Poesias

< Voltar

Sou a Pedra redonda
Zoiúda
Que vigia sem parar os arredores.


Sou o Pico do Itambé
Encoberto de nuvens
Que se esgarçam ao primeiro sol.


Sou a Serra do Cipó
De sinuosas curvas
Perdidas entre nós
Cegos e
Vendados mistérios


Sou a Lapa da Boa Vista
Que soluça lágrima seca
Em tardes mornas de sol.


Sou o condado virgem
No recato de seus medos.


Sou o Quatro vinténs
Que corre para o Lucas
Em curso lento e choroso.


Sou o Morro Centenário
Que deita a cabeça no colo de Deus
Pedindo um cafuné
Na rara cabeleira.


Sou os veeiros depauperados
De outras riquezas encobertas.


Sou a Fonte do Vigário
Gotejando esquecida
Pelos cantos do Chaveco


Sou o coreto em destroços
Sufocando a sinfonia da vida.


Sou o palco do mundo
À espera da melhor peça.


Sou as ruas de Baixo e de Cima
E os becos sem saída.


Sou a Ladeira do Pelourinho
Batizada pelo grito escravo
Que retumba na senzala do tempo.


Sou o Paredão da Matriz
Na contenção da encosta
Da fé primeira.


Sou a palmeira gigante e altiva
Que ameaça o céu
Sem fazer requebros
Quase inerte sobre raízes profundas.


Sou o casario de linhagem nobre
Contrariando a lei da gravidade.


Sou o cargueirinho alienado
Que desce a rua
Atravessa a festa
O discurso
E estruma no chão
Em pose para a posteridade.


Sou a Capela de São Miguel
Que badala a morte
Ao dar sinal de vida.


Sou o prédio da Cadeia
E o pensamento livre
Que escapole inteiro
Ou em fragmentos
Pelas grades
E vai sem peia.


Sou Igreja Santa Rita
Em esplêndida janela
Espiando da colina
A cidade baixa
Ressuscitar das brumas.


Sou a gente
Que pede licença
Para pisar este chão
Para respirar estes ares
Para poetar sob este céu.


De onde vim
Só pra ser uma flor exótica
Entre rochas e colinas
Da minha terra.

Alto
Chamas
Cenas
De
Luz
Arauto
Do alto
Acenas
Chamas
Rasgando essas trevas
Espalhando o sopro
Por tua criação

Emergente
Emerge
Entre
De mim
Emergente
Menos ente
Mais gente
Emerge

Fulgente
‘’ Full’’...
Da Mortalha de um tempo
Do assombro do vazio
Nova face
Nova mulher
Na aventura do recomeço
Mias gente
Só.

De
Vagar
Cansado
Passo a passo
Lenta
Mente...
Com
Passadas
Toadas
Do Caminhar...

Eu
Ca
Li
Pito
Cheira
Bom
Quase
Bálsamo
De mim.

Sensual
Sem
Idade
Sensualidade
Não
Caduca.

Serro
Com Frio
De alma acalorada
Com Sol
E de sombra remansosa
Serro
Com chuva
E de sombra remansosa
Serro
Com chuva
E de ribeiros secos
Serro
Sem erro
Concerto de Minas
Velho Serro
Sem idade
Que teus serros
Vigiarão por nós
Serro
Com teus morros calvos
Sem tua farta cabeleira
De fala eloqüente
E memória silenciosa
Sem o tumulto do progresso

DESCENTRALIZAÇÃO E SUBSIDIARIEDADE

Maria Coeli Simões Pires

Maria Coeli Simões Pires é Professora de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UFMG, Mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da UFMG, Doutoranda junto à mesma instituição.

Sumário

  1. Introdução.
  2. Subsidiariedade do Estado

    no Brasil.

    1. A subsidiariedade em relação ao mercado.
    2. A subsidiariedade em relação à sociedade.
    3. A subsidiariedade aplicada ao federalismo.
  3. A descentralização como técnica de organização político-administrativa e a au- tonomia municipal.
  4. A descentralização como método democrático de planejamento, execu- ção e controle de políticas públicas e o municí- pio como espaço apropriado para as práticas participativas.
  5. Potencialidades e constrangi- mentos dos processos de descentralização no âmbito do federalismo cooperativo.
  6. Potencia- lidades e constrangimentos da participação po- pular.
  7. Recomendações.

1. Introdução

A descentralização, tradicionalmente to- mada, de um lado, como técnica organizati- va do poder político e, de outro, como meca- nismo de estruturação administrativa do Es- tado mediante a subjetivação de centros de- cisórios autônomos para instrumentaliza- ção de suas ações, modernamente, há de ser compreendida em suas novas conotações, à vista do princípio da subsidiariedade apli- cado às múltiplas relações do Estado com a sociedade e com o mercado e àquelas esta- belecidas pelos entes políticos entre si. Nes- se sentido, apresenta-se como modelo de relação do Estado com os núcleos de poder coletivo, como método democrático de con- cepção, execução e controle de políticas pú- blicas e como mecanismo do federalismo cooperativo.

Vista como área de investigação aquela emoldurada pela descentralização, o foco de interesse perpassa a ordem federativa, o campo da organização administrativa, e dirige-se de forma mais detida ao ponto das políticas públicas, levando em conta, nota- damente, as relações do Estado com a socie- dade, à luz de paradigmas democráticos, en- faticamente inclusivos da cidadania, sem descurar aquelas que se estabelecem com outros núcleos de poder.

Sabe-se que, nos sistemas capitalistas, três núcleos dividem o espaço da arquitetu- ra do poder coletivo: o Estado, como esfera pública governamental; a sociedade, como es- paço público originário, tendo no cidadão a simplificação de sua expressão; e o mercado, como núcleo privado, cujo móvel é o lucro.

Tais núcleos tendem a estabelecer entre si múltiplas relações de complementarieda- de, cooperação e interdependência, as quais devem, ao final, ser harmonizadas no âmbi- to do Estado como dimensão especial da so- ciedade.

Contrariando essa tendência relacional, pode prevalecer a lógica da centralidade e superioridade do Estado, noção que leva em conta a inépcia dos outros potenciais nú- cleos de poder decisório para as soluções desejadas e, ao mesmo tempo, a auto-sufici- ência da esfera governamental para o desi- derato.

Já a descentralização parte da crença do poder público na capacidade de outras ins- tâncias, ou, senão, da contingência de acei- tar o partilhamento das decisões com ou- tros núcleos, por força das conquistas de- mocráticas ou, simplesmente, das imposi- ções suspeitas de modelos de organização e gestão.

De qualquer modo, a construção filosó- fica subjacente à moderna descentralização parece basear-se no princípio da subsidia- riedade, incidente sobre as relações do Es- tado com aqueles núcleos.

O princípio, aplicado às relações do Es- tado com a sociedade e com o mercado, pos- tula o respeito, por parte daquele, às liber-

162

dades das pessoas, dos grupos e das orga- nizações e pressupõe instâncias ativas ca- pazes de fazer suas opções. A presença do Estado, perdendo a absoluta centralidade das atenções, deve-se registrar quando, onde e na estrita medida da necessidade de sub- sidiar a ação daqueles núcleos e, especial- mente, de harmonizar as múltiplas relações. Isso não significa, porém, a possibilidade de uma ordem social e econômica sem um disciplinamento jurídico estatal que regule as relações entre o indivíduo, o mercado, as instituições e o aparelhamento estatal.

À sua vez, a complementariedade de pa- péis das diversas órbitas de poder afasta a idéia da autoridade estatal como valor em si, para considerá-la relativizada à vista do jogo de forças e da trama relacional de que participa, o que não denota postura refratá- ria à autoridade legitimada.

Internamente, no tocante ao federalismo, aplica-se o mesmo princípio às relações en- tre os entes estruturantes da federação, pri- vilegiando-se o município, como esfera de execução de serviços públicos, e projetan- do-se a atuação subsidiária e sucessiva da esfera intermediária e da central. Pressupon- do o respeito às “ordens federativas mais simples” e assentada na unidade da fede- ração, a subsidiariedade invoca a ação pau- latina das esferas locais, regionais e nacio- nal, segundo os indicativos da demanda de ação governamental, a partir de sua locali- zação primária e da capacidade de respos- ta do poder público envolvido.

2. Subsidiariedade do Estado no Brasil

Para que se possa deslocar o princípio do plano de ideação para sua identificação na recente prática brasileira, registram-se as medidas que trazem subentendida essa ver- tente de subsidiariedade do Estado.

2.1. A subsidiariedade em relação ao mercado

Sob esse ângulo, registra-se a enfática de- terminação do comando constitucional do art. 173, que limita a atuação direta do Esta- do na atividade econômica ao caráter sub-sidiário e excepcional, quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. Essa limita- ção sinaliza o enfraquecimento do Estado empresário, seja sob regime monopolista fle- xibilizado ou concorrencial restrito (arts. 173 e 177 da Constituição da República) por meio das empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades estatais ou paraestatais. As privatizações, o retorno às concessões, as terceirizações e o apelo forte às parcerias do setor privado, por um lado, e a redução da intervenção indireta do Estado no mercado, representada pelo seu papel normativo, regulador, fiscalizador, fo- mentador e planejador (arts. 174, §§ 3o e 4o, e 179), operada especialmente pela política de desregulamentação da economia, com a prevalência das regras de mercado, por ou- tro, concretizam a ideologia da subsidiarie- dade, que, extremada ou distorcida pela política abstenceísta, ganha a conotação de liberalismo.

Nesse contexto, é certo que atividades econômicas típicas cabem ao mercado e que, em determinadas atividades, ele só pode atuar em complementariedade. Há ainda setores originariamente atribuídos ao Esta- do que, por mecanismos de cooperação, po- dem ser partilhados com o mercado. Assim, relações de complementariedade e de coo- peração entre o Estado e o mercado, tenden- tes a suprir as demandas do aparelhamen- to administrativo e a insuficiência de recur- sos da sociedade, são inevitáveis e até dese- jáveis. Contudo, devem ser travadas sob o pálio da ética, que há de informar toda a aplicação do princípio da subsidiariedade. Não podem, portanto, ser olvidados os li- mites à liberdade de negociação, sendo in- tangível o interesse público por transação entre agentes públicos e a iniciativa priva- da. Isso, por imperiosa imposição do prin- cípio republicano – fundamento de ordem política que rejeita o trato privado da coisa pública – e da isonomia – que obstaculiza o estabelecimento de privilégios em favor de qualquer agente do mercado. Do mesmo

Brasília a. 37 n. 147 jul./set. 2000

modo, a devolução de atividades econômi- cas ao mercado não é livremente transacio- nada, pois se submete a normas e princípi- os de ordem pública e a imposições de natu- reza ética que transcendem o plano das re- gras do direito posto.

Não é sem razão que a ética das privati- zações, a invocar a adequada relação entre o público e o privado, é questão recorrente nas discussões mais acaloradas de setores da sociedade e do mercado e constitui gran- de móvel de enfrentamento das forças polí- ticas.

2.2. A subsidiariedade em relação à sociedade

Entre nós, ressaltam como principais ma- nifestações do Estado subsidiário a partici- pação popular nos processos de decisão, por meio de formas sui generis de democracia semi-indireta, que têm garantido, no âmbito das instâncias colegiadas, o compartilha- mento do poder com as representações go- vernamentais e sociais, em arranjos que prestigiam o princípio da paridade em polí- tica setorial; a adoção do planejamento par- ticipativo especialmente voltado para a ins- trumentalização de progressista política urbana; a mudança de perfil institucional das administrações, decorrente da democra- tização dos órgãos responsáveis pela defi- nição e implementação de políticas sociais; e a valorização do controle democrático de gestão da coisa pública.

Esse quadro, que valoriza a integração do elemento social como componente da grande esfera pública, parece ganhar mais nítido contorno formal pelo acolhimento em nível legal da natureza pública do espaço coletivo não-governamental. É o que eviden- cia a controvertida Lei das Organizações Sociais, que, criando o Programa Nacional de Publicização, prevê o reconhecimento daquele caráter à atuação desenvolvida pe- las associações e fundações da sociedade nas áreas de ensino, pesquisa científica, meio ambiente, cultura, saúde, mediante a identificação dessas entidades de índole privada e sem fins lucrativos como organi-

163

zações sociais, cujo liame com o Poder Pú- blico se dá por meio de contrato de gestão.

Na linha das experiências indicadas, ve- rifica-se, no Brasil, uma tendência de demo- cratização da gestão por meio de práticas participativas, cujas raízes iremos encontrar nos movimentos sociais e no sindicalismo, que projetaram novo padrão de sociabilida- de política, enfaticamente traduzida na Constituição de 1988, a partir do parágrafo único do art. 1o, que incorpora o princípio da participação direta consignado na De- claração de Direitos do Homem.

Lembra Lyra que, a despeito da lógica corporativista dos sindicatos, a prática de democracia direta por eles adotada em mui- to contribuiu para a redemocratização, ao que se somam o basismo dos movimentos sociais catalisados pela Igreja Católica, o papel das organizações não-governamen- tais e o engajamento de setores da classe média1.

Desse modo, cabe destacar o papel de- sempenhado pela Igreja na institucionali- zação dos instrumentos de democracia di- reta, como o plebiscito, a iniciativa popular de lei e o referendo. No tocante à política pública de saúde, o Movimento Popular de Saúde e o Movimento da Reforma Sanitária estiveram na luta pela universalização do direito, garantindo o regramento constitu- cional compatível e a implementação dos mecanismos de democratização representa- dos pelos conselhos, conferências e outras instâncias. Relativamente à política de as- sistência social, ressaltam-se as iniciativas do Movimento dos Meninos de Rua, que ga- rantiram avanços significativos no trata- mento constitucional da matéria e o seu de- senvolvimento no plano infraconstitucional por meio do respectivo Estatuto, e ainda a atuação da Associação Nacional dos Do- centes do Ensino Superior, a que se atribui o mérito de ter colaborado para a incorpora- ção de mecanismos democráticos no texto constitucional2.

O certo é que, como fruto de um esforço plural de segmentos progressistas, podem-

164

se encontrar, por uma leitura da Constitui- ção, comandos expressivos que consagram modalidades variadas de participação po- pular. Confiram-se, a propósito, os arts. 14; 29, XII, XIII; 187, caput; 194, VII; 198, III; 204, II; 206, VI; 216, §1o, entre outros.

A partir de tais comandos e mesmo como resultado de variados processos informais, a prática que se vem desenvolvendo põe em cheque a democracia representativa tradi- cional consistente na escolha eleitoral dos representantes encarregados da tomada de decisões e apoiada unicamente na partici- pação institucional.

Contudo, se já se propugnou até pela ins- talação de poder popular para contrastar e suplantar a representação política, como se vislumbrou na proposta de composição dos conselhos populares de São Paulo, concebi- dos segundo a inspiração da Comuna de Paris, e, por outro lado, se defendem outros que se devam criar no âmbito do próprio Estado centros de poder corrosivos da insti- tucionalidade, tendentes a projetar ruptu- ras a partir da mudança de correlação de forças, sob o argumento de que a ampliação da cidadania é, por si, contraditória com a lógica excludente do capital, parece preva- lecer a ênfase à democracia participativa, segundo modelos conceituais que a distan- ciam do padrão soviético, para admiti-la compossível com a democracia representa- tiva densificada e com o capitalismo3.

Essa linha guarda coerência com o mo- delo constitucional que, mantendo a demo- cracia representativa, dá-lhe nova textura, ao consagrar formas de participação direta do cidadão e mecanismos alternativos de participação indireta.

Para Lyra, que aprofunda a reflexão acer- ca da experiência participativa brasileira, essa práxis tem-se dado de modo compatí- vel com a democracia representativa:

“Atualmente, a luta pela amplia- ção dos direitos de cidadania se inse- re em um espaço ético dotado de uma práxis e de uma eticidade política pró- prias, lastreada no respeito às regras do jogo vigentes, no âmbito de uma democracia essencialmente represen- tativa”4.

E mostra as possíveis influências sobre o regime capitalista:

“A participação é uma prática de aprofundamento da democracia e como tal poderá ou não concorrer para abalar o capitalismo. Dependendo da correlação de forças existentes, a luta pela democracia participativa aprimo- rará um regime de capitalismo demo- crático ou favorecerá a sua progressi- va superação”5.

2.3. A subsdiariedade aplicada ao federalismo

Da incidência do princípio no federalis- mo, observa-se a remodelação estrutural da Federação a partir de 1988, quando o muni- cípio ressurge vigoroso na reconstrução do Estado brasileiro, sobre os pilares da nova Constituição da República.

A Constituição de 1988, harmonizando contraditórios interesses e ideologias, assen- ta uma avançada disciplina da temática mu- nicipal, em resposta à força dos movimen- tos municipalistas atuantes na Constituin- te, empenhados, de um lado, no rompimen- to com a filosofia centralista de onipotência da União e, de outro, no fortalecimento do município como núcleo especial de política urbana e como instância política relevante e prioritariamente vocacionada ao papel de construção da cidadania material.

Assim, se já não tínhamos uma Federa- ção de traços tradicionais, a partir da nova ordem, ela mais se afasta daquele molde pela tonificação de suas peculiaridades, notada- mente no que toca à distinção de tratamento dado ao município. Ganha este relevância no plano federativo, não só pela excepcio- nalidade do status a ele conferido, pela sua categorização como entidade condômina, mas também pelo efetivo poder que a ele se atribui, pelo menos no plano normati- vo, como resultado da decidida inversão do movimento expansionista do poder central.

Brasília a. 37 n. 147 jul./set. 2000

Nesse sentido, a Carta, dando ênfase ao município e enaltecendo-o prodigamente em referências específicas, assenta a sua autonomia como elemento indispensável da organização federativa, promove a amplia- ção do campo autonômico nas diversas ver- tentes, principalmente a partir de coman- dos básicos preordenadores de sua lei orgâ- nica, além de integrá-lo na tarefa conjunta de construção do Estado democrático.

A leitura do texto constitucional eviden- cia a preocupação do Constituinte em forta- lecer a unidade local, quer no plano da es- trutura do federalismo, quer no das relações do município no seio deste, mediante parti- lha mais generosa de competências – embo- ra se verifique, ainda, a persistência de com- petências centralizadas, no tocante a uma gama considerável de matérias –, limitações às práticas clientelistas do Governo central e novo sistema de arrecadação e distribui- ção de recursos.

Por outro lado, a Constituição, ao esta- belecer as novas premissas para o cumpri- mento da função social da propriedade ur- bana, situa o município na centralidade da política correspondente.

Finalmente, sob a filosofia do Estado ga- rantidor, instila por todo o capítulo da or- dem social mecanismos de acesso do cida- dão aos benefícios do desenvolvimento, como forma de realização da justiça social, reconhecendo ao município papel impor- tante como agente de políticas públicas, a justificar, sob o ângulo prestacional, a prio- ridade da instância local no concerto coo- perativo do federalismo.

Sob a perspectiva reconstrutiva do fede- ralismo, ressaltam-se as normas que defi- nem o quadro competencial do município, especialmente as que conformam o perfil de sua autonomia tributária nos arts. 157, 158 e 159 da Constituição da República, que, conjugadas com aquelas relativas a repas- ses financeiros (arts. 34 e 165 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), fortalecem potencialmente o quadro muni- cipal de finanças.

A Constituição prevê a presença exclu- siva do município no centro de áreas por ela especificamente coarctadas ou atraídas ao abrigo da autonomia pela regra geral do interesse local, de resto definidora do raio do campo autonômico naquela esfera. Ace- na, ainda, para soluções mediante coopera- ção entre a União, os Estados, os Municípi- os e o Distrito Federal, consoante o disposto no art. 23, parágrafo único, e em outras pas- sagens, em que sinaliza para a interação dos diversos níveis de governo. O novo arranjo de competências densifica, assim, a atua- ção municipal em diversos campos, de for- ma exclusiva ou enfaticamente compartilha- da, já que, além de disposições que proje- tam o enquadramento de um federalismo co- operativo, o espaço da competência comum invoca, por si só, a lógica da cooperação.

Tudo isso autoriza a afirmação de Aspá- sia Camargo de que “o Município é a gran- de ousadia do Constituinte de 1988”.

3. A descentralização como técnica de organização político-administrativa e a autonomia municipal

É certo que a descentralização é um fe- nômeno internacional de contornos própri- os em cada realidade que lhe serve de su- porte de aplicação.

No cenário interno, a temática, conota- da por variadas modalidades, tem sua pro- jeção variável no tempo. Há períodos mar- cados pela ênfase à descentralização políti- ca, conquanto contraditoriamente submeti- da a movimentos pendulares de constrição e de expansão, e outros, em que o norte da descentralização administrativa atrai as atenções. Hodiernamente ganha destacado relevo a descentralização como técnica de trespasse de responsabilidades a Estados e municípios e como método democrático de concepção, execução e controle de políticas públicas.

Na discussão da descentralização polí- tica, emerge nítida a importância do muni- cípio.

166

O município, herança da organização política dos romanos – quando Roma fir- mou sua hegemonia sobre a Itália Central ou quando o consagrou como fruto da con- cepção desenvolvida pelas reformas promo- vidas por Júlio César–, desde a origem, vi- nha dotado de relativa autonomia e de ins- tituições próprias, conformadas em quadro jurídico-institucional mais amplo6. Com o advento do Império, a autonomia munici- pal foi esvaziada, transferindo-se o poder à Ordem dos Decuriões, reservando-se aos in- tegrantes da Cúria, por nascimento ou elei- ção, a condição de municep, antes designati- va de qualquer cidadão7.

O município resiste à queda do Império Romano, sofrendo, porém, em certo perío- do, grande interferência da Igreja, para, de- pois, ganhar força na Idade Média, nos sé- culos XI e XII, na Itália, na França, em ou- tras nações européias e na Península Ibéri- ca, especialmente em Portugal, onde se pre- servam, na essencialidade, as característi- cas do Município Romano, e os municípios são marcados pelo espírito da reconquista, o que lhes influenciou a fisionomia da auto- nomia8.

No Brasil, a descentralização política, herança de Portugal, não é, também, cami- nho recente que se vem trilhando. Regis- tram-se como primeiras instituições regula- res na evolução político-social as vilas, re- guladas pelas Ordenações. Com elas, insta- la-se o poder das Câmaras, distribuído en- tre os chamados “homens bons” da Colô- nia, o que carreava para aqueles órgãos su- perlativa importância no quadro político- administrativo interno.

Sabe-se que, confirmando as tendências contraditórias da Coroa, que criava capita- nias e estimulava vilas, a descentralização foi tomada pelos portugueses como estraté- gia de ocupação territorial, modo mais se- guro de garantir a dependência da Colônia, mediante a dispersão de seu poder em di- versos pólos.

O resgate histórico da organização polí- tica brasileira mostra, todavia, que não há

Revista de Informação Legislativa

linearidade no processo de descentraliza- ção. Ao contrário, registra-se alternância centralização-descentralização-recentrali- zação.

Resume bem esse paradoxo a afirmação de Dória:

“… O Estado brasileiro atravessou todo o período imperial com o muni- cípio junjido à autoridade do poder central.

A luta contra a centralização atra- vessou todo o Império, refletindo-se na articulação dos republicanos, na dé- cada de 1870. O municipalismo e o federalismo confundiam-se. (…) A au- tonomia municipal, bandeira republi- cana, tinha de ser, portanto, uma das grandes preocupações dos constitu- intes de 1890”9.

Assim, a descentralização concebida ori- ginalmente em moldes bastante peculiares só mais tarde ganha a conformação federa- tiva com a Constituição de 1891. Não obs- tante isso, as Constituições estaduais repu- blicanas cercearam a autonomia municipal. No século XX, agrava-se a tensão entre au- tonomia municipal e centralização, até que emerge com força o municipalismo, na es- teira do movimento Pluralista. Seria, no en- tanto, a transformação do Brasil, de Estado agrário em um Estado essencialmente urba- no, o grande móvel de mudança do referen- cial de desenvolvimento, com repercussões naturais nas relações e nos modos de vida, levando a própria sociedade a dar suporte a precárias formas de descentralização para solução de seus problemas, criando-se es- paço para ampliação do poder das cida- dês 10.

Resistindo à força da lógica desse pro- cesso, a concentração do poder na esfera da União, com exceções raras de partilhamen- to, instalou-se com raízes profundas, em razão dos resquícios do colonialismo que impulsionou as cidades a partir de interes- ses e artifícios da Metrópole. Também teve forte influência no quadro brasileiro a im- posição de uma relação autoritária que se

Brasília a. 37 n. 147 jul./set. 2000

estabeleceu ao longo dos anos, com breves hiatos de prestígio da instituição munici- pal, com a agravante de que, em determina- dos contextos, o enaltecimento do munici- palismo era a estratégia de fortalecimento da União. Com isso, os Estados e municípi- os mantiveram-se neutralizados pela União e, anos a fio, na periferia do poder, como meras instâncias gerenciais da União, sem significado na ordem federativa. Sujeitos à linha centralizante, de caráter racionalista, de prevalência da tecnocracia dos gabine- tes, o municipalismo ficou também desloca- do, como princípio ordenador de políticas públicas.

Sayad, na apresentação da obra “Muni- cípio: o poder local”, de Og Dória, que recon- ta a história do Brasil a partir da trajetória dos Municípios, sintetiza as reflexões do autor:

“São quinhentos anos de conflitos entre o poder municipal e a metrópole portuguesa, entre a cidade e o impe- rador, entre a cidade e a província e finalmente, entre o município e o go- verno federal. Entre centralização e descentralização, entre democracia e autoritarismo – um conflito pendular, que ora dá um pouco de fôlego aos interesses locais, mas logo o retira em favor do outro, seja de Lisboa, Rio de Janeiro ou Brasília. Mas um movimen- to pendular assimétrico, pois o poder municipal dura pouco, aparece antes como uma revolta ou uma reação de vida curta, logo derrotada pelo outro” 11.

Com efeito, a autonomia municipal, ape- sar de mantida em todos os textos constitu- cionais desde a sua inauguração nominal na Carta Republicana de 1891, foi, muitas vezes, relativizada ao longo da história bra- sileira, já que seu conteúdo não se manteve uniforme nem esteve infenso aos interesses da Coroa, às vicissitudes dos regimes e aos caprichos dos ditadores ou tecnocratas.

Novas perspectivas só se abrirão aos mu- nicípios na década de 80, a partir da mobili- zação da sociedade, da abertura política e

167

da distensão, e vão ganhar corpo na Consti- tuição de 1988, a qual prescreve tratamento privilegiado à entidade local, integrando-a, formalmente, à Federação e agregando, ain- da, ao poder local a competência para a ela- boração de sua lei orgânica. Tudo isso vem consolidar, de modo expressivo, o conteúdo da autonomia municipal, sob o pilar do in- teresse local.

A Constituição de 1988 traz, portanto, um arranjo consistente da autonomia em fi- sionomia retratada a partir de quádruplo enfoque: político, auto-organizatório, finan- ceiro e administrativo.

Tomada em leitura comparativa com di- versos quadros de poder local em países de- senvolvidos, denota a Constituição pátria a posição privilegiada do Brasil quanto à des- centralização política.

Há de se entender, contudo, que a auto- nomia municipal, antes de privilégio, é o de- safio que se apresenta a todas as municipa- lidades, que a devem estruturar no plano da realidade, sob pena, aí sim, de continua- rem os cidadãos, cada vez mais, reféns das burocracias estatais, em nítido processo de desrespeito ao verdadeiro interesse local, e as coletividades, progressivamente mais dependentes e sem referências.

A criatividade, ao contrário, pode dar maior vigor à autonomia, como, de resto, é exemplo a recente prática brasileira, confor- me relata Dória:

“No Brasil, as leis municipais re- sultantes do recente processo de de- mocratização abriram novas possibi- lidades de descentralizar a escolha dos dirigentes municipais a nível dis- trital e setorial, com os conselhos de bairros e os conselhos de educação, saúde e meio ambiente que estão sendo implantados em algumas cidades”12.

Talvez pela inadequada exploração, o conteúdo da autonomia reconhecida ao ente local, entre nós, não guarde relação direta com o nível de eficiência dos serviços no plano municipal. Ao arrojo de autonomia municipal neste País não corresponde o

168

grau de eficiência alcançado em outras ex- periências. Nem a forma de Estado nem tam- pouco o modelo de organização prefiguram os resultados. Externamente, a relação mais direta se estabelece em função dos modelos de gestão e do grau de identificação do ci- dadão com a esfera comunitária.

Esse quadro de ineficiência da instância local leva à reflexão acerca da imperiosa ne- cessidade de que as diversas facetas da au- tonomia encontrem atualizada tradução a partir de variados fatores que lhes impõem novos contornos: o princípio da subsidiari- edade, a que nos aludimos; os diversos ve- tores do poder local, sem excludência dos diversos centros potenciais de decisão que podem conformar novos pactos e negocia- ções; a crise do Estado e a globalização, que evocam a referência municipal como con- traponto na escalada universalizante das relações e que, pelas transformações que operam, podem favorecer a participação ci- dadã; e a emergência das cidades, como es- tratégia de superação das múltiplas crises no quadro contemporâneo e como espaço de convergência de práticas democráticas.

Depreende-se dessa ordem de cogitações que, além da reconstrução formal e material do federalismo de traço cooperativo, com ênfase para o ente local e repercussão no campo de sua autonomia, a concepção de- mocrática de Estado é fator de fortalecimen- to da esfera municipal de governo, a resse- mantizar o campo autonômico de sua ação.

4. A descentralização como método democrático de planejamento, execução e controle de políticas públicas e o município como espaço apropriado para as práticas participativas

A Constituição de 1988, consagrando o Estado Democrático de Direito e acolhendo as reivindicações dos movimentos organi- zados, firma o compromisso com a igualda- de material (na ditadura brasileira, havia a ilusória igualdade de cunho legal, com a qual se tinham por legitimados a priori os

Revista de Informação Legislativa

mais excludentes procedimentos). Sob a perspectiva democrática, a igualdade pres- supõe o gerenciamento e a conciliação das diversidades, na busca de um denomina- dor comum; invoca a garantia de acesso dos cidadãos aos serviços públicos sociais; con- sagra a universalização dos benefícios da seguridade social, entre outros; e traça a di- retriz de participação da sociedade na con- cepção, na execução e no controle das polí- ticas públicas, o que põe em realce, sobretu- do, o poder local e dá lugar à descentraliza- ção, sob o rótulo de políticas públicas parti- cipativas13.

Como conseqüência do agravamento do quadro social, da proliferação de práticas de ilegalidades, da ampliação da consciên- cia cidadã, do acolhimento em nível consti- tucional de múltiplos direitos densificado- res da igualdade material, a máquina públi- ca é impactada pela demanda cada vez mais densa e diversificada de benefícios, revelan- do-se ineptas as políticas existentes14.

À sombra da bandeira do neolocalismo como uma solução para as demandas soci- ais, o municipalismo passa a ser defendido sob enfoques diferentes e sobre bases ideo- lógicas distintas: como mero componente de engenharia administrativa, com vistas à cons- trução da eficiência na prestação do setor público ou como princípio democrático15.

Nesse contexto, pode-se dizer que a uni- dade em torno do municipalismo é mera- mente aparente: escamoteia um dissenso muito profundo. Daí por que o neolocalismo, como discurso recorrente, há de ser apreendido segundo as conotações que lhe emprestam os núcleos filosóficos subjacentes, os quais se inscrevem em genealogias intelectuais dis- tintas. A devolução de funções a entes sub- nacionais pode ser mera estratégia de reti- rada de poder do Governo central, como al- ternativa para uma recentralização impos- ta pelo próprio fracasso, ou de transferên- cia para a iniciativa privada, ou pode ser tida como postulação da democratização da gestão e da ampliação do controle social. Na primeira, o contraponto é o mercado

Brasília a. 37 n. 147 jul./set. 2000

como mecanismo locativo e na segunda, a participação da cidadania16.

De qualquer modo, não há negar a im- portância do município como esfera poten- cial de democracia como registra Carlos F. Quintanda Roldán, no prólogo da obra El Municipio:

“Coincidimos con el Dr. Robles en afirmar que el Município sigue siendo la mejor escuela de la democracia, ya que no existe mejor ámbito que la vida comunal para vivir y sentir los problemas que ge- nera la vida social, lo que a su vez nos plan- tea la participación solidaria de los vecinos en todo tipo de tareas, fundamentalmente aquéllas de connotación política”17.

De fato, coloca-se a cidade como espaço privilegiado de enraizamento da estrutura político-administrativa e de gestão política contemporânea, podendo-se demonstrar que é nessa esfera que se projetam soluções para superação das crises e se reúnem os ele- mentos e as condições de instrumentalização da cidadania e da prática democrática18.

Destaca-se, nesse sentido, a eminência das cidades, o que é enfatizado em diversas experiências de abordagem internacional e no tratamento de situações excepcionais de desequilíbrio, desde a década de 70, pas- sando pela Conferência das Cidades Euro- péias (Roterdã, 1981), pela crise do Leste Europeu, até chegar à Conferência Habitat de Istambul de 1996, que privilegia práticas administrativas participativas exitosas.

Por essa razão e, mais, por se encontrar sensivelmente impactado, por um lado, pelo marcante fenômeno de complexificação so- cial a impor a densificação de demandas e relações, em âmbito local, e, por outro, pela tendência globalizante da economia e da cultura, o município coloca-se como catego- ria funcional estratégica de garantia de re- ferência e de identidade dos cidadãos e ob- jeto de estudo multidisciplinar.

Sob a perspectiva democratizante, e com vistas à efetivação do princípio da cidada- nia ativa, evidencia-se a necessidade de se dotarem as instituições de maior identida-

169

de comunitária, alternativa chave para mo- dernizar a Administração, notadamente a municipal, e de condição favorável e prévia à participação, que postula a inclusão da cidadania para materialização da democra- cia política, econômica, social e cultural, por meio de adequadas políticas públicas19.

Sánchez, discorrendo sobre planejamen- to no México, enfatiza a necessidade da am- pliação da participação organizada, de modo a assegurar, no âmbito do planejamen- to e da execução das políticas, a ingerência universal do povo, tomado como objeto e sujeito da administração democrática, como elemento do processo de mudança:

“… para que los planos tengan expre- sión en el espacio y tiempo concretos de nuestra realidad institucional y nacional, se deberá nutrir y robustecer con el nece- sario alimento de la real opinión pública directa o indirecta”20.

E arremata o autor:

“De esta forma los planes serán el re- sultado natural de la verdadera expresi- ón del pueblo, de la auténtica voluntad popular que a través de la consulta y opi- nion forme parte del proceso dinámico de transformación para llevar al país a los niveles de desarrollo deseados, por cami- nos de integración, unidad y democracia, y del real sentir del pueblo mexicano”21.

Sánchez enumera as mais variadas mo- dalidades de consulta como forma de parti- cipação cidadã no processo de planejamen- to, distinguindo-as, sobretudo, a partir dos objetivos com que são aplicadas: a popular, que ele considera, de certa forma, olvidada como instrumento de planejamento naque- la experiência; a adotada como forma de concertar vontades e interesses no quadro do federalismo, em que a solidariedade e a conjugação de vontades no âmbito da co- munidade nacional ganham relevo; a desti- nada a instrumentalizar a manifestação de vontade comum acerca de questões relevan- tes; aquela que funciona como instrumento catalisador de vontades discrepantes, par- tindo da obtenção de opiniões individuais

170

ou coletivas reconhecidas sobre matérias postas em debate; e a consulta como meca- nismo de diplomacia22.

Alerta, enfim, para a necessidade de re- formulação da lógica participativa:

“… las fórmulas de participación has- ta ahora usadas, han sido insuficientes en una trama tan compleja de relaciones so- ciales como las de nuestros días en Méxi- co, que exige, una tecnificación cada vez mayor de las decisiones; pero como con- trapeso, exige también, una reinversión de las fórmulas de participación directa de los administrados. Es decir, que es muy importante devolver el papel protagónico y la confianza a los ciudadanos”23.

Desse modo, enfatizam-se as chamadas políticas públicas participativas, as quais, como evocação da própria adjetivação, hão de ser tratadas não apenas no âmbito das institucionalidades da seara do governo, mas também sob enfoque que se apóie em noção mais abrangente de política, como formulação, na ampla esfera pública, de res- postas às demandas sociais.

Essa a razão pela qual a análise aqui de- senvolvida, conquanto prestigie o ente lo- cal no cenário das políticas públicas, não se atém às de caráter governamental, mas con- sidera todas aquelas engendradas pela plu- ralidade dos centros de poder, isto é, o Esta- do em suas diversas instâncias e a socieda- de em suas múltiplas manifestações orga- nizativas.

No Brasil, pode-se perceber alguma alte- ração na lógica das políticas públicas, es- pecialmente as governamentais. Vê-se que o quadro de múltiplas demandas e o apelo de participação precipitaram os processos de descentralização e cooperação, que têm conduzido à formação de várias políticas setoriais, sob novos moldes, alimentados, também, por tendências internacionais. O Sistema Único de Saúde – SUS –, que teve sua matriz na Reforma Sanitária Italiana de 1978, as políticas de controle social, que têm sua inspiração na França socialista, são exemplos. Mais recentemente, ganha ênfa-

se a descentralização do ensino e da políti- ca de direitos humanos no âmbito dos di- versos conselhos24.

5. Potencialidades e constrangimentos dos processos de descentralização no âmbito do federalismo cooperativo

Na discussão da perspectiva descentra- lizante, seja sob o enfoque do federalismo cooperativo, seja sob o da participação da sociedade nas políticas públicas, emergirão, naturalmente, as potencialidades e os cons- trangimentos do processo, o que conduz à necessidade de sua desmistificação, em vez de uma postura a priori de apologia ou de rejeição de sua prática.

No Brasil, a descentralização vem ocor- rendo de forma descoordenada, improvisa- da, artificiosa e impositiva, o que gera uma série de dificuldades para os diversos ní- veis de Governo, para os usuários dos ser- viços públicos e para a sociedade civil. Con- seqüentemente, há necessidade de uma re- flexão mais abrangente e profunda acerca do processo, para percebê-lo, não só em suas potencialidades e resultados imediatos, mas, sobretudo, sob a perspectiva dos constran- gimentos que impõe, exatamente para que seja possível vislumbrar alternativas de su- peração.

Os processos de transferência de políti- cas públicas para entes subnacionais, em especial para a esfera local, vêm- se desen- volvendo sem os satisfatórios pressupostos das negociações políticas, impondo-se pela lógica autoritária no traspasse dos serviços sociais.

As bases de cooperação federativa não estão sequer suficientemente disciplinadas, nem pela via legal nem pelos pactos sociais.

No condomínio de poderes da Federa- ção, há reconhecida ambigüidade na repar- tição de competências, e essa ausência de clareza em relação ao sistema de partilha de responsabilidades repercute no plano da aplicação.

O quadro de indefinições, incertezas e conflitos, por sua vez, acaba por gerar re-

Brasília a. 37 n. 147 jul./set. 2000

sistências e disfunções, com sérios prejuí- zos para a eficiência na execução das políti- cas. As resistências recíprocas da União, do Estado e do município neutralizam os es- forços em processos camuflados por falsos discursos, tendo as relações de poder subja- centes como substrato informador.

Assim, a União, ao assumir a vertente da descentralização, encontra barreiras na- turais, externas e internas ao seu próprio aparelhamento, para estabelecer uma nova relação com níveis decisórios diferentes. Ao mesmo tempo em que se coloca como carro- chefe da descentralização, seja pelo apelo que o tema traz, seja pela irreversibilidade da solução, a União, por meio de sua buro- cracia, reage, sente-se ameaçada pela parti- lha de poder. Sem terem real clareza quanto à substantividade desse poder ameaçado, as pessoas envolvidas experimentam uma ansiedade malfazeja, que cria fantasmas e estrutura resistências, e, por isso mesmo, impeditiva da interação e da comunicabili- dade de informações.

É possível vislumbrar-se, igualmente, o nível de resistência conformado à esfera in- termediária. Contudo, em relação ao muni- cípio é que se percebe mais evidente o pro- cesso de obstaculização. Na descentraliza- ção, o município, sentindo-se ameaçado ou em posição de completa sucumbência em face das responsabilidades e encargos que lhe são transferidos, limita-se a contornar o caos por meio de soluções artificiosas. Há ainda uma agravante nesse ponto: as solu- ções admitidas no âmbito das políticas se- toriais descentralizadas são praticamente uniformes para os cinco mil municípios bra- sileiros, a despeito da realidade tão hetero- gênea que eles guardam. Isso gera, em face da diversidade do espaço territorial que constitui a base municipal, graves dificul- dades para os respectivos governos locais e afasta, cada vez mais, o município legal, o município ideal, do município real.

Não bastasse a resistência cristalizada pelo próprio ente local, há, ainda, precon- ceito por parte dos usuários em relação aos

171

serviços prestados pelo município. Existe uma tendência a se admitir que a União é a mais poderosa, que ela tem seu arranjo ins- titucional mais completo, mais adequado, mais eficiente, colocando-se em segundo plano a condição dos Estados e, com reser- vas, a capacidade do município, do qual não se pode esperar correta resposta na presta- ção de serviços.

Essa percepção, no entanto, deve ser al- terada para que se compreenda que a proxi- midade da população em relação ao gover- no municipal com suas alternativas de ge- renciamento de problemas pode garantir melhores resultados. Afastam-se, contudo, os binômios descentralização-democracia e municipalismo-eficiência.

Ainda da parte do usuário, há outras di- ficuldades que decorrem das tendências de radicalização, tanto por parte das correntes municipalistas, quanto das regionalistas. Os conflitos entre essas antagonias, muitas ve- zes, põem a descoberto os interesses dos usuários.

Por outro lado, as potencialidades dos processos de descentralização, que acenam para a superação das dificuldades relacio- nadas com a escassez de recursos destina- dos às diversas políticas, para a racionali- zação técnica, para a ampliação do controle e para a própria eficiência do serviço públi- co, só atingem expressão efetiva se contor- nados os constragimentos que poderão im- pedir os resultados positivos do novo jogo de relações no quadro federativo.

6. Potencialidades e contrangimentos da participação popular

Martínez, discorrendo sobre o municí- pio já em contexto da Reforma Municipal aprovada pela Constituinte Permanente do México em 1983, a qual busca a revitaliza- ção da instância local, dá realce à participa- ção dos cidadãos como fator de fortaleci- mento do município:

“El fortalecimiento municipal requie- re una lucha de todos los niveles contra el

centralismo, contra el caciquismo, contra

apatía y la desidia de los vecinos”25.

O autor mostra também as conseqüências práticas da participação na gestão pública:

“Cuando los vecinos no han coadyu- vado en la toma de decisiones, desconfián de la eficacia de la solución, se abstienen de participar, critican las acciones y des- confían de sus autoridades, por ello es importante combatir la apatía, la indolen- cia, el derinterés de los vecinos, dándoles la participación debida en su Municí- pio”26.

Nessa linha, verifica-se, interna e exter- namente, uma ampla tendência de adoção de políticas participativas.

Contudo, entre nós, apesar de a bandei- ra da participação vir sendo desfraldada de uma forma persistente, pode-se vislumbrar variada base de sua sustentação, conduzin- do-se o vetor da democratização de políti- cas públicas, às vezes, mais em caráter em- blemático do que conseqüente, não se afigu- rando a participação como resultado de in- ternalização de uma filosofia ou como ins- trumento efetivo de controle da gestão pú- blica na grande maioria dos municípios.

É o que ocorre quando o poder público toma a seu cargo a mobilização da comuni- dade com o propósito de manipular o pro- cesso participativo. Com a observação, não se pretende rejeitar o papel do Estado, de estimulador e indutor da mobilização, e só admitir como válida a participação espon- tânea. Ao contrário, pela natureza proces- sual da democracia, pela sua estrutura cul- tural, pelas posições polarizadas da socie- dade e do aparelhamento estatal, torna-se inconcebível, na seara das políticas públi- cas, a participação da sociedade sem indu- ção pelo próprio Estado, ou, pelo menos, sem o comprometimento do Governo, seja pela incorporação de mecanismos institucionais, seja pela abertura às influências dos novos paradigmas e metodologias de gestão. Sob esse aspecto e no estágio processual de im- plantação das práticas democráticas, enfa- tiza-se a participação possa até ser um fim,

172

Revista de Informação Legislativa

em si mesma, sem, contudo, descurar a pro- jeção da racionalidade de resultados.

Na realidade, porém, o que se vê é a ma- nipulação, com raras exceções, do que se pode traduzir como práticas de indução bem intencionadas. Nesse sentido, a participa- ção pode ser um instrumento de autoritaris- mo dos mais arbitrários.

Além dessas dificuldades, outros obstá- culos opõem-se à participação popular como mecanismo de democracia: a indife- rença de significativa parcela dos segmen- tos da sociedade; a resistência por parte de outra e das estruturas de poder formal; o corporativismo, que desfoca o interesse ge- ral para priorizar os específicos, que se tra- duzem em benefícios diretos para determi- nadas categorias; a postura refratária à ins- titucionalidade de vários núcleos participa- tivos tendentes a desqualificar as instânci- as oficiais de participação, pela negativa de legitimidade à esfera institucional e resis- tência à interação nesse plano; a falta de se- dimentação de cultura de cidadania; a au- sência de divulgação dos processos infor- mais de participação, como substrato para aprimoramento e internalização da lógica democrática; a prevalência de uma norma- tividade jurídica conservadora e excluden- te, como disciplina das relações quotidia- nas; a resistência por parte dos governos aos mecanismos democráticos, como ouvidori- as autônomas (ouvidorias de instituições policiais, de universidades públicas, de municípios), conselhos de políticas sociais; as dificuldades de conciliação da força de- cisória da representação política e da socie- dade civil organizada, na perspectiva da pluralidade democrática; a ausência de tra- dição de experiências participativas, o que pode conduzir à artificialização dos proces- sos e mecanismos, que, por isso mesmo, pres- tam-se a camuflar o próprio autoritarismo27.

A despeito do quadro de incertezas quanto aos modelos participativos, fica muito claro que se deve afastar a mobiliza- ção como simples mecanismo de legitima- ção, isto é, a falsa participação, para buscar

Brasília a. 37 n. 147 jul./set. 2000

uma forma mais qualificada, sustentada na representatividade e no domínio da infor- mação.

Reafirma-se ainda que não se propug- na por uma posição passiva do poder pú- blico no processo. Ao contrário, sustenta-se que a participação do poder público é fun- damental até que se consolide o verdadeiro controle social que tem na “cena pública” o plano sensor das práticas administrativas e políticas. Em outras palavras, até que a sociedade civil incorpore os segmentos co- munitários, disponha de canais legítimos de participação, de múltiplas arenas de con- senso e possa contar com interlocutores ca- pazes de adequada vocalização de proble- mas e percepções, ao Estado cabe apresen- tar alternativas para indução e apoio à par- ticipação popular.

Merece registro, no Brasil, a experiência do Orçamento Participativo de Porto Ale- gre, cuja concepção propiciou um arranjo que combina democracia representativa e democracia direta, o que se projeta a partir do reconhecimento e da valorização da es- fera pública não estatal, transferindo-se ao cidadão o poder de decidir sobre a alocação de recursos públicos e a eleição de políticas prioritárias, princípio que se acolhe na Lei Orgânica do Município desde 1997. A expe- riência da capital gaúcha figura entre as “Best Practices”, como gestão exitosa e ino- vadora, selecionada pelo Comitê Internaci- onal da Conferência Habitat II, entre qua- renta experiências mundiais apresentadas em Istambul, para aproveitamento por ou- tras comunidades. Ultrapassando as linhas do corporativismo, o Orçamento Participa- tivo, inteiramente internalizado na capital do Rio Grande do Sul, conseguiu colocar-se como prática de aperfeiçoamento da parti- cipação na busca da realização de interesse mais coletivo como instrumento de nature- za política de transformação estrutural da sociedade. Registram-se, no Brasil, outras práticas semelhantes, as quais não se colo- cam, contudo, no mesmo estágio da experi- ência gaúcha.

173

No caso de Porto Alegre, assimila-se a participação como forma de partilhamento de responsabilidade, como lembra Martínez:

“La participación de los ciudadanos en la solución de sus problemas tiende a responsabilizar al individuo y a la comu- nidad en su conjunto”28.

Dessa forma, o grande apelo ao poder público é o de estruturar, nessa transição, mecanismos institucionais de participação e de partilhamento de responsabilidades, bem assim garantir, da parte dos gestores da coisa pública, o respeito aos consensos extraídos das amplas esferas de negociação e o reconhecimento dos esforços participa- tivos em plural manifestação, afastando-se as instituições representativas hipertrofia- das sem os correlatos fins de democratiza- ção da gestão.

Com efeito, a idéia do respeito é nuclear. Nesse sentido, o feedback é importante, sina- lizando para a avaliação das providências eventualmente adotadas e dos resultados obtidos. E como democratização é, antes de tudo, a apropriação igualitária de benefíci- os, dá-se realce à necessidade de transpa- rência em relação às ações públicas e aos impactos delas decorrentes, porém, sem o viés de se pretender que estejam todos dis- cutindo as mesmas questões e consensan- do as mesmas soluções.

Hoje, entretanto, percebe-se que a meto- dologia de participação nem sempre envol- ve técnicas avaliativas para permanente re- alimentação do processo.

Finalmente, merece reflexão a crítica que, de um modo geral, faz-se ao município, ao projetá-lo como espaço de fragmentação da identidade política. Ao contrário, a esfera local deve ser encarada como a seara em que as estruturas do pensamento ideológico possam atualizar-se na prática, pela efeti- vação dos princípios do Estado Democráti- co de Direito.

Por fim, enfatiza-se que a gestão da cida- de não depende apenas do domínio de téc- nicas gerenciais, mas, sobretudo, da capa- cidade de percepção da cidade e articula-

174

ção do poder que nela se instala, dos diver- sos setores da sociedade para que se possa efetivamente tornar viáveis a negociação e a regulação do conflito, podendo nele inter- vir o cidadão de forma propositiva e coeren- te com sua opção de cidadania.

Como as cidades, pela realidade que lhes é imanente, invocam o princípio da diversi- dade, o poder local há de tomar conforma- ção e teor próprio, em cada espaço, pois di- ferentes são as cidades, as populações, e diferentes devem ser seus atores, interlocu- tores, suas formas de atuação e de compre- ensão das vivências que nela têm lugar. A diversidade não haverá de prejudicar, toda- via, a unidade de valores e princípios de um Estado Democrático.

7. Recomendações

Feitas essas considerações, ousamos ali- nhavar algumas recomendações que, de res- to, podem ser colhidas fragmentariamente nos discursos recorrentes.

A descentralização há de ser filosofia e concepção interiorizadas como verdadeira política de Estado, descartando-se sua iden- tificação com mero programa de Governo, de modo a dissociá-la de um dado coman- do político e a comunicar-lhe maior siner- gia pelo envolvimento de outros atores que não só os decisores governamentais diretos.

Por outro lado, há consenso quanto à idéia de que a descentralização deve servir para distribuir efetivamente o poder. Não pode ser mero arranjo ou conformação apa- rente. Deve demandar a base substantiva de distribuição do poder decisório, pressupon- do deslocamento real de recursos, compe- tências, encargos e responsabilidades. Só o processo de descentralização que serve a esse objetivo redistributivo do poder há de ser como tal considerado.

É conveniente ainda que a descentrali- zação leve em conta o macrocenário, tendo em vista os reflexos deste sobre a trama ur- bana, imediatamente alcançada pelos efei- tos perversos dos fenômenos mais abran- gentes. Isso se explica porque, além das di-

Revista de Informação Legislativa

ficuldades internas, impõem-se aos centros urbanos, em especial às megacidades, gra- ves desafios decorrentes da crise e das dis- funções das políticas mundial e nacional.

Considerados os fatores externos e in- ternos, a descentralização há de se colocar como objeto de um planejamento responsá- vel, orientado por corretas balizas, entre as quais se possam colocar políticas descen- tralizadas, políticas que se devam manter centralizadas na União, na exata medida, de modo a não se configurar um processo de descentralização inconseqüente e nem uma camuflagem de uma indesejável recen- tralização. Devem, assim, ser rejeitadas as radicalizações absurdas, dirigindo-se para uma prática cooperativa e complementar.

Nessa vertente, reconhece-se prioritário o investimento na capacidade de gestão dos governos, em especial, naquelas equipes que diretamente devem assumir a transição, passando à formação de quadros, mediante aproveitamento de forças disponíveis e in- corporação de outras. Esse investimento pressupõe a organização de base de dados e informações como insumo fundamental para o monitoramento das políticas.

Sob o enfoque da racionalização, adver- te-se para a necessidade de dimensionamen- to ou redimensionamento dos recursos hu- manos, financeiros e técnicos. É de se regis- trar que, no tocante aos recursos, o grande desafio não diz respeito à alavancagem de novos meios, mas está direcionado, sobre- tudo, para a sua alocação e adequada utili- zação, de maneira que se assegure a razoá- vel relação custo-benefício, e que se garanta sintonia com mecanismos mais modernos de gestão pública, o que não se consegue por meio de simples transmutação formal de controle de processos em controle de re- sultados.

Registra-se, também, a necessidade de aplicação dos princípios da eficiência alo- cativa de recursos públicos, que garanta a racionalização de gastos e a positiva rela- ção de resultados, do ponto de vista quali- tativo e quantitativo, bem assim da respon-

Brasília a. 37 n. 147 jul./set. 2000

sabilização dos agentes públicos envolvi- dos na gestão correspondente ou dos atores privados, cuja ação gere impactos especiais na esfera pública.

Além da eficiência alocativa de recursos, não se pode olvidar a óptica de apropriação de resultados de uma forma equalizada, na perspectiva da socialização de benefícios em contraponto à apropriação coletiva dos ônus da ação estatal, tão evidente na reali- dade brasileira.

Igual esforço deve ser desenvolvido na construção de soluções criativas para a bu- rocracia municipal. No Brasil, sob o jugo contumaz do autoritarismo, o município or- ganiza sua administração em perfeita sime- tria com o arranjo federal e o estadual, o que persiste nos dias atuais por força da heran- ça cultural do autoritarismo.

Outro aspecto relevante é o atinente à re- lação do poder público com o setor privado, sobretudo por meio da contratualização. Na realidade, setor público e setor privado não são incompossíveis, desde que não se esta- beleça prevalência do interesse privado so- bre o interesse público. Há, portanto, espa- ço ético para as parcerias, para as interfaces daqueles setores. Contudo, se não se pode reconhecer a inépcia do mercado para solu- ções da economia, não há negar o sério ris- co de sua prevalência em questões que ao Estado e à sociedade se reservam. É preciso inquirir sobre o espaço em que o Estado e a sociedade agem, sobre o modo de atuação do poder público, sobre a expectativa quan- to à eficácia de sua ação, para que se possa delinear com segurança o campo de coope- ração para parcerias responsáveis ou ope- rações contratualizadas.

Outro desafio de que se cogita é o do ge- renciamento no plano democrático, isto é, o de construir e amadurecer o modelo próprio de gestão democrática, pois que é falso o bi- nômio descentralização-democracia.

Nesse sentido, é pertinente a advertên- cia de Martínez:

“La descentralización del poder no conduce por sí mismo a la libertad local;

175

ésta só lo se expresa por la exitencia de poderes locales antónomos sostenidos o fundados en una auténtica voluntad po- pular activa y participativa”29.

De fato, deve-se estar atento ao erro de perspectiva que se comete no tocante à des- centralização, de acreditar que a proximi- dade da comunidade com a máquina admi- nistrativa, por si só, possa assegurar mais envolvimento social. A relação, com efeito, não é absoluta, pelo que uma preocupação que se justifica é a de se construir o caminho democrático pelo qual se possa projetar a cidadania ativa. Assim, a descentralização, como metodologia, adquire significado em cada setor, na sua projeção processual, e poderá levar a resultados diferentes, de acor- do com a ideologia que a sustente.

Enfatizando a participação democráti- ca, adverte-se para a necessidade de cria- ção de novo padrão de sociabilidade, que incorpore a participação cada vez mais abrangente e conseqüente de todo cidadão, a partir de um novo patamar cultural; para a conveniência da quebra da resistência à institucionalidade para ocupação democrá- tica de todo espaço institucional de partici- pação, sem prejuízo da exploração da ge- nuína esfera social; para a imperativa supe- ração do corporativismo; para a democrati- zação do aparelhamento estatal, arrogante e autoritário na prática das relações inter- nas, em especial; para o apelo de fortaleci- mento do segmento participativo atomiza- do, mediante a incorporação de novos su- jeitos do processo produtivo, das categorias excluídas, dos consumidores, da classe operária, dos grupos de defesa de direitos difusos e dos diversos setores afetados dire- ta ou indiretamente pelas ações públicas; para a necessidade de reavaliação das prá- ticas de ilegalidades; para a exigência de renovação da normatividade, com vistas à instrumentalização de efetivas mudanças no amplo quadro social; e, por fim, para a urgência de conciliação da pluralidade de- mocrática a partir do tripé sociedade-cida- dania-autoridade, esta, não apenas legiti-

176

mada pelo sufrágio universal ou pelo traço de institucionalidade, mas paulatinamente fortalecida no plano das relações.

Por fim, acreditamos, como Dória, que “… o processo de democratização e integra- ção social só pode avançar se envolver deci- sivamente a vida municipal”30.

## Notas
1 LYRA, Rubens Pinto. As vicissitudes da de- mocracia participativa no Brasil. Revista de Infor- mação Legislativa. Brasília : Senado Federal, Subse- cretaria de Edições Técnicas, a. 36, n. 141, jan./ mar. 1999. p. 23–38.
2 Ibidem, p. 23–38.
3 ____________. Teorias clássicas sobre a de- mocracia direta e a experiência brasileira. Revista de Informação Legislativa. Brasília : Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, a. 35, n.140, out./ dez. 1998. p. 11–16.
4 Idem, ibidem, p.15.
5 Idem, Ibidem, p. 16.
6 DÓRIA, Og. Município : poder local. SãoPaulo

Editora Página Aberta, 1992. p. 21.

Idem, Ibidem, p. 22.

8 Idem, Ibidem.

9 Idem, Ibidem, p. 33.

10 MELO, Marcus André B. C. de. O Município

na Federação Brasileira e a questão da autonomia. In: Subsidiariedade e fortalecimento do poder local. Debates. Fundação Konrad Adenauer Stiftung – Representação no Brasil. São Paulo : Centro de Es- tudos, n.6, 1995, p. 64.

11 DÓRIA, op. cit., p. 12.

12 Idem, Ibidem, p. 16.

13 FERREIRA, Paulo Brum. O modelo federati-

vo brasileiro: evolução, o marco da Constituição de 1988 e perspectivas. In: Subsidiariedade e Fortaleci- mento do Poder Local. Debates. p. 9.

14 Idem, Ibidem.

15 MELO, op. cit., p. 65.

16 Idem, Ibidem, p. 63.

17 MARTÍNEZ, Reynaldo Robles. El Municipio.

México : Editorial Porrúa, S.A, 1987. p. 4.

18 BORJA & SEBASTIÁ. La democracia territo- rial: descentralización del Estado y politicas en la ciudad. In: Ciudad y territorio. Madrid : MOPT, 61-

82/ 13–41, 1989, p. 25–38.

19 Idem, ibidem, p. 25–28.

20 SÁNCHEZ, José García. El Municipio: Sus re-

laciones com la Federación. México : Editorial Por- rúa, S.A, 1986. p. 314.

7

Idem, ibidem.

21

22 Idem, ibidem.

Revista de Informação Legislativa

23 Idem, ibidem, p. 311.

24 MELO, op. cit., p. 66.

25 MARTÍNEZ, op. cit., p. 168.

26 Idem, ibidem, p. 154.

27 LYRA. As vicissitudes da democracia partici-

pativa no Brasil. op. cit, p. 23–38. 28 MARTÍNEZ, op. cit., p. 153. 29 Idem, ibidem.

30 DÓRIA, op. cit., p. 16.

Brasília a. 37 n. 147 jul./set. 2000

177

Idealizado por Rafael Angeli
Voltar