, no sentido de fundamento da norma jurídica.

Tratemos, inicialmente, da vigência. A vigência diz respeito à facul- dade impositiva da norma, à “executoriedade compulsória de uma regra de direito, por haver preenchido os requisitos essenciais à sua feitura ou elaboração”. Trata-se do reconhecimento, no tempo, de uma matriz de regulação – a priori válida – ou da estabilização de expectativas comportamentais selecionadas mediante sua imposição como ordem geral.

23 KELSEN, H. Théorie pure du Droit. 2 ème éd. Paris: Dalloz, 1962. v. 7.

24 REALE, M. Lições preliminares de Direito. 2. ed. São Paulo: Bushatsky, 1974.

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Pode-se dizer, apropriando as idéias de Luhmann25, que a validade for- mal ou vigência do Direito positivo diz respeito à forma de seleção das expectativas e à sua generalização em abstrato; diz respeito à condição da positivação do Direito e à integração de sua força como ordem geral que a todos submete. Em outras palavras, a norma produzida segundo os crité- rios estabelecidos pelo ordenamento passa a ter força obrigatória, após fixada sua existência pela publicação e configurada a sua vigência, confor- me nela mesma estatuído.

Tais condições se articulam em três ordens distintas:

a) a de legitimidade subjetiva, no sentido de que a lei deve ser declarada pelo “poder competente como tal enunciado por uma norma constitucio- nal de reconhecimento”26;

b) a de legitimidade ratione materiae, relativa à temática sobre a qual a legislação versa; e

c) a de legitimidade de procedimento, para o que importa analisar a ma- neira pela qual o órgão exercita a competência legislativa, incluindo a obser- vância de prazos, de quórum e de formalidades.

Faltando legitimidade, o diploma legal não trará conseqüência jurídica.

É certo que ao legislador cabe escolher o momento de entrada em vigor da nova lei. Entretanto, na falta de disposição a respeito, prevalece, no âm- bito interno, a vacatio legis fixada em prazo único ou simultâneo de 45 dias após a publicação da lei, e para Estados estrangeiros, quando for o caso, a de três meses a contar da publicação.

A Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei no 4.657, de 4/9/42) e a doutrina relacionam imposições específicas referentes à vigência, quais sejam: no caso de republicação da lei por erros materiais ocorrida antes da entrada em vigor, prevalece, para os artigos republicados, novo prazo con-

25 LUHMANN, N. , op. cit.

26 HART, apud REALE, M., op. cit., p. 118.

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tado da última publicação; para as emendas e correções da lei no curso de vigência desta dá-se tratamento de lei nova, sendo que os direitos adquiri- dos sob o pálio da lei antes de sua retificação devem ser respeitados; em caso de legislação dependente de regulamentação do Poder Executivo, con- sidera-se suspensa a vigência até a expedição do decreto executivo, isto no tocante à parte carente de regulamentação.

Cabe registrar, quanto às leis em vigor, que não cabe ao Legislativo ou ao Executivo decretar a sua inconstitucionalidade; a matéria fica na alçada do Judiciário. O que se reconhece ao Executivo e ao Legislativo é o poder de recusar eficácia a uma lei flagrantemente inconstitucional, caso em que cabe ao interessado na aplicação ir a juízo para provar a legitimidade da norma impugnada.

Feitas essas considerações sobre a vigência, registram-se breves anota- ções sobre a eficácia. Esta refere-se à aplicação ou execução da norma jurídica e incide sobre uma conduta humana temporalizada. Diz respeito ao cumprimento efetivo do Direito por parte de uma sociedade, ao “reconhe- cimento” do Direito pela comunidade ou, mais particularmente, aos efeitos que sua regra produz.27

Há leis, no entanto, que, mesmo vigentes, não ganham eficácia, situando- se em um verdadeiro limbo da normatividade abstrata. Não ganham curso no campo da realidade, não se revelam como momento de conduta huma- na. São aquelas leis que violentam a consciência coletiva, provocando reação da sociedade; as que entram em choque com a tradição de um povo ou não guardam correspondência com valores primordiais da sociedade; aquelas que contrariam tendências e inclinações no seio da coletividade. Em alguns casos, não logrando eficácia espontânea, só são cumpridas de maneira com- pulsória e, às vezes, nem desse modo são cumpridas.

27 REALE, M., op. cit., p. 125–126.

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Vê-se que tanto a vigência quanto a eficácia suscitam irremediavelmente o cotejo da norma com a linha do tempo jurídico.28 No plano da vigência, o tempo jurídico opera como marco da normatividade abstrata ou de imposição de escolhas de expectativas comportamentais, ligando-se ao pro- cesso formativo extintivo da normatividade e ao reconhecimento da auto- ridade de sua emanação no tempo, como ordem geral; no da eficácia, o tempo jurídico acompanha o caráter experimental da normatividade.

A norma, como instrumento de segurança da sociedade, é informada pelo princípio da permanência ou continuidade.

A lei, tendencialmente rígida e permanente, pode sofrer transformação ou extinção, por força da inexauribilidade da fonte formativa do Direito positivo, para fazer face às demandas de alteração da ordem ou à pressão do fluxo de alternativas comportamentais disputantes.

Ou, no dizer de Luhmann29, as normas jurídicas válidas “tornam-se ob- soletas ou mudam o próprio sentido ou escolha entre as expectativas ou possibilidades, ou funções e, quando a sociedade se transforma, novas nor- mas as substituem”. Ou, na visão tradicional, as leis nascem, duram, trans- formam-se e morrem, pelo fluir natural ou por golpes que as assaltam no tempo, por força das mudanças decorrentes de demandas sociais.

É certo, também, que as normas estarão mais protegidas, conforme re- presentem expectativas enfaticamente generalizadas, e, assim, passíveis de plasticidade para adequação à própria sociedade mutante.

Bem por isso, afirma Caio Mário da Silva Pereira30 que a lei em vigor permanece vigente até que seja colhida por uma força contrária. De fato, não se destinando à vigência temporária, a lei estará em vigor até que outra a modifique ou revogue.

28 REALE, M., p. 125–126.

29 LUHMNANN, N., op. cit.

30 PEREIRA, C. M. da S., op. cit.

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Sabe-se que as leis temporárias desaparecem ao fim do tempo previsto para sua aplicação. Não podem ultrapassar seu termo final, salvo prorroga- ção tácita ou expressa. Exemplo de prorrogação tácita ocorre quando a lei orçamentária não é votada para o exercício seguinte, omissão que se resolve pela aplicação da lei relativa ao ano findo.

A cessação de vigência pode decorrer do definitivo desaparecimento da circunstância de fato que tenha ditado a norma, como bem exemplifica o caso de uma lei vinculada a uma situação de guerra.

Entretanto, mais comum é a revogação, que pode ocorrer de modo total, tomando o sentido de ab-rogação, e que abrange, além da lei, as disposições dela dependentes ou as acessórias, ou de modo parcial, caracte- rizando a chamada derrogação. Tal expediente não retira a lei de circulação, eis que ela se mantém, apenas amputada na parte atingida.

Por outro lado, a revogação pode ser expressa ou tácita. A primeira ocorre com a declaração extintiva inserta na lei, sendo essa forma a mais pacífica e segura. A revogação tácita ou indireta decorre de uma incom- patibilidade entre a lei antiga e a nova lei, e, como é incompossível a existência simultânea de normas incompatíveis, o problema deve ser re- solvido com o auxílio de alguns princípios: lei nova de hierarquia superior ou igual à da lei anterior com ela incompatível revoga a lei anterior; uma lei nova, ao regular por inteiro a matéria versada na lei anterior, opera a revogação da lei mais antiga; leis gerais e leis especiais não se mostram, via de regra, incompatíveis; etc.

Sob a tensão do tempo, a dinâmica da vida comunica ao Direito e, assim, à lei a lógica da permanência e da mutação. O Direito, por seu turno, influen- cia a realidade, de modo que vida e Direito reciprocamente se influenciam.

Por isso mesmo, o Direito não se constrói em processo linear, sem so- bressaltos, consoante a lição de Lessa31 :

31 LESSA, P. Estudos de philosophia do Direito. Rio de Janeiro: Liv. Francisco Alves, 1916, p. 37.

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“O direito, pois, não se forma suavemente, do mesmo modo como os usos da vida comum, segundo pretende Savigny, mas em meio de uma lucta incessante, pertinaz, como ensina Ihering”.

Ao contrário, o Direito positivo é vocacionado para surpreender a reali- dade, conforme afirma Batalha32:

“[…] o direito legislado surge inopinadamente, vive no máximo de sua pujante vitalidade e morre de um golpe, cortado pela san- ção de novas leis”.

Fluindo em seu curso normal, a lei nova deve trazer efeito imediato sobre o maior número possível de relações, tudo como corolário do prin- cípio universalmente consagrado: Lex posterior derogat priori. Postulado que ganha, em Mortati33 , a seguinte expressão:

“Sustenta-se que o efeito derrogativo da lei sucessiva encontra a sua fonte na própria lei anterior ab-rogada que condicionaria a própria eficácia na implícita condição resolutiva da entrada em vigor de uma lei sucessiva incompatível”.34

Tal efeito extintivo – é a regra – opera ex nunc, a partir do momento em que a nova vontade normativa substitui a precedente. Assim, a linha do tempo da normatividade desenrola-se segundo a tendência para disciplinar o presente e o futuro e, portanto, em posição de neutralidade com relação ao passado.

A aludida neutralidade, contudo, há de ser compreendida no sentido de que a normatividade estabelecida no tempo estático é pregnada positiva- mente pelo tempo dinâmico, assim, sem vocação para regência da realidade

32 BATALHA, W. de S. C., op. cit., p. 48.

33 MORTATI, C. Istituzioni di Diritto pubblico I. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

34 Tradução livre de: «Si è sostenuto che l’effetto abrogativo della legge successiva trovi la sua fonte nella stessa legge anteriore abrogata che condizionerebbe la propria efficacia all’implicita condizione risolutiva all’entrata in vigore di una legge successiva incompatibile .» (MORTATI, C., op. cit., p. 372)

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passada. Há de se compreender, porém, que, tomado o ordenamento como construção social e política, não se lhe pode negar a influência do passado na composição de sua historicidade, o que não corresponde a aceitar a força determinística do passado em relação ao futuro.

Já tomado sob a perspectiva dos entrechoques, o tempo dinâmico migra para o campo do Direito intertemporal conflitual, situando-se neste ramo a questão da irretroatividade das leis e dos limites de retrooperância da normatividade jurídica, em última análise, as indagações sobre a aplicação de leis em conflito.

De fato, a conflituosidade intertemporal alimenta-se dos sobressaltos do Direito, que opera por cortes, na fluência de sua vocação, conforme registra Batalha35:

“O tempo jurídico corta, opera dividindo, secando. Não é fluxo contínuo, não constitui um desenrolar-se, um evolver, um trans- formar-se. Opera por cortes e saltos numa realidade que insta, dura e se transforma paulatinamente”.

Exatamente por fugirem à linearidade, os esquemas normativos – liga- dos a uma “temporalidade estática” e incidentes sobre a realidade alimenta- da pela “temporalidade dinâmica” – podem atrair a intertemporalidade conflitual.

É nesse campo que o traço de neutralidade do Direito novo em relação ao passado, enquanto regulação de conduta, pode relativizar o efeito ex nunc da lei nova, e a lei antiga pode entao ter vida mitigada no entretempo jurídico, para resguardo do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e de coisa julgada.

A verificação da possibilidade de relativização está pressuposta na inda- gação a que se refere Batalha36 quanto à norma aplicável, tendo em vista a alteração da ordem jurídica no tempo:

35 BATALHA, W. de S. C., op. cit., p. 15. 36 ibid, p. 17.

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“[…] A morte de uma lei e o nascimento de outra lei, caindo no fluxo da realidade, que perdura, impõe a indagação acerca da aplicabilidade da primeira ou da segunda, ou acerca da aplicabilidade de um sistema jurídico intermédio ou de adaptação”.

A identificação da lei aplicável quando instalado o conflito intertemporal refoge, no entanto, aos domínios do Legislativo. A ele cabe tão só respeitar os limites da retrooperância da lei nova no seu mister de produção legislativa e, naturalmente, a ele se reserva a faculdade de definição de um regime jurídico de adaptação.

A solução da tensão entre segurança jurídica e justiça – o denominado “con- flito de leis no tempo” – desenvolve-se mediante o ajustamento do plano normativo ao da facticidade, no entretempo jurídico, como tarefa de interpre- tação e aplicação do Direito, a partir de operação que deve levar em conta as noções de tempo capazes de explicar a historicidade do Direito, da norma, do caso concreto, dos sujeitos envolvidos e da sociedade a que se refere.37

A temática específica do direito adquirido pode e deve ser trazida ao campo da produção legislativa e da sistematização ou racionalização das normas, eis que a garantia é estabelecida como limite oponível também ao legislador. A matéria, no entanto, deve ser amplamente discutida no campo da aplicação do Direito, como limite ou, sobretudo, como garantia dos jurisdicionados, sendo certo que ao legislador apenas cabe respeitar o direi- to adquirido, e não verificar na situação concreta a sua própria ocorrência.

O conflito intertemporal pode, sim, ser evitado pelo legislador por meio da definição de um regime de adaptação. Não lhe cabe, porém, instalado o conflito intertemporal, dizer qual a norma aplicável. Ao Judi- ciário compete dizer da configuração do direito adquirido e solucionar o conflito, determinando a norma de aplicação, cotejadas as circunstâncias jurídicas e fáticas.

37 BATALHA, W. de S. C., op. cit., p. 1.

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Demais disso – repita-se –, ciência social e historicidade são inseparáveis. O Direito é assim historicidade, e a solução dos conflitos instalados no seu campo devem ser tratados ao influxo de diversas temporalidades: da nor- ma, do caso, dos sujeitos envolvidos.

Essas variadas categorias temporais criam um cenário de multiplicidade que chega a lembrar, no extremo, o universo de tempos labirínticos imaginados pelo escritor argentino Jorge Luís Borges, aos quais Marcílio França Castro38, ao tratar do tempo na literatura do séc. XX, se refere da seguinte maneira:

“Nesse tempo labiríntico, um mesmo sujeito se multiplica em vários, e suas histórias se dispersam em infinitas séries temporais. Dessa multiplicidade, surgem paralelismos, convergências, diver- gências. Todas as combinações de histórias são possíveis: mesmo as que se negam, ou se aniquilam por contradição, coexistem […]”

Eis assim porque os móveis de segurança jurídica e de justiça que propul- sam o Direito são sempre, no presente, a instabilidade e a contingência, numa sociedade plural no seu desejo, na sua necessidade e na sua expressão.

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38 CASTRO, M. F. O tempo da vertigem na ficção de José Saramago. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais/ Faculdade de Letras, 2001, p. 111.

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