Poesias

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Sou a Pedra redonda
Zoiúda
Que vigia sem parar os arredores.


Sou o Pico do Itambé
Encoberto de nuvens
Que se esgarçam ao primeiro sol.


Sou a Serra do Cipó
De sinuosas curvas
Perdidas entre nós
Cegos e
Vendados mistérios


Sou a Lapa da Boa Vista
Que soluça lágrima seca
Em tardes mornas de sol.


Sou o condado virgem
No recato de seus medos.


Sou o Quatro vinténs
Que corre para o Lucas
Em curso lento e choroso.


Sou o Morro Centenário
Que deita a cabeça no colo de Deus
Pedindo um cafuné
Na rara cabeleira.


Sou os veeiros depauperados
De outras riquezas encobertas.


Sou a Fonte do Vigário
Gotejando esquecida
Pelos cantos do Chaveco


Sou o coreto em destroços
Sufocando a sinfonia da vida.


Sou o palco do mundo
À espera da melhor peça.


Sou as ruas de Baixo e de Cima
E os becos sem saída.


Sou a Ladeira do Pelourinho
Batizada pelo grito escravo
Que retumba na senzala do tempo.


Sou o Paredão da Matriz
Na contenção da encosta
Da fé primeira.


Sou a palmeira gigante e altiva
Que ameaça o céu
Sem fazer requebros
Quase inerte sobre raízes profundas.


Sou o casario de linhagem nobre
Contrariando a lei da gravidade.


Sou o cargueirinho alienado
Que desce a rua
Atravessa a festa
O discurso
E estruma no chão
Em pose para a posteridade.


Sou a Capela de São Miguel
Que badala a morte
Ao dar sinal de vida.


Sou o prédio da Cadeia
E o pensamento livre
Que escapole inteiro
Ou em fragmentos
Pelas grades
E vai sem peia.


Sou Igreja Santa Rita
Em esplêndida janela
Espiando da colina
A cidade baixa
Ressuscitar das brumas.


Sou a gente
Que pede licença
Para pisar este chão
Para respirar estes ares
Para poetar sob este céu.


De onde vim
Só pra ser uma flor exótica
Entre rochas e colinas
Da minha terra.

Alto
Chamas
Cenas
De
Luz
Arauto
Do alto
Acenas
Chamas
Rasgando essas trevas
Espalhando o sopro
Por tua criação

Emergente
Emerge
Entre
De mim
Emergente
Menos ente
Mais gente
Emerge

Fulgente
‘’ Full’’...
Da Mortalha de um tempo
Do assombro do vazio
Nova face
Nova mulher
Na aventura do recomeço
Mias gente
Só.

De
Vagar
Cansado
Passo a passo
Lenta
Mente...
Com
Passadas
Toadas
Do Caminhar...

Eu
Ca
Li
Pito
Cheira
Bom
Quase
Bálsamo
De mim.

Sensual
Sem
Idade
Sensualidade
Não
Caduca.

Serro
Com Frio
De alma acalorada
Com Sol
E de sombra remansosa
Serro
Com chuva
E de sombra remansosa
Serro
Com chuva
E de ribeiros secos
Serro
Sem erro
Concerto de Minas
Velho Serro
Sem idade
Que teus serros
Vigiarão por nós
Serro
Com teus morros calvos
Sem tua farta cabeleira
De fala eloqüente
E memória silenciosa
Sem o tumulto do progresso

DIREITO URBANISTICO, MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO CULTURAL

Maria Coeli Simões Pires

Maria Coeli Simões Pires é Mestre em Direi- to pela Faculdade de Direito de Minas Gerais, doutoranda na mesma área de concentração daquela isntituição e Professora Assistente da disciplina na Graduação.

Sumário

  1. Gestão urbanístico-ambiental como desa- fio contemporâneo.
  2. Direito Urbanístico – uma visão ampliativa de seu objeto.
  3. Direito Urba- nístico e gestão do patrimônio cultural.
    1. Da interface dos aspectos social e urbanístico.
  4. Ci- dade e cultura – recíprocas interferências e repre- sentações – O direito da cidade e o direito à cida- de.
  5. Cidade e cultura: recíproca destruição – a contradição das forças de formação e deforma- ção da cidade.
    1. A força do Estado.
    2. A força do mercado.
    3. A força da sociedade.
  6. A polí- tica urbano-cultural e as estratégias de gestão.
  7. A função social da propriedade urbana como prin- cípio orientador da atuação urbanística.
    1. Di- reito à propriedade e direito de construir.
      1. Direito de construir e direito de configuração da cidade.
    2. Propriedade do bem cultural.
  8. A emergência de edição do Estatuto da Cidade para consolidação das políticas locais.
  9. Comentário sobre a versão provisória do Estatuto da Cidade.
    1. Plano Diretor.
    2. Instrumentos sancionató- rios.
    3. Consórcio imobiliário.
    4. Usucapião especial de imóvel urbano.
    5. Concessão de uso especial para fins de moradia.
    6. Direito de su- perfície.
    7. Preempção.
    8. Outorga onerosa do direito de construir.
    9. Transferência do di- reito de construir.
    10. Outorga onerosa de alte- ração de uso.
    11. Operação urbana consorcia- da.
    12. Estudo de impacto de vizinhança.
  10. Instrumentos urbanísticos aplicáveis para fins de preservação.
    1. Tombamento.
    2. Direito de superfície.
    3. Edificação compulsória e IPTU progressivo.
    4. Preempção urbanística.
    5. Operação interligada.
    6. Urbanização consor- ciada.
    7. Solo criado.
    8. Transferência do di- reito de construir.
    9. Usucapião.
  11. A tutela judicial da preservação do patrimônio cultural.
  12. Conclusão.

1. Gestão urbanístico-ambiental como desafio contemporâneo

Um dos grandes desafios da pós-moder- nidade é a gestão da cidade sob a perspecti- va urbanístico–ambiental.

Tal desafio, justificado pelas demandas de uma sociedade de massas, pelos impac- tos da tecnologia crescente e da ordem glo- bal, é tanto maior quando se têm em vista as megacidades, as capitais em processo de ex- pansão desordenada, as regiões metropoli- tanas e os aglomerados urbanos, em que, resguardados apenas os espaços elitizados por muralhas de defesa e segregação, pre- valece a pressão do “progresso” e de suas mazelas sobre o patrimônio natural e cultu- ral. Qualitativamente, é o mesmo problema que se apresenta no âmbito de pequenos núcleos urbanos ameaçados por múltiplos fatores de desequilíbrio ambiental, sejam os agenciamentos espaciais transgressores, se- jam as práticas sociais e econômicas impac- tantes das condições de sustentabilidade.

O enfrentamento desse quadro invoca a transdisciplinariedade da matéria urbanís- tica, suscitando, no campo jurídico, a asso- ciação direta entre Direito Urbanístico e Di- reito Ambiental, sem prejuízo de outras re- lações daquele com outros ramos, como o Municipal, o Administrativo e o Social, este referenciado às políticas públicas e à cida- dania. Sob o signo da unidade do Direito, as diferentes regras e princípios desses ra- mos devem ganhar na aplicação ao mesmo objeto, a chamada “coesão dinâmica”, no sentido da convergência finalística.

2. Direito Urbanístico – uma visão ampliativa de seu objeto

O Direito Urbanístico, referido expressa- mente no art. 24, I, da Constituição da Re- pública Federativa do Brasil, trilhando o caminho de sua autonomização como ramo multidisciplinar do Direito e voltando-se para o seu objeto central – a cidade, tomada não apenas na perspectiva de sua ordena-

ção territorial, mas também na de sua di- mensão social, na sua multifária constitui- ção como espaço de vivência coletiva e lu- gar de todos e, por força de sua redenção ética, como bem de fruição por habitantes – , vem consolidando um núcleo de normas cada vez mais complexas e demandando a especialização de métodos e princípios e a releitura de institutos tradicionais. Desse modo, o ramo evolui da compreensão de imposições urbanísticas do velho direito luso-brasileiro, passando pela de noções de ordem e estética, pela regulação das rela- ções de acesso ao espaço urbano e de apro- priação deste, até chegar ao campo de cogi- tações de sustentabilidade social, econômi- ca e ambiental da cidade sob inspiração democrática. Nesse mister, alcança um im- portante campo de incidência – o da políti- ca urbana vocacionada para a ordenação do pleno desenvolvimento das funções so- ciais da cidade, informadas essas pelos in- teresses difusos que alimentam a cadeia de conflitos urbanos e que mais se adensam, conforme seja a pressão das necessidades impostas pelas desigualdades sociais his- tóricas, das demandas da ordem global e dos avanços tecnológicos. O Direito Urba- nístico sai, portanto, da esfera do positivis- mo imobilizador e enquadra-se no processo político-social.

Em face dessa latitude do objeto do Di- reito Urbanístico, registram-se sob seu foco, direta ou indiretamente, as múltiplas dimen- sões da cidade:

• a física – como expressão de sua orde- nação territorial, envolvendo o seu traçado, os arruamentos, a ocupação, a sua configu- ração – retratada pelo desenho de sua rela- ção direta com a terra e com a natureza sob o prisma da horizontalidade, e, pois, pelos registros de seus cheios e vazios, e da verti- calidade, que recorta o céu;

• a dinâmica – como trama urbana na sua lógica de mobilidade funcional, estimulada pela cadeia de bens, serviços e rendas, isto é, essencialmente como palco de produção econômica;

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• a sociológica – como espaço de repre- sentação da conformação ou estratificação social, de expressão das relações sociais de produção e dos correspondentes graus de cidadania;

• a simbólica – como dado de cultura e valor transcendente da materialidade, como base para fruição de valores diversos por meio do espírito e dos sentidos, que captam e interpretam os símbolos, e como elemento de construção da memória: a cidade como espaço de evocação “que integra cultural- mente, dá identidade coletiva a seus habi- tantes e tem um valor de marca e de dinâmi- ca com relação ao exterior”, na expressão de Borja e Castells (1977).

Esses planos da cidade, conquanto dis- tintos pela natureza que os informa, são apreendidos pelo Direito Urbanístico a par- tir de tessitura única, de modo que a eventu- al percepção de um dos estratos terá os demais em posição subjacente, eis que in- dissociáveis como unidade. Não obstan- te a indissociabilidade das diversas di- mensões, as regulações são específicas, o que impõe a necessidade de harmoniza- ção dessa disciplina fragmentária no campo de aplicação.

Ora, sendo objeto do Direito Urbanístico a cidade multifacetada, tem-se que a esse ramo incumbe papel superlativo: desde a interferência na configuração do espaço pela definição de índices, escalas, coefici- entes, volumetrias, gabaritos, altimetrias, entre outros, passando pela aplicação de mecanismos de intervenção voltados para a conformação de usos, a distribuição de mobiliários urbanos e a garantia de infra- estrutura, tudo referenciado à cidade dinâ- mica, e pelo enfrentamento da relação de ex- clusão e inclusão de cidadania, com a po- tencialidade de conformação da geografia social da cidade, até a regulação das formas de proteção dos elementos urbanos que sus- tentam a memória e projetam a cidade sim- bólica.

A cidade simbólica é exatamente a que inspira o esforço do Direito Urbanístico

como núcleo da regulação da preservação do patrimônio urbano de valor cultural – a cidade como expressão poética de suas for- mas; a supracidade edificada na memória de seus viventes; a cidade intuída ou reve- lada por seus marcos referenciais e pela in- terpretação de sua linguagem; a cidade das utopias representadas por múltiplos ícones.

Se não há aqui abertura para a evocação da cidade simbólica na concepção poética, haja vista a filosofia deste estudo, longe es- tarão A poética do espaço, de Bachelard (1978), As cidades invisíveis, de Calvino (1990), e ou- tras, tantas vezes capturadas pela cadência da palavra, enquanto, muito próxima, sob as lentes da perplexidade, a visível cidade caótica da realidade brasileira, de cuja tra- ma ainda será possível extrair-se a teia da memória coletiva.

3. Direito Urbanístico e gestão do patrimônio cultural

O tema invoca, assim, em primeiro pla- no, a relação cidade física e cidade simbóli- ca, mas suscita o tratamento daqueloutras dimensões – dinâmica e sociológica. Além disso, mais especialmente, o patrimônio cultural há de ser tratado indissociadamente do natural, uma vez que são ambos expres- sões do patrimônio ambiental, em conso- nância com a tendência mais recente do di- reito contemporâneo, que, numa visão alar- gada, apreende o fenômeno ambiental em sua globalidade.

A proteção ambiental tem sido paulati- namente consolidada, desde as proclama- ções da Convenção da ONU, realizada em Estocolmo, em junho de 1973, passando pelo tratamento da Lei no 6.938, de 1981, pela constitucionalização da disciplina no capí- tulo específico da Carta de 1988, ao que se seguiu a Convenção da ONU de 1992 – ECO 92 –, realizada no Brasil, no Rio de Janeiro, e, especialmente redirecionada pela Agen- da Habitat de 1996, que definiu a orienta- ção de integração das agendas urbana e ambiental. Mais recentemente, a Lei no 9.605,

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de 12 de fevereiro de 1998, prescreve maior rigor relativamente à tutela do meio ambi- ente natural e cultural, impondo variadas sanções às pessoas físicas e às jurídicas cau- sadoras de dano a esse patrimônio. Isso para ater-se aos principais pontos de demarca- ção da linha evolutiva da disciplina.

A proteção ao patrimônio cultural, à sua vez, esteve sustentada no Decreto-Lei no 25, de 1937, recebendo interferência de conven- ções internacionais, notadamente a de Es- tocolmo, e de diplomas internos e vindo tam- bém a ser constitucionalizada em capítulo específico da Carta de 1988. A despeito da autonomia de tratamento no texto constitu- cional, a proteção ao patrimônio cultural perseguiu o caminho da integração com a política de meio ambiente natural na legis- lação ordinária, consoante evidencia a Lei no 9.605, de 1998.

Assim é que, nos dias atuais, discutir gestão das espécies patrimônio cultural, am- biência urbana, cidade simbólica e equipa- mentos e espaços de produção e fruição de cultura é, ao mesmo tempo, lidar com con- ceitos e estruturas do gênero meio ambien- te, posto ser o dado cultural integrante da noção matriz daquele. Daí a densidade da idéia de sustentabilidade da cidade como espaço de dupla fruição que inspira o mo- derno urbanismo: cidade material e cidade simbólica, fruíveis pelos múltiplos sentidos do homem nos planos biológico, espiritual e social.

Contudo, por razões metodológicas deste estudo, o interesse volta-se para o patrimônio cultural, no âmbito da políti- ca de cultura na interface com a gestão urbanística.

Não se desenvolverá aqui, todavia, a análise de resultados de experiências pon- tuais ou sistemáticas de política de patri- mônio no Brasil nem se estará a oferecer al- ternativa metodológica de formulação e im- plementação de políticas nessa seara – de reabilitação de centros históricos, de regu- lação e acompanhamento de zonas especi- ais de proteção, de tombamento de conjun-

tos urbanos especiais e implementação das respectivas diretrizes urbanísticas de pro- teção, de integração de núcleos históricos estagnados a outros de maior potencialida- de revitalizadora e de sustentabilidade e outras.

Procurar-se-á alinhar considerações an- teriores a essas questões, quiçá decorrentes, ou, ainda, simplesmente, discutir possibili- dades, que abrem caminhos, ou anteparos, que impedem os avanços no campo urba- nístico, com natural repercussão sobre a tu- tela do patrimônio cultural.

3.1. Da interface dos aspectos social e urbanístico

Não se pretende, com a associação cul- tura e urbanismo, sustentar que a política de cultura, cuja espinha dorsal é o art. 216 da Constituição da República, sede da nor- ma de reconhecimento da pluralidade de valores referenciais da identidade, deva migrar-se da ordem social para a seara ur- banística, mas buscar o necessário campo de intersecção desses domínios, tendo em vista as recíprocas interferências de cidade e cultura. A ênfase ao dado cultural como elemento de gestão urbanística dá-se, por- tanto, sem superação do caráter social da cultura, como objeto de interesse dos diver- sos agentes da sociedade, compreendida esta em sua base ampla e plural, como sua produtora e destinatária.

A Constituição da República, definindo as bases de organização das funções esta- tais, entre elas inclui a de promoção e defe- sa do patrimônio histórico, no Título VIII, “Da Ordem Social”, no Capítulo III, “Da Educação, da Cultura e do Desporto”, rela- cionando, na Seção II, “Da Cultura” (art. 216), os lineamentos específicos.

Tal enquadramento, seguido pelos Esta- dos e pelos municípios, vincula as políticas de memória e patrimônio cultural ao órgão responsável pela área de cultura, prática destacada em ordenamentos locais de refe- rência como Florianópolis, Salvador, Curi- tiba, Santa Catarina, São José dos Campos,

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entre outros, embora se verifique, em alguns casos, o atrelamento da gestão do patrimô- nio edificado ao núcleo de Política Urbana, o que, de resto, mostra a necessária interfa- ce da política de proteção desse patrimônio urbano de valor social com a atuação urba- nística que lhe deve emprestar a especifici- dade de seus instrumentos.

De outro lado, não se pode desconhecer a moderna função social do Direito Urba- nístico como núcleo de proteção dos excluí- dos por meio de mecanismos de legalização fundiária e regularização urbanística em re- lação a áreas urbanas deprimidas e de pro- moção da participação democrática da co- munidade na governança da cidade. Não obstante isso, a mera intersecção de política cultural e política urbana é suficiente, não se justificando a migração completa, ou seja, o abandono das especificidades de cada qual.

4. Cidade e cultura – recíprocas interferências e representações – o direito da cidade e o direito à cidade

Neste estreito campo, o binômio cidade e cultura ganha relevância e há de ser cono- tado segundo as recíprocas interferências.

A cidade, como produção do homem, materializa a cultura, expressa na forma de apropriação do espaço urbano, no traçado de suas vias, na construção de seus padrões tipológicos e estéticos, na formação de seus marcos referenciais, e configurada pelas suas variadas representações de segregação espacial, sob a pressuposta lógica de sua funcionalidade e hierarquia, e pelas formas de relação com a natureza. E mais, a cultura revela-se nitidamente na trama das tantas cidades que se erguem, harmônica ou con- flituosamente, a partir de uma ou mais cen- tralidades que projetam a unidade da urbe na sua composição plural, ou que impõem sucessivas exclusões de núcleos urbanos, desenhando a cidade marginal.

Fruto do agenciamento humano coleti-

vo, a cidade é representação dos valores e da estrutura da sociedade, com a sua força de hierarquia ou equalização, de inclusão ou marginalização. É, assim, a dimensão pri- mária da cultura espacializada e a repro- dução dos modos de vivência e de relacio- namentos.

Outros relevantes desdobramentos po- dem ser deduzidos do mesmo binômio ci- dade e cultura, além do constituído pela di- mensão de representação, como os decor- rentes do impacto que a atividade cultural impõe àquela em termos sociais, econômi- cos e urbanísticos.

Não há, pois, negar as recíprocas inter- ferências: a cultura produz a cidade pela materialização de seus valores e pelas prá- ticas de sua produção e consumo que reper- cutem no espaço urbano, e é aquela mesma que permite o mais generoso contato dos habitantes com a alma da cidade em seus diversos significados. De outro lado, a cida- de, além de ser, em si, dado cultural, gera e consome cultura a partir de seus espaços, suas ambiências e vias de acesso à fruição de valores culturais.

A propósito, lembra a economista Dra. Júnia Santa Rosa (Fundação João Pinheiro) que a cidade mantém uma complexa cadeia de produção de bens e serviços, de consu- mo desses, de relações e de interesses, da qual participa uma diversidade de agentes, sendo certo que a cultura alimenta essa ca- deia, de forma mais ou menos substantiva, de acordo com o grau de importância a ela atribuído pela sociedade e pelo Estado, da articulação intersetorial, do compartilha- mento entre o público e o privado e da ade- quação e da integração dos instrumentos de gestão.

Essa é a razão por que a cultura, quer tratada como elemento ideológico conforma- dor da cidade física, quer sob a perspectiva da produção e da fruição que potencializam aqueles reflexos, há de ser componente in- dispensável e estratégico no sistema de ges- tão urbanística, sem que implique a opção o acolhimento da idéia da cidade empresa

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projetada sob a égide das cadeias produ- tivas mundiais ou das que nelas se inspi- ram.

A cidade, fruto da construção coletiva, em perspectiva harmônica ou caótica, tra- duz a aplicação de um conjunto normativo, à sua vez, informado pela concepção políti- ca que o edita, pela visão paradigmática que amolda o arcabouço normativo e o comuni- ca à dinâmica processual de constituição da cidade e à esfera contenciosa sob a res- ponsabilidade do Juiz, que lhe deve fixar a definitiva exegese. Nesse sentido, a cidade não é só objeto do Direito, mas representa- ção deste, seja como elaboração, seja como atualização na esfera pública ou privada, seja como interpretação.

Desse modo, ao binômio cidade e cultu- ra, em cujos elementos, verificam-se dicoto- mias, soma-se o direito com sua força segre- gadora ou integradora, tendencialmente à primeira, diante da carência de legitimida- de social. É que, nesse trinômio, conquanto, em princípio, tenha-se no direito a potenci- alidade da força de amálgama para a for- mação da unidade positiva, pode, às vezes, projetar-se o papel do direito como elemen- to de desagregação das forças da cidade e da cultura.

Demais disso, o Direito, como núcleo conformador, circunstanciado por tempo e espaço, põe-se, naturalmente sob a tensão da permanência e da mutação, de resto, pre- sentes na sua dialética.

Registra-se que, conforme seja o objeto de tutela jurídica, as forças tensionais em relação ao Direito variam: se se tem em con- ta a tutela do patrimônio ambiental natural, as forças presentes são, de um lado, a de preservação e, do outro, a representada pe- las atividades de exploração dos recursos naturais ou de produção e a do núcleo de necessidades dos excluídos. No campo de proteção ao patrimônio cultural, vislum- bram-se, de um lado, a força da preserva- ção, e, de outro, especialmente, o investidor do mercado imobiliário, conquanto se tenha também a presença das necessidades, nota-

damente retratadas pelos cortiços em cen- tros históricos degradados.

Em ambos os casos, o segmento da tute- la pretende contrapor ao exagero do propri- etário a força simbólica do Direito no senti- do da alteração do conteúdo de poder do- minial, ou seja, da atenuação da relação de poder do proprietário. O segmento de resis- tência à tutela, por sua vez, pretende a valo- rização da propriedade como moeda de tro- ca, ou como base de sustentação de produ- ção de riqueza, ou simplesmente o acesso à terra pelo impulso da necessidade. Os seg- mentos de tutela devem, assim, ter olhar di- ferenciado para o problema, conforme seja o ponto tensional de seu contraste, para o emprego de mecanismos e estratégias ade- quadas a cada caso, sabido que o Direito deve encontrar formas de socorro às neces- sidades e de neutralização do egoísmo que escraviza o coletivo. O Direito há também de ser suficientemente razoável de modo a permitir que se identifiquem, mesmo em se- ara de conflituosidade, convergências para a garantia de superação do egoísmo e os antagonismos, explícitos ou sob máscaras de consensualidade, que ameaçam subju- gar o coletivo. É da seara do Direito, especi- almente tomado em sua versão democráti- ca, instrumentalizar a provisão de necessi- dades e aquela neutralização, sem embargo de ser a solução objeto de outras ciências. É dizer: não é preciso afastar-se do Direito para a solução que prestigie os valores que ele mesmo sustenta e que lhe inspiram a con- cepção.

Assinale-se que a integração social pe- los campos do Direito a partir da explora- ção de potencialidade criativa, interativa e dia- lógica da pessoa humana no sentido de ampliar a sua inserção autônoma no contexto como meio de minimização das privações é o tema desen- volvido com profundidade por Gustin (1999) em obra de leitura obrigatória para compreensão de metodologias inclusivas, que podem subsidiar a aplicação do Direi- to, com ênfase na seara das regulações ur- banísticas.

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5. Cidade e cultura: recíproca destruição – a contradição das forças de formação e deformação da cidade

À relação da recíproca constitutividade da cultura e da cidade opõe-se a da recípro- ca destruição.

Paradoxalmente, são os processos cons- trutivos da cidade que, também, ameaçam e destroem a cidade cultural, as referências da memória coletiva, as representações de mundo, o patrimônio arquitetônico, estéti- co, histórico, as ambiências e os cenários importantes da vida da comunidade, com repercussão direta ou indireta na geração e no consumo de bens e serviços culturais. De outra parte, é a própria cultura que investe contra a cidade física, impondo a substitui- ção de espaços de sociabilidade, sepultan- do, pelo inconsciente coletivo, formas e es- calas e formando novos mapas de geografia cultural que levam à deterioração espaços consolidados e à emergência de novas cen- tralidades pela relação funcional cultura e espaço, ou seja, pela consagração de novos locus de reforço à identidade. Mostras de destruição por essa via são a degradação de centralidades pela perda de função cultu- ral; a ocupação predatória de espaços ina- dequados para fruição da cultura de mas- sa; a pressão sobre os núcleos urbanos tom- bados, constituída pelo artificialismo da “indústria cultural”, entre outras.

Enfatizando a lógica construção–des- truição, que ora se projeta sobreposta ao bi- nômio cidade–cultura, Edésio Fernandes, em recente palestra para Grupo de Estudo de Direito Urbanístico da Faculdade de Di- reito da UFMG, em Belo Horizonte, lembra fatores importantes, como os processos es- peculativos, que, pelos caminhos da legali- dade, legitimam-se pelas previsões casuís- ticas; os processos que, infringindo a lei, são tolerados pela conivência ou pela inoperân- cia das instâncias sociais e formais de con- trole da cidade legal; e, enfim, pelos absoluta- mente marginais, por se desenvolverem fora do próprio âmbito da cidade legal, sem que

sobre eles se volvam os olhos do Direito ou da Administração, para planejá-los ou contê-los por meio de mecanismos de inclusão.

Conquanto não se possa dizer de uma sintonia das diversas forças potenciais e efe- tivas de formação da cidade e da cultura e de contraditória destruição daqueles obje- tos nas diversificadas manifestações, é pos- sível registrar, na dúplice relação, com graus diferenciados de poder, a presença de ato- res governamentais, econômicos e sociais que se projetam a partir de três esferas: o Estado, o mercado e a sociedade.

5.1. A força do Estado

Prioritariamente no âmbito do Estado, lo- calizam-se a política, o Direito e o aparelho de gestão.

De fato, o Poder Público, especialmente pela definição de regras urbanísticas, pelo planejamento e oferta de infra-estrutura e serviços, é um figurante importante entre as forças que constroem a cidade.

Sabe-se, porém, que, em grande margem, o caos urbano revela postura tímida do Es- tado, que impede mudanças mais profun- das e estruturais. Na contramão de avanços significativos, no plano político, a formula- ção normativa dos institutos enovela-se em contradições decorrentes das posições ide- ológicas conflitantes, incapazes de formar o consenso sobre bases coerentes. Ainda no plano do Direito, mostra-se o Estado ana- crônico e impotente para a construção da cidade ideal, na medida em que se aquila- tam a sua pouca ousadia no plano da apli- cação administrativa ou contenciosa daque- le e a persistência de cultura jurídica resis- tente à reformulação conceitual.

É verdade que o preceito, aplicado com preconceito, esclerosa-se. Só a inspiração principiológica o rejuvenesce porque o prin- cípio é pregnante e ideológico.

Sob esse ângulo, cabe ao Juiz o desafio de operar a permanente adaptabilidade do preceito às situações concretas, sob a luz dos princípios que protegem a regra contra a decadência da emanação nela contida e da

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proposta teórica que inspira o sistema nor- mativo. Contudo, não têm as normas prin- cipiológicas conseguido transmitir a força vivificante às regras para a alteração do sta- tus quo da ordem social em linha sucessiva de produção de novos consensos, sem radi- cais rupturas. Fraqueja o Direito quando não apreende, por exemplo, a dinâmica do pro- cesso de pressão sobre o patrimônio, e, em conseqüência, fragiliza-se a proteção: em resposta à ordem jurídica impotente, criam- se práticas de contraste, as quais, sem as mais sólidas bases de neutralização, levam a um quadro de conflito solucionado pelo próprio Direito tradicional, orientado por paradigma que resiste a novas matrizes de compreensão e visão.

De qualquer modo, o Direito exerce pa- pel fundamental na construção do espaço urbano e na preservação da cidade cultu- ral, papel de construção do caos ou da cida- de harmonizada. Daí a necessidade de que, sem se abandonar o processo histórico da lei, busque-se a perspectiva espacial de seus efeitos e que, por isso mesmo, tome-se, no mister de sua elaboração, a racionalidade territorial.

De outra parte, o equívoco e as disfun- ções do planejamento urbanístico, em mui- tos casos, ainda considerado como mera ação regulatória estatal, e a ausência de co- ordenação das relações intragovernamen- tais e intergovernamentais são fatores de ine- ficácia da política urbanística, em especial no tocante ao patrimônio cultural. A situa- ção está a invocar uma aprofundada dis- cussão, seja sob a tônica federativa, seja sob o ângulo da gerencialidade interna.

Na mesma linha, as rejeições recíprocas de Câmara Municipal e arenas de consenso social – duelo permanente entre democra- cia representativa e instâncias sociais dire- tas – são empecilhos a políticas mais pro- gressistas.

5.2. A força do mercado

O mercado, por sua vez, é forte agente de construção da cidade, em razão principal-

mente do domínio no que diz respeito ao acesso à terra. Tendo ele a hegemonia do espaço urbano, impõe a conformação da ci- dade segundo as regras do capital e a cate- gorização da cidadania cliente. De fato, o poder econômico, se não tangido a seguir rigorosas pautas, preordenadas pelo Esta- do e pela sociedade, esta por meio das ins- tâncias de que participa, tende a arvorar-se titular da conformação da cidade e até da sua desfiguração ou destruição, do que de- corre virtual ameaça ao patrimônio cultural pela predominância da ordem do mercado da terra e dos interesses econômicos. Acos- tumado com a garantia de sua prevalência, reage o mercado diante de posições que bus- cam o reequilíbrio de forças entre os demais atores de construção da cidade. Faz parte da reação do mercado, por exemplo, a sua malfazeja interferência no plano de produ- ção da norma, quebrando a vocação da lei para o relacionamento com a comunidade, imprimindo-lhe papel tático e projetando sua relação intrusa com a sociedade.

5.3. A força da sociedade

A sociedade, agente ativo potencialmen- te mais relevante da construção do espaço urbano e sua principal destinatária, é tam- bém a instância que diretamente mais so- fre os impactos da construção plural no âmbito dela própria, construção operada sob a necessária influência daquelas ou- tras forças.

Por isso mesmo, é necessário intensifi- car a inclusão efetiva e conseqüente do ci- dadão e da comunidade no processo políti- co de cidade, essencialmente o de edição do direito, para que a lei deixe de ser imposi- ção e ganhe o sentido de consenso, e o de tomada de decisões, especialmente no to- cante à aplicação dos recursos e ao reconhe- cimento de seus valores culturais. Em ou- tras palavras, a sociedade há de sair da po- sição prevalecente de sujeito passivo da construção da cidade para ser agente de mudança pela contribuição individual e coletiva de seus membros.

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A propósito, é preciso fazer logo a adver- tência de que, se a sociedade se mostra inep- ta como agente de construção e controle da cidade ou confusa em relação à realidade urbana que deseja, o mercado, de lógica in- variável, estará cada vez mais apto a capi- talizar as fragilidades da sociedade e do Es- tado (Legislativo, Judiciário e Executivo) e de outras esferas discursivas, como a im- prensa e a academia.

6. A política urbano-cultural e as estratégias de gestão

Vistas as recíprocas interferências de cultura e cidade, impensável uma adequa- da política de gestão urbana que não aco- lha a dimensão cultural do espaço em posi- ção estratégica e, do mesmo modo, afasta-se a política cultural divorciada da urbanística.

São os instrumentos do direito urbanís- tico que, especialmente, podem ser invoca- dos numa política urbano–cultural, isto é, para proteção, valorização e gestão do pa- trimônio cultural no seio do espaço urbano.

Na prática, algumas administrações vêm tentando, em meio a ácidas críticas, a conju- gação dos tradicionais institutos com ou- tros mais progressistas como possibilidade de solução para a complexidade do setor, circunstanciado pela intensa conflituosida- de dos interesses envolvidos, não faltando atitudes de apologização de determinados instrumentos urbanísticos em detrimento de outros.

De tudo resulta que os instrumentos mais ousados, seja pela resistência de proprietá- rios de imóveis urbanos, seja pelo desconhe- cimento da filosofia dos institutos, não fo- ram ainda amplamente assimilados na prá- tica urbanística, de modo que possam ser avaliados sob o enfoque dos resultados so- ciais e dos impactos no mercado imobiliá- rio, razão pela qual a sua adoção e sua apli- cação devem ser precedidas de aprofunda- dos estudos e discussões que permitam con- senso em torno de idéias que lhes servem de pressuposto.

Contudo, é preciso deixar claro que ne- nhum instrumento é, em si, solução e que a maior potencialidade se tem do conjunto deles. Eles não podem ser vistos com pre- conceito: o mais ingênuo pode-se perverter e o mais questionável pode-se converter, conforme a ideologia que o maneje e o con- trole que o garanta.

Demais disso, não se há de ter pudor no desnudamento da inspiração de determina- dos institutos. Ao contrário, as equações que os estruturam devem ser colocadas às ex- pressas, sob pena de incoerência e contra- dições e de artificialização de consensos que, por isso mesmo, não se sustentam.

Igualmente, não deve a atuação urbanís- tica local ser temerária, projetando soluções que extrapolem o âmbito da competência municipal ou, por outra via, desconsideran- do lacunas legislativas da órbita federal in- superáveis pelo poder autonômico do Mu- nicípio.

Não se há, no entanto, de desconhecer a consistente competência legislativa do Mu- nicípio em matéria urbanística, a qual se deduz da combinação dos arts. 30, I, II e VIII, e 182 da Constituição da República, ressal- tando-se, especialmente, a referente aos instrumentos que se relacionem com o di- reito de construir e com a definição do con- teúdo da função social da propriedade ur- bana. Essa compreensão tem garantido a alguns municípios a possibilidade de polí- ticas urbanísticas arrojadas, com a ousadia capaz de demarcar espaço real do poder lo- cal no concerto federativo, valendo o regis- tro de Porto Alegre como a mais enfática re- velação da afirmação da luta pela munici- palidade, no campo das políticas públicas participativas, tendente à construção de nova ordem político-social.

7. A função social da propriedade urbana como princípio orientador da atuação urbanística

Nesse sentido, o desenvolvimento de uma política urbano-cultural desafia, em

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primeiro lugar, a revisão do modelo tradici- onal de propriedade, que persiste no imagi- nário de grande parte da sociedade brasi- leira, e da conformação espacial e temporal- mente compreendida do correspondente direito, conquanto não se afastem outros fatores impeditivos ou facilitadores de sua viabilidade.

A Constituição de 1988, superando o pa- radigma da Constituição de 1934, no tocan- te à propriedade, além de acatar no espectro desta muito mais que o objeto material, pres- creve tratamento diferenciado para as diver- sas espécies e opera mudança conceptual profunda, cujo ponto nuclear é a integração da função social à esfera interna da propri- edade como componente qualificador des- sa, mais ou menos determinante de sua con- figuração, conforme seja o seu objeto (SIL- VA, 1995).

Barreira referenda essa verdadeira con- junção das noções:

“Estão, pois, os conceitos de pro- priedade e de função social agora amalgamados, não se concebendo um sem o outro. A função social não age (…) como elemento restritivo ou con- dicionador do livre exercício dos três elementos que compõem a proprieda- de, quais sejam, uso, gozo e disposi- ção (Código Civil Brasileiro, art. 524); incide, sim, sobre sua própria estru- tura, qualificando-a, dando-lhe uma nova natureza intimamente vincula- da ao Direito Público (…)” (1998, p. 22).

Depreende-se do novo ordenamento, pois, que nenhuma propriedade pode pre- valecer na versão exclusiva de poder de seu titular senão na de poder-dever. De fato, é preciso compreender que a Constituição de 1988 altera fundamentalmente o teor da re- lação dominial, impondo ao proprietário a obrigação de abrir a intimidade do domínio para nela introjetar a prática da função so- cial que a propriedade potencializa.

A propriedade não é assim valor em si nem a potencialidade do querer privado aprioristicamente legitimado. É poder vin-

culado a formas públicas de expressão do correspondente encargo funcional.

Ora, se qualquer coisa, em si, já deve ter uma função transcendente a si mesma, o que dizer da propriedade informada pela fun- ção social? Como propriedade privada pura, já tem uma função a cumprir que ul- trapassa o seu conteúdo estático, como ca- tegoria explicitamente funcionalizada em favor do coletivo, mais perde o seu valor apriorístico, para projetar, de forma vin- culada, sua conformação e dinâmica es- pecíficas.

Essa funcionalidade compreendida na dinâmica interna do domínio comunica, portanto, ao indivíduo a condição de pro- vedor direto da prestação positiva de sua propriedade em favor do coletivo e à socie- dade, o papel difuso de provisão, seja pela força de sua representação, seja de sua in- terferência nos processos comunicativos, seja ainda pela de sua atuação direta, espe- cialmente no controle.

O Estado deixa, assim, de ser provedor exclusivo da função social da propriedade, condição que sustentava a antiga lógica de restrição ao correspondente direito e a posi- ção hegemônica do Poder Público no cam- po social. Sem prejuízo de suas prestações positivas nessa seara e da atuação interven- tiva direta no campo dominial, maior desta- que se deve dar à necessária aplicação pelo Estado de instrumentos que assegurem a inversão da socialização dos ônus da rique- za ou da privatização dos bônus dos inves- timentos públicos, reservando-se-lhe a tute- la enfaticamente orientadora e sancionató- ria, objetivando o cumprimento da função social da propriedade pelo seu titular.

A propriedade urbana recebe tratamen- to mais arrojado na nova ordem. Nesse sen- tido, a política da cidade, engalanada em roupagem constitucional, traduz preocupa- ção fundamental com a ocupação democrá- tica do espaço urbano, o que desafia o Direi- to Urbanístico como inegável campo de re- gulação da função social da cidade a incor- porar tal princípio à base de sua racionali-

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dade, como pedra angular de toda sua cons- trução.

Por outro lado, fazendo intersecção em capítulos específicos, como os de meio am- biente e de política cultural, a política urba- na ganha perspectiva difusa, informada pela intensa conflituosidade subjacente e pela cidadania ativa.

Assim, a função social, como princípio de inclusão da cidadania, como atributo do domínio e como nota de transcendência da noção de propriedade das esferas egoísti- cas para os sucessivos planos metaindivi- duais, é também o parâmetro de relativiza- ção da conformação do direito em si. Os atri- butos internos do direito à propriedade – exclusividade, absolutividade e perpetuida- de, conotados como prerrogativas –, con- quanto mantidos em essência, ao rivaliza- rem espaço interno com a função social, de- vem ser ressemantizados a partir da nova visão paradigmática do Estado Democráti- co de Direito.

Tal relativização, sem desconsiderar a prefiguração da propriedade pela presença dos atributos elementares ampliados, afas- ta necessariamente o seu reconhecimento a priori em uma tal densidade uniforme e in- variável, independentemente do objeto do domínio. Um grande desafio é, portanto, o de superar essa noção apriorística.

Isso se explica pelo fato de que “seu con- torno, seu aspecto interno, seu conteúdo eco- nômico, sua senhoria, a extensão de suas faculdades ou direitos elementares ficam na dependência da natureza do bem que lhe serve de objeto” (LIMA, 1998).

Ocorre que, a despeito da ruptura con- ceptual que pretendeu o Constituinte ope- rar no tocante à propriedade, e da relativi- zação imposta ao seu conteúdo, a lógica de racionalidade social, de base estrutural de- sigual, jurídica e urbanisticamente, pouco se alterou, mantendo-se a compreensão re- trógrada da função social como elemento de defesa da propriedade histórica e não como fator de sua mudança, com naturais reações de grupos mais progressistas.

Aliás, é elementar a constatação de que é a propriedade urbana histórica que se colo- ca como mecanismo de proteção do status quo e vinga, na prática, como propriedade integral, de modo que o paradoxo continua explícito – espaço urbano limitado e propri- edade privada ilimitada, com o quadro so- cial decorrente.

Segundo Maricato, há um consenso que precisa ser desmanchado:

“…pois se trata de um ponto cego re- corrente e funcional –, o futuro quase nenhum de nossas cidades continua atrelado à cláusula pétrea do pacto histórico entre as classes dominantes brasileiras, esse o consenso de todos os consensos, o caráter intocável da propriedade do solo desde a fami- gerada Lei de Terras de 1850”(2000, p. 9).

O certo é que, em larga medida, o direito infraconstitucional continua com seu traço segregador e promete não romper facilmen- te a cadeia de exclusão social.

De resto, tem prevalecido o contraste – a propriedade, singular, intocável, única, ver- sus sociedade, binária, literalmente plural porque duas: a de excluídos e a de privilegi- ados.

No campo da preservação, o duelo é evi- denciado pela presença, de um lado, das forças progressistas que pugnam pela con- servação como forma de garantia da iden- tidade e como resposta à massificação da cultura decorrente da imposição de padrões artificiais e à mercantilização da cidade e, de outro, das forças transformadoras da ci- dade e, paradoxalmente, de mantença do seu status quo consistente na estruturação econômica centrada na propriedade priva- da do solo urbano protegido pelo liberalis- mo jurídico clássico.

Assim, a prática constitucional ainda não se garantiu, de modo que as matrizes do liberalismo econômico continuam forjan- do, com prevalência, os padrões de aplica- ção do instituto e a orientação dos desdo- bramentos do Direito em linha individua-

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lista, que esclerosa o sistema quanto mais o impede de incorporar os avanços deman- dados pela complexidade da era pós-mo- derna.

Não obstante esse nítido império do in- dividualismo, muitas municipalidades têm investido na efetividade constitucional, es- pecialmente no tocante à função social da propriedade, elemento orientador do Direi- to Urbanístico, e na invocação do paradig- ma democrático como informador do siste- ma, o que, na prática, tem levado à conflitu- osidade desses paradigmas – óptica do Ju- diciário versus visão de administrações mu- nicipais progressistas – que se sobrepõem relativamente a um mesmo objeto de foco.

7.1. Direito à propriedade e direito de construir

Uma questão importante diz respeito à relação direito à propriedade e direito de construir. Seria este ínsito àquele? Integra- ria o direito de construir o conteúdo do do- mínio? Grande avanço seria a definição cla- ra de autonomia desses direitos, o que po- deria sustentar a adoção de um modelo de política urbana capaz de interferir com mais radicalidade no quadro de exclusão.

A questão posta, contudo, é complexa e encontra soluções variadas nos ordenamen- tos jurídicos.

Em alguns sistemas, não se reconhece a edificabilidade como faculdade do proprie- tário, sendo o direito de construir tratado como concessão do Poder Público, que o constitui em favor daquele. Este é o trata- mento adotado, por exemplo, pela reforma italiana – Lei no 10, de 28 de janeiro de 1977 – e pelo direito português.

Outras legislações tratam a edificabili- dade como faculdade inerente à proprieda- de, vingando, como essência mesma desta, casos em que cabe ao legislador prescrever as condições para o exercício daquela fa- culdade, o que se insere no regime do licen- ciamento consistente na atuação declarató- ria do Poder Público relativamente ao aten- dimento daquelas prescrições para a valia

do direito preexistente, concepção que, de resto, concilia-se com antiga prática urba- nística interna.

Por fim, há ordenamentos nos quais, a despeito da configuração inequívoca de uma propriedade privada robusta, acolhe-se maior espaço de abrangência de um ônus dominial, justificando solução intermediá- ria nesse particular.

A leitura dos dispositivos constitucio- mais remete para o plano infraconstitucio- nal o efetivo delineamento do conteúdo in- terno da propriedade urbana, ao condicio- ná-la ao cumprimento da função social nos termos explicitados no Plano Diretor.

Há nisso induvidoso propósito de se amoldar a propriedade a um modelo de dupla face de domínio, a do bem considera- do em sua funcionalidade social que, em última análise, a publiciza; e a do bem pa- trimonial, que se há de conciliar, mesmo no campo de sua intimidade, com aquela, e que, por tal razão, sem se afastar da esfera do titular, migra também para o campo do di- reito público, sujeitando-se às regras desse.

No Brasil, a partir de 1988, vislumbra- se, como já dito, no tangente ao espaço ur- bano, o gizamento de uma propriedade sui generis.

Desse modo, parece revelar-se mais con- sentâneo com o modelo de propriedade atu- al o tratamento normativo do direito de cons- truir segundo uma concepção intermediá- ria, que o tome como inerência ao de propri- edade num patamar geral, único, que pode- ria corresponder, por exemplo, ao plano do terreno, figurando o excesso desse coefici- ente como direito do Poder Público, a ser objeto de concessão.

7.1.1. Direito de construir e direito de configuração da cidade

De qualquer que seja o ângulo de análi- se, seja partindo da imanência do direito de construir, seja do caráter autônomo deste, seja da perspectiva conciliadora de uma fa- culdade a ser reconhecida em relação ao patamar comum, com a titularidade do Po-

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der Público considerada no tocante ao res- tante potencial, tem-se que a compreensão não pode interferir na da titularidade do direito de configuração da cidade. A even- tual titularidade privada do direito de cons- truir não privatiza o direito de configura- ção da cidade nem de fruição desta como espaço coletivo.

Cabe à coletividade e ao Poder Público projetar a configuração da cidade por meio das leis oriundas de processos democráti- cos de produção de consenso, do planeja- mento e da gestão da política urbana, ga- rantida a integração intra-institucional e interinstitucional e o compartilhamento com as múltiplas instâncias sociais e eco- nômicas.

Essa mesma titularidade deve susten- tar a esfera do controle, seja pelo governo, seja pelas instâncias democráticas, na bus- ca da efetivação da função social da cidade.

7.2. Propriedade do bem cultural

No camspo da preservação, um desafio importante é o que diz respeito à definição da propriedade do bem cultural. Sustenta Giannini (Apud ÁVILA, 1994, p. 666-) a du- pla conotação da coisa de valor cultural: como entidade imaterial, é bem público, e como bem patrimonial, liga-se ao seu pro- prietário. Adverte que esses bens, inconfun- díveis pela natureza, que assim convivem, devem ser apreendidos, contudo, em pro- funda conexão, tendo em vista a unicidade de seu suporte material. O titular do bem patrimonial não é sujeito ativo de poder em relação ao bem cultural correspondente, bem de fruição pública. É sujeito passivo de de- ver, de obrigação, de encargos que, em últi- ma análise, limitam o conteúdo do seu po- der ativo incidente sobre a patrimonialida- de. Essa a grande construção elaborada pelo doutrinador italiano.

Explica o autor que ao particular inte- ressa a integridade patrimonial; ao Poder Público, a integridade física que sustenta o testemunho, a figuração, o valor e garante a fruição deste.

Desenvolvendo essa concepção, pode-se afirmar que o bem material que suporta um bem cultural de interesse social não se colo- ca como objeto de uma propriedade aprio- risticamente concebida como um conteúdo potencial à mercê do querer privado, mas de uma propriedade limitada à sua patri- monialidade realizada. Só poderá ser obje- to de uma propriedade potencial se esta for compatível com a funcionalidade cultural.

Dessa compreensão decorrem conseqüên- cias diferentes da aplicação de institutos ur- banísticos de proteção. Vale dizer, por exem- plo: se o regime de tombamento for incom- patível com a garantia patrimonial do bem já efetiva no momento de sua incidência, cabe ao Poder Público promover a desapropria- ção competente, o que se admite como exce- ção. A desapropriação, importando na am- pliação da propriedade pública, deve ser assumida como encargo de todos, mediante indenização sustentada pelo princípio da solidariedade social. Se a situação for de restrição a direito com afetação significati- va do equilíbrio dominial, a eventual com- pensação ao proprietário por perda efetiva parcial decorrente de gravame direto do conteúdo patrimonial, conquanto hoje en- quadrável no sistema de indenização geral, haverá de ser pensada como ônus do con- junto das propriedades, e não dos contribu- intes em geral, afastando-se a antiga e falsa noção de que a todos eles cabe assumir os encargos. Ora, nem todos são proprietários. Por outro lado, não se estará, como visto, em face de situação de ampliação da proprie- dade pública, a justificar a chamada geral, mas de redefinição da densidade do con- teúdo dominial específico, que deverá ser equalizada no campo dos proprietários. Nesse sentido, viável seria a previsão de uma espécie tributária que incluísse em sua sistemática a lógica desse financiamento como encargo do conjunto delas, o que po- deria ser viabilizado mediante o direciona- mento para um fundo de equalização da propriedade privada para fins de cumpri- mento da função social, em cujo bojo se en-

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quadra a cultural. Isso, para efeito de com- pensações parciais, consoante já explicitado. Por outro lado, se o regime de tombamen- to for incompatível com a situação futura do bem, estar-se-á tão-somente diante de um encargo potencializado pela própria propri- edade e que haverá de ser suportado por

seu titular.

Outros defendem simplesmente a propri-

edade privada do bem cultural imaterial quando o bem patrimonial que lhe dá su- porte se encontra na esfera privada.

Não se coaduna com a idéia de função social a escravização do bem imaterial à es- fera privada. Dada a inseparabilidade, a que já se aludiu, o titular do bem patrimonial há de ser considerado como um curador da- quele, sujeitando-se, enfaticamente, a regi- me público consubstanciador da proteção.

8. A emergência de edição do Estatuto da Cidade para consolidação das políticas locais

Não raras vezes, as ambigüidades escu- samente reconhecidas no tocante à matriz constitucional de definição de competênci- as – diga-se: apesar do traço nítido de maior generosidade do Constituinte com os muni- cípios – têm socorrido interesses conserva- dores que tentam erguer muralhas de prote- ção da propriedade para mantê-la confina- da na seara do Direito Civil. Em outras situ- ações, esquemas de neutralização do poder local, por meio da postergação da eficácia constitucional engendrada pelos artifícios da inoperância do legislador federal, têm de- tido os propósitos de alteração do status quo.

Não se vislumbrando a transferência do espaço urbano para a esfera do Poder Pú- blico como alternativa para a superação da ordem de exclusão, há de se desafiar não só a lei como a sensibilidade intelectual, social e política para a necessidade de novas solu- ções, como: dissociação dos direitos de tro- ca dos de uso, do direito de propriedade do de construir; do direito de propriedade do de superfície e, por que não dizer, criação

de novos instrumentos urbanísticos tribu- tários que pressuponham equações compen- satórias capazes de levar em conta, por exemplo, base territorial e densidade urba- na, como forma de efetivação do direito de todos à cidade, e outras ao alcance do arrojo dos tributaristas.

Em face dessa realidade, é urgente a edi- ção do Estatuto da Cidade (arts. 24, I, 21, XX, e 182, § 4o da Constituição da Repúbli- ca) para a definição dos pontos, que, guar- dando relação direta com o direito de pro- priedade, têm-se constituído em nós górdi- os do sistema, especialmente pelas interpre- tações mais conservadoras: transferência do direito de construir, natureza pública do bem cultural, autonomia e concessão do direito de superfície e outros que se colocam na base de alguns institutos urbanísticos, incluídos os sancionatórios, enfim, as normas gerais de “desenvolvimento inte- rurbano” e o “delineamento para o desen- volvimento intra-urbano”, no dizer de Sil- va (1981, p. 58).

Uma adequada base normativa, contu- do, haverá de ser conjugada com outras con- dições de sustentabilidade de uma política urbana inclusiva: a intensificação dos pro- cessos discursivos, a sinergia dos movimen- tos sociais, o investimento em pesquisas para suporte de alternativas de intervenção no quadro de realidade, inversão de priori- dades no campo dos investimentos públi- cos e integração dos diversos atores envol- vidos na dinâmica urbana por meio de ca- mais legítimos e equalização das forças em contraste, como forma de garantir a forma- ção de consensos em plano de equilíbrio.

9. Comentário sobre a versão provisória do Estatuto da Cidade

O projeto de lei que visa à regulamenta- ção dos arts. 182 e 183 da Constituição da República e estabelece as diretrizes da Políti- ca Urbana – as por ele intiluladas de normas de ordem pública e de interesse social do uso da propriedade urbana – encontra-se em fase

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final de tramitação no Congresso Nacional, na versão da Emenda Substitutiva, de 28 de novembro de 2000, ao Substitutivo da Comis- são de Desenvolvimento Urbano e Interior.

A proposição estrutura-se em cinco ca- pítulos, a saber: I – Diretrizes Gerais; II – Dos Instrumentos da Política Urbana; III – Do Plano Diretor; IV – Da Gestão Democrá- tica da Cidade; V – Disposições Gerais.

Do ponto de vista do seu conteúdo, apre- senta-se como um conjunto de normas dis- ciplinadoras de instrumentos urbanísticos, só assumindo a linha relativamente discur- siva e ideologizada no capítulo das “Dire- trizes Gerais”, não obstante se defina como Estatuto da Cidade.

O Capítulo I, fiel ao objeto central da Po- lítica Urbana definida na Constituição – or- denação do pleno desenvolvimento das fun- ções da cidade e da propriedade urbana –, reprisa-o, ao fixar as múltiplas diretrizes que orientarão aquela política. Tais diretrizes são: garantia do direito a cidades sustentá- veis; gestão democrática; cooperação entre Estado, mercado e sociedade civil; planeja- mento do desenvolvimento, da distribuição espacial da população e das atividades eco- nômicas do Município; oferta de equipamen- tos urbanos e comunitários e de serviços públicos; ordenação e controle do solo; inte- gração e complementariedade entre ativida- dês urbanas e rurais; adoção de padrões de produção e consumo e de expansão urbana compatíveis com a sustentabilidade global do Município; distribuição de benefícios e ônus da urbanização; adequação de instru- mentos de política e de gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano; recu- peração de investimentos urbanos; proteção, preservação e recuperação do meio ambien- te natural e construído; audiência do poder público e da população interessada quanto à implantação de empreendimentos ou ati- vidades potencialmente negativos; regula- rização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda; simplificação da legislação urbanística e isonomia de condições para agentes públi-

cos e privados em empreendimentos e ativi- dades de urbanização.

Ao dispor sobre “ gestão democrática da cidade”, o projeto revela-se bastante tímido, limitando-se a mencionar os instrumentos mais comuns, encontradiços em experiên- cias exitosas de administrações municipais, como orçamento participativo e assemelha- dos, sem grandes inovações.

No rol dos instrumentos gerais e especí- ficos de Política Urbana que restringem ou limitam o exercício do direito de propriedade urbana, o projeto relaciona os planos nacio- mais, regionais, estaduais, metropolitanos, microrregionais e municipais, entre estes va- lendo enfatizar o Plano Diretor e o orçamento participativo; os institutos tributários e finan- ceiros; o estudo prévio de impacto ambiental e o estudo prévio de impacto de vizinhança, além de outros institutos jurídicos e políticos, que, com maior ou menor interesse para este estudo, são aqui invocados: desapropriação; servidão administrativa; limitações adminis- trativas; tombamento; unidades de conserva- ção; zonas especiais de interesse social; con- cessão de direito real de uso; usucapião espe- cial de imóvel urbano; direito de superfície; direito de preempção; outorga onerosa do di- reito de construir e de alteração de uso; trans- ferência do direito de construir; operações ur- banas consorciadas; regularização fundiária; assistência técnico–jurídica gratuita; referen- do popular e plebiscito.

Uma breve leitura das disposições suge- re ter o legislador federal assimilado impor- tantes proposições dos movimentos sociais, não sendo possível, no entanto, vislumbrar- se a partir delas solução de maior radicali- dade para o caos urbano.

De outra parte, o projeto parece invocar papel mais ativo das municipalidades, seja pela generalidade dos comandos, seja pela ênfase à importância da instância, sobre cuja competência não parece avançar.

9.1. Plano Diretor

Prestigiando o planejamento urbanísti- co, o legislador ordinário enfatiza a impor-

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tância do plano diretor e estende a obrigato- riedade de sua elaboração para as cidades integrantes de regiões metropolitanas e de aglomerações urbanas, ou inseridas em áre- as de especial interesse turístico ou de in- fluência de empreendimentos ou atividades de impacto ambiental mais abrangente, além de explicitar a necessidade de sua elabora- ção como pressuposto da aplicação dos ins- trumentos previstos no § 4o do art. 182 da Constituição da República.

Por outro lado, a proposição sugere mai- or dinâmica na aplicação do instrumento, estabelecendo a obrigatoriedade de sua re- visão a cada 10 anos e de adoção de meca- nismos de compartilhamento da população na sua elaboração e na fiscalização da im- plementação das diretrizes nele previstas.

9.2. Instrumentos sancionatórios

O projeto trata de modo especial, pela necessidade da disciplina em nível federal, dos instrumentos definidos no art. 182, § 4o, da Constituição da República, que se dis- ponibilizam no âmbito da política urbana como sanções pelo não-uso do solo urbano, não mais uma legítima manifestação de do- mínio, mas conduta passível de repressão. São as sanções: parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, determinando-se os critérios de aferição de subutilização, a obri- gação de notificação ao proprietário para o cumprimento da obrigação, além dos pra- zos mínimos a que este se sujeitará; IPTU progressivo no tempo como medida sucessi- va, definindo-se alíquota máxima e prazo de aplicação da medida sob pena de desa- propriação; a desapropriação com pagamentos em títulos, prevendo-se critério de apuração da indenização, obrigação de aproveitamen- to do imóvel pelo Poder Público em prazo determinado.

9.3. Consórcio imobiliário

O substitutivo apresenta, ainda, como mecanismo de viabilização de aproveita- mento de imóvel atingido pela obrigação a que se refere o art. 182, § 4o, da Constituição

da República, o consórcio imobiliário consis- tente na transferência do imóvel ao Poder Público para futura compensação ao pro- prietário por meio de unidades imobiliárias urbanizadas ou edificadas, em valor corres- pondente ao do imóvel antes da edificação das obras. A disciplina guarda a inspira- ção da requisição urbanística, não tratada na proposição, conquanto se preveja apli- cação mais restrita do consórcio imobiliá- rio. A requisição urbanística pode incidir sobre várias propriedades e viabiliza-se por ajuste entre o Poder Público e os proprietá- rios visando à implementação, por aquele, de projeto urbanístico, que será ressarcido mediante incorporação de parte dos terre- nos ao seu patrimônio, para revenda.

9.4. Usucapião especial de imóvel urbano

A proposição cuida ainda destacada- mente da usucapião especial de imóvel urbano de até 250 m2, de propriedade particular, pre- vendo-se a possibilidade de áreas urbanas com mais de 250 m2 serem usucapidas cole- tivamente, hipótese em que o Juiz, na sen- tença, atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, salvo acordo escrito entre os condôminos. O condomínio assim cons- tituído é indivisível, não sendo passível de extinção, ressalvada hipótese prevista.

Dá-se à ação o rito sumário e faz-se am- pliação da legitimidade ativa: possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originá- rio ou superveniente; possuidores em esta- do de composse, e associação de morado- res, quando autorizada pelos representados para atuar como substituto processual.

A proposição trata da alteração da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, sobre registros públicos, para dispensar a regula- ridade do parcelamento do solo ou da edifi- cação como condição para o registro da sen- tença declaratória da usucapião.

9.5. Concessão de uso especial para fins de moradia

Trata-se de polêmico instituto envolven- do imóvel público cujo uso poderá ser con-

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ferido ao possuidor individualmente consi- derado ou a uma coletividade, mediante tí- tulo administrativo ou sentença judicial, caso ocorra omissão ou recusa por parte da Administração Pública.

Prevê-se que, em caso de ocupação de área de risco, o Poder Público garantirá uso especial em outro local. Ao instituto comu- nicam-se a filosofia da usucapião e algu- mas de suas regras, assentando-se os dois na segurança da posse e na idéia da função social desta, conquanto não se confundam. A usucapião é forma de aquisição do domí- nio de bens privados, e a concessão de uso especial, de outorga de uso de bem público, não obstante se tenha sustentado a conces- são de direito real de uso não apenas para facilitar o uso do solo público, mas também de terrenos particulares como se fora um ins- tituto análogo ao direito de superfície, con- forme lembra Weigand (Apud FERNAN- DES, 2000, p. 304).

O título ou a sentença são documentos suficientes para as anotações no Cartório de Registro de Imóveis, que independerão da regularidade do parcelamento do solo ou da edificação.

Relativamente aos contratos de conces- são de direito real de uso no âmbito de pro- gramas e projetos habitacionais de interes- se social desenvolvidos pela Administração Pública, comunica-lhes a proposição o ca- ráter de escritura pública e de título de ga- rantia de contratos de financiamentos habi- tacionais, de aceitação obrigatória.

Por fim, prescreve-se a extinção da con- cessão como sanção em caso de desvio de destinação do bem e de remembramento dos imóveis pelos concessionários, devendo ser a medida objeto de averbação no Cartório de Registro, conforme proposta de alteração da Lei de Registros.

9.6. Direito de superfície

O projeto prevê a inclusão no ordena- mento jurídico pátrio do direito de superfície como fruto do desmembramento do direito de construir do de propriedade do terreno,

mantendo-o, contudo, na esfera do proprie- tário, que poderá concedê-lo, gratuita ou onerosamente, ao superficiário por via con- tratual e mediante escritura pública, reser- vando-se a este direito sobre a construção durante o prazo ajustado. Sustentam alguns que seu arremedo foi tratado no Decreto-Lei no 271, de 28 de fevereiro de 67, com a con- cessão de direito real de uso, que é o

“contrato pelo qual se transfere, a tí- tulo real, a fruição temporária, por prazo certo ou indeterminado, de ter- reno público ou particular, remune- radamente ou não, para fins específi- cos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social” (LIMA, 1998).

O professor da UERJ, contudo, critica a confusão entre os institutos, apontando ele- mento básico de distinção:

“É que no direito de superfície ocor- re a suspensão ou interrupção dos efei- tos da acessão (tudo aquilo que acede permanentemente ao solo passa a ser da propriedade do dono do solo, por mais valioso que seja o incremento, o que significa dizer que o incremento é propriedade do superficiário, sendo, portanto, hipotecável. Tal não aconte- cenaconcessãododireitorealde uso”.

Ocorre, porém, que o tratamento dado pelo direito positivo aos institutos acaba por comunicar-lhe quase identidade, especial- mente em face da ampliação das garantias da concessão de direito real de uso.

De acordo com o projeto, a concessão do direito de superfície transfere ao superficiá- rio o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno de confor- midade com a legislação urbanística, sendo vinculante a destinação convencionada.

A concessão do direito de superfície é passível de transmissão intervivos ou causa mortis, submetendo-se à condição resoluti- va do desvio de finalidade.

Segundo o regime previsto no projeto, o superficiário responde pelos encargos e tri-

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butos incidentes sobre a propriedade super- ficiária e pela eventual parcela devida pela ocupação efetiva do terreno, salvo conven- ção em contrário.

Extinta a concessão ordinariamente ou extraordinariamente, o proprietário do ter- reno recuperará seu pleno domínio bem como das acessões e benfeitorias, que, até entao, colocavam-se na esfera de proprie- dade do superficiário, exceto se se conven- cionou outra solução.

Em caso de alienação do terreno ou do direito de superfície, assegura-se preferên- cia ao superficiário ou ao concedente, res- pectivamente.

Retomando-se as considerações acerca da concessão de direito real de uso e as per- tinentes ao direito de superfície, observa-se distinção entre os institutos: o primeiro tem aplicação mais restrita e institui a garantia de fruição, enquanto o direito de superfície, assentado sobre a idéia básica da separa- ção negocial do direito de construir do di- reito de propriedade do solo, está vocacio- nado à ampla dinamização daquele medi- ante a garantia da titularidade do objeto de seu exercício.

9.7. Preempção

Cuida-se do direito de preempção ou pre- ferência, instituto que tem incidência sobre o atributo da livre disposição do bem. O ins- trumento jurídico, usual na França, assegu- ra ao Poder Público preferência para aqui- sição de imóveis urbanos incluídos em áre- as definidas na Lei de Uso que, postos em transação como objeto de alienação onero- sa entre particulares, poderão ser compra- dos pelo preço arbitrado judicialmente.

Trata a proposição de vinculá-lo, con- correntemente, à exigência de delimitação de áreas de sua incidência no Plano Dire- tor, com o que se enfatiza o seu atrelamento ao planejamento urbanístico, e ao cumpri- mento de uma das seguintes finalidades: re- gularização fundiária ou constituição de reserva de terrenos, ordenamento e direcio- namento da expansão urbana de modo a

permitir ao Poder Público maior facilidade de intervenção no espaço da cidade, desen- volvimento de programas e projetos habita- cionais de interesse social, proteção do meio ambiente natural e cultural, implantação de equipamentos urbanos e comunitários e es- paços de lazer, e outras metas públicas ou sociais definidas no Plano Diretor.

O projeto cuida do procedimento, que en- volve ações do proprietário e do Poder Pú- blico, desde a notificação a cargo daquele, acompanhada da proposta de compra, pas- sando pelo edital do Poder Público conten- do o aviso da notificação, até a operação decorrente do exercício da preferência ou, em caso de liberação do proprietário para a alienação a terceiros nas condições da pro- posta e de efetiva venda, até a apresentação do instrumento público correspondente.

9.8. Outorga onerosa do direito de construir

O projeto, respeitando a competência mu- nicipal para a fixação de coeficiente de apro- veitamento básico único ou diferenciado dentro da zona urbana, prescreve que este seja definido no Plano Diretor, o qual pode- rá prever áreas nas quais o direito de cons- truir poderá ser exercido acima do coefici- ente básico, até o limite previsto. Dissocian- do do direito de propriedade o direito de construir além do coeficiente básico, reco- nhece a titularidade do excedente ao Poder Público, que poderá outorgá-lo onerosamen- te ao beneficiário, de acordo com lei munici- pal disciplinadora, vinculando-se os recur- sos auferidos às mesmas finalidades que sustentam o direito de preempção. Desse modo, mantém-se sob regime de licencia- mento o direito de construir no limite do coeficiente básico, a pressupor a imanência deste ao de propriedade, transferindo-se para o regime de concessão o direito de cons- truir em patamar excedente.

9.9. Transferência do direito de construir

Cuida o projeto de matéria correlata, qual seja, a de transferência do direito de construir. Em princípio alçada à competência da

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União, a disciplina é delegada à lei munici- pal, que cuidará não só de autorizar o pro- prietário de imóvel urbano, privado ou pú- blico, a exercer em outro local o direito de construir inviabilizado, como também a ali- ená-lo, mediante escritura pública. A trans- ferência é, assim, uma operação entre o titu- lar do direito e o adquirente, previamente autorizada pelo Poder Público municipal mediante lei.

9.10. Outorga onerosa de alteração de uso

Segundo o Projeto, o Plano Diretor pode fixar ainda áreas passíveis de alteração de uso a ser concedida mediante contraparti- da do beneficiário, sendo a outorga tratada em lei municipal específica que, como se viu, disciplinará também a relativa ao direito de construir.

9.11. Operação urbana consorciada

Em outra vertente, cuida-se da operação urbana consorciada, instrumento de gestão emparceirada, aplicável em áreas pré-deter- minadas pela legislação municipal, à sua vez, baseada no Plano Diretor.

Na proposição, define-se operação urba- na consorciada como o conjunto de inter- venções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários perma- nentes e investidores privados, objetivando alcançar, em área determinada, transforma- ções urbanísticas estruturais, melhorias so- ciais e valorização ambiental.

O que se coloca como motivação ao seg- mento privado relativamente ao instrumen- to é a filosofia de flexibilização dos requisi- tos gerais da legislação urbanística e a pos- sibilidade de regularização de situações des- conformes com o direito.

A operação deve ser aprovada em lei es- pecífica, a qual conterá o seu plano, que in- cluirá, entre outras previsões, as relativas à contrapartida e à forma de controle da ope- ração, necessariamente compartilhado com a sociedade civil.

Prevê-se a possibilidade de emissão pelo

Município, nos termos da lei específica da operação urbana, de certificados de poten- cial adicional de construção, que serão alie- nados em leilão ou utilizados no pagamen- to das obras necessárias à operação. Serão, contudo, conversíveis em direito de cons- truir exclusivamente na área da operação, para superação de padrões estabelecidos pela legislação de uso e ocupação do solo, até o limite flexibilizado pela lei da operação.

9.12. Estudo de impacto de vizinhança

Por fim, cogita o projeto do estudo de im- pacto de vizinhança, medida altamente posi- tiva de controle a priori de empreendimen- tos e atividades potencialmente impactan- tes da vizinhança, os quais serão especifi- cados em lei municipal.

O EIV, que não substitui o estudo prévio de impacto ambiental quando exigido, deve abranger a análise de questões como gera- ção de tráfego, demanda por transporte pú- blico, reflexos na paisagem urbana, relação com o patrimônio natural e cultural, entre outros, e assegurar, em sua elaboração, a audiência da comunidade afetada.

10. Instrumentos urbanísticos aplicáveis para fins de preservação

10.1. Tombamento

Entre os instrumentos urbanísticos que podem ser cogitados no contexto de uma po- lítica urbana voltada para a preservação do patrimônio cultural, destaca-se naturalmen- te o tombamento. Este, porém, deve estar associado a outros mecanismos, como as zonas de proteção, preempção, transferên- cia de direito de construir, desapropriação, inventário e outras formas de acautelamen- to e gestão urbanística do patrimônio.

Sabe-se que o arrojo das construções ju- rídico–urbanísticas não conseguiu superar o instituto do tombamento como alternativa mais eficaz para a proteção do patrimônio cultural, podendo-se atribuir, não só no pla- no interno, mas, também, no internacional,

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à engenhosidade do instrumento a preser- vação da herança das gerações passadas. É o tombamento, consagrado sob diversos ró- tulos, que se coloca como o último anteparo a deter a força destruidora do “progresso”. Contudo, se não se pode desprezar a poten- cialidade e mesmo a efetividade do tomba- mento, é verdade também que ele há de ser defendido contra o esclerosamento natural dos institutos que não se aprimoram em face da realidade, mais dinâmica e mais com- plexificada. Por isso, ele deve ser revisto e inserido no conjunto de instrumentos urba- nísticos, para ganhar a sinergia desses e romper com a perspectiva mais estática. Essa mesma sinergia entre os instrumentos há de ser também considerada como indicativa da necessidade de relação dialógica dos bens sob proteção com os de seu entorno e da área mais abrangente de sua influência, segun- do diretrizes apropriadas.

Entre nós, o instituto, permanecendo inalterado em sua trajetória de cerca de 63 anos, é, ainda, aplicado tendo em vista ma- trizes paradigmáticas já ultrapassadas, embora tenha sido a sua formulação, ao seu tempo, marco de avanço no tocante ao po- der do Estado no campo dominial privado.

Não obstante as profundas transforma- ções conceptuais acerca da propriedade, o impacto da economia e cultura globaliza- das, com ameaça da identidade e imposi- ção de modelo de desenvolvimento preda- tório, e o paradigma democrático a impor novas relações de poder e gestão, o tomba- mento não foi submetido a um grande deba- te e continua tratado e resistido pela lógica do liberalismo econômico. Assim é que se impõe uma ampla discussão, que se volte menos para os aspectos de sua construção, de seus efeitos, de suas espécies, de seu ob- jeto, mais para as questões que envolvem sua interface com a propriedade.

Este, porém, não é o espaço para a apo- logia do tombamento nem tampouco para a polemização de teses que se colocam na cen- tralidade dos estudos dedicados ao tema. É propósito, tão-só, buscar aqui a sinalização

desses pontos e a convergência dos diver- sos institutos como mecanismos de gestão urbanística.

Veja-se, à vôo de pássaro, a possibilida- de de tal convergência, isto é, a aplicabili- dade de alguns deles ao objetivo comum da preservação do patrimônio cultural no seio da política urbanística, sem prejuízo dos tra- dicionalmente adotados e conhecidos.

10.2. Direito de superfície

O instrumento pode ter cabida no cam- po da preservação, especialmente para a composição de ambiências, para garantir a ocupação adequada de lotes vagos em con- juntos urbanos especiais cujos proprietári- os não disponham de recurso para edificar e para reconstruir imóveis demolidos.

10.3. Edificação compulsória e IPTU progressivo

Enquanto o parcelamento compulsório se presta mais ao propósito de induzir a densificação urbana, o IPTU progressivo e a edificação compulsória, instrumentos ur- banísticos de caráter sancionatório, pode- rão ter aplicação em relação a conjuntos ur- banos de interesse cultural, como alternati- va para recomposição de ambiência.

10.4. Preempção urbanística

O Decreto-Lei no 25/37 já prevê a aplica- ção de instrumento semelhante a bens tom- bados, assegurando ao Poder Público a pre- ferência para aquisição de imóveis assim re- conhecidos que se disponibilizam no mer- cado. Pode ser conjugado esse direito de preferência para fins de preservação previs- to no Decreto-Lei no 25/37 com a preemp- ção urbanística, esta especificamente volta- da para a finalidade de constituição de re- serva de terrenos públicos, de modo a ga- rantir, em última análise, maior poder de interferência do Poder Público no espaço urbano. Vale dizer, preempção em rela- ção ao bem tombado e, por força da legis- lação urbanística, em relação a terrenos de entorno.

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10.5. A operação interligada

Podendo ser tomada como variação das Operações urbanas, a operação interligada constitui a possibilidade de alteração de determinados parâmetros urbanísticos de- finidos em lei nos limites e na forma por ela também previstos, mediante contrapartida dos interessados. O instituto é compatível com a valorização do patrimônio cultural, cabendo à lei instituí-la especificamente para esse fim, estabelecendo as condições de sua implementação.

Segundo Lima (1988), a contrapartida nas operações interligadas pode assumir a forma de: a) recursos para fundo municipal de desenvolvimento; b) obras de infra-estru- tura urbana; c) terrenos e habitações desti- nados a populações de baixa renda; d) re- cuperação do meio ambiente ou de patrimô- nio cultural.

Entre nós, as rotuladas negociações ur- banas, conquanto não estejam suficiente- mente disciplinadas no plano legal, são um arremedo de operação interligada, sendo idêntico o arranjo subjacente a esses insti- tutos.

Trata-se de mecanismo de flexibilização de regras urbanísticas mediante compensa- ção para a coletividade, na forma de contra- tualização.

O grande desafio é a adequada regula- ção do instituto, que tem ao centro a questão do próprio direito de construir.

10.6. Urbanização consorciada

Trata-se de instrumento apoiado na ló- gica de parceria entre a iniciativa privada e o Poder Público, para, sob a coordenação deste, viabilizar a implementação de proje- tos urbanísticos, podendo ser adotada para fins urbanístico–culturais, especialmente para viabilizar projetos mais complexos de revitalização, por exemplo.

10.7. Solo criado

Define-se objetivamente como tal “a área adicional de piso artificial, não apropriada

diretamente sobre o solo natural” (LIMA, 1998).

Do ponto de vista prático, constitui-se em mecanismo de controle do adensamento urbano, a par de propiciar a ampliação das áreas públicas por essa forma de incorpora- ção e de deter a pressão para assunção soci- al dos ônus dos investimentos privados.

Pressupondo a adoção de coeficiente único de aproveitamento do solo – que ga- rante tratamento isonômico aos proprietá- rios –, equivale ao excesso de construção, superior ao limite estabelecido pela aplica- ção daquele coeficiente e dentro do teto le- gal, pelo qual cabe ao beneficiário compen- sar a comunidade mediante contrapresta- ção pelo impacto gerado pelos novos pisos sobre a estrutura urbana. Solo criado é, por- tanto, a superação do coeficiente único den- tro do limite legal. O direito de construir re- lativo a essa diferença pode ser adquirido do Poder Público pelo proprietário ou de outro particular. A contraprestação na ver- são urbanística do solo criado deverá ser, preferencialmente, a cessão de terreno co- munitariamente útil correspondente ao ex- cesso, sendo, na versão financeira, represen- tada por um valor pago à municipalidade. Pode, em sua versão urbanística, relativa- mente a conjuntos tombados, voltar-se para a compensação mediante investimento na estrutura cultural.

Sustentam, com razão, estudiosos do Di- reito Urbanístico que a definição do coefici- ente único, como limitação urbanística, pode ser feita por meio de lei municipal. Contu- do, há os que entendem que tal definição caberia à União.

A discussão ficará resolvida com o Esta- tuto da Cidade, que expressamente deixa aos municípios a fixação de coeficiente básico, único ou diferenciado.

10.8. Transferência do direito de construir

O instituto guarda relação com a con- cepção acerca do próprio direito de cons- truir. Se inerente este ao direito de proprie- dade, o potencial construtivo aferido em face

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do máximo demarcado pela lei é direito do proprietário, comportando teoricamente a aplicação do instituto, se autônomo ao di- reito de propriedade, só a concessão do Po- der Público poderá constituir o direito de construir, o que afasta o instituto da esfera do proprietário, pelo menos em caráter ori- ginário.

Esse direito, se considerado originaria- mente integrado à esfera do proprietário do imóvel, seria um consectário da imanência deste ao de propriedade, tendo por objeto o solo potencial de impossível utilização em razão de alguma imposição urbanística es- pecial como o tombamento, ou, de acordo com o modelo legal, o potencial voluntaria- mente não utilizado, para outro imóvel em condições de recebê-lo.

Considerada, no entanto, a dupla face da propriedade, pública e privada, esta in- formada pelos atributos elementares cuja densidade à lei cabe definir, deve-se ter como fator de equalização da função social do solo urbano a definição de um coeficiente único, no limite do qual o direito de construir inte- gra o de propriedade e a partir do qual todo acréscimo correrá à conta da face pública da propriedade. Falar de transferência de direito de construir na ausência de coefici- ente único é admitir um superdireito de pro- priedade.

10.9. Usucapião

Como instrumento da política urbanís- tica temos a usucapião especial urbana, que assegura ao possuidor de terreno urbano de extensão enquadrada no limite legal, por determinado prazo, ininterruptamente e sem oposição, para sua moradia ou de sua família, o direito de adquirir-lhe o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel.

O processo judicial para obtenção de de- claração de domínio, tal como hoje discipli- nado, revela-se pouco eficaz como forma de regularização fundiária, pela complexibili- dade que apresenta, demandando atenção do legislador no sentido de simplificar e

agilizar as soluções e adequá-lo ao plano de exercício de legitimação coletiva.

Conquanto o instituto não aproveite os fins da preservação, pode-se no plano da ideação e, portanto, meramente propositi- vo, dele cogitar-se para aquele desiderato.

Sabe-se que o Estado, apesar de não po- der ser sujeito passivo em ações de usuca- pião, tendo em vista a imprescritibilidade de seus bens, pode incorporar bens ao seu patrimônio por meio da prescrição aquisiti- va.

Sob esse aspecto, vale aqui acenar para a possibilidade de alteração das normas fundamentais, com o objetivo de dar à usu- capião um novo fôlego para aquisição, por exemplo, de imóveis tombados abandona- dos que deveriam colocar-se, de fato, e de direito, sob a imediata gestão pública. Tal medida poderia conter a saga do abandono deliberado de bens culturais.

11. A tutela judicial da preservação do patrimônio cultural

Por fim, invoca-se a Lei no 7.347, de 1985, que disciplina a Ação Civil Pública, forte mecanismo judicial de tutela dos bens cul- turais e de outros direitos difusos, alertan- do para o fato de que o Poder Público, legiti- mado para propô-la, tem em mãos, junta- mente com o Ministério Público, um instru- mento bastante eficaz que é o termo de ajus- tamento de conduta com força executiva extrajudicial.

Há de se ressaltar, também, a tutela pe- nal ao lado da civil e da administrativa. Com função sancionatória em matéria de lesão ao patrimônio cultural, comparece o Direito Pe- nal como última ratio, com seu papel repres- sivo, intimidativo, para afastar lesões ou ame- aças intoleráveis e socialmente reprováveis.

A Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, constitui um avanço no tratamento da ma- téria, apesar de não ter previsto instrumen- tos de tutela dos bens imateriais incluídos no rol constitucional dos valores protegidos.

Assim, cuidou dos crimes contra o orde-

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namento urbano, o patrimônio cultural e o ambiental e, admitindo a modalidade cul- posa de dano, parece indicar o eixo da tute- la penal para o patrimônio cultural.

Contudo, a lei deve ser aperfeiçoada para dar suporte a intervenções rápidas, preci- sas e severas para garantia da preservação e da censurabilidade das condutas.

O projeto do Estatuto da Cidade, por sua vez, reforça o controle sobre os agentes pú- blicos, especialmente tendo em vista os as- pectos de gestão da cidade. Assim, trata com rigor a responsabilidade desses agentes, em especial, a do Prefeito Municipal, a quem prescreve sanções por desvios em matéria urbanística, resultantes de ações ou omissões, enumerando diversas situações de caracteri- zação de improbidade administrativa.

No mesmo diapasão, a proposição am- plia o objeto de tutela por via da Ação Civil Pública, especialmente para admitir a defe- sa da ordem urbanística, categorizada esta como interesse difuso, cuja ameaça ou lesão pode justificar a invocação da proteção ju- dicial cautelar ou corretiva por parte de um amplo espectro de legitimados.

12. Conclusão

De todo o exposto, é relevante assinalar, à guisa de conclusão, que o Direito Urba- nístico, no movimento de expansão de seu foco, há de alcançar, em perspectiva trans- disciplinar, as múltiplas dimensões da ci- dade, transcendendo a cidade física, para cumprir também lato papel social na busca da garantia plena de sustentabilidade do espaço urbano sob o aspecto dinâmico, so- ciológico e simbólico.

Que a cidade, mais que objeto do direito, é a própria representação deste, cabendo, pois, despertar a ordem jurídica para o pa- pel de transformação do status quo – de ex- clusão e precariedade –, o que passa neces- sariamente pela revisão de conceitos e prá- ticas e pela incorporação do componente democrático aos processos de formulação, aplicação e controle das normas.

Nesse sentido, mais que o destrinçamen- to dos instrumentos urbanísticos ou das me- todologias de gestão de patrimônio cultu- ral, é urgente a superação de questões ante- riores e enfaticamente persistentes: o con- ceito e o conteúdo da propriedade privada urbana, a função social da propriedade, o locus de sua ordenação, a escassez do solo urbano e a pressão para o acesso, o papel do direito, a nova ordem de sustentabilida- de, entre outras.

Que a potencialidade dos instrumentos só se realizará na prática quando se romper com a matriz liberal público versus privado e se conceber o Direito Urbanístico como o ramo ordenador do direito à cidade na ópti- ca social, isto é, quando se romper com a lógica de neutralidade do Direito diante do quadro de exclusão social e segregação es- pacial das cidades.

Finalmente, registrando passagem – ca- rinhosamente selecionada por um grupo de alunos – que vem a calhar no momento pre- sente de revisão de conceitos e práticas, traz- se aqui um alerta a todos que testemunham as mazelas da sociedade binária e a cada um que, mesmo solitário, faz combate à du- alidade urbana de privilégios e exclusão.

Simão Brayer, estudioso na área de ad- ministração, conta a história:

“Quando houve um grande incên- dio na floresta, todos os animais co- meçaram a fugir.

Só um pardal enchia seu bico no riacho e voava de volta, despejando a água nas labaredas.

Um elefante, que corria, perguntou:

— Ô pardal, tá maluco? Você acha que vai apagar o incêndio?

— Não. respondeu o bichinho. Tô só fazendo a minha parte.”

No fechamento dessas reflexões, vem em socorro uma metáfora bem familiar ao mun- do rural – o tição aceso encoberto de cinzas, que atravessa a noite para acender o fogão de lenha no dia seguinte – e com ela o alerta: a exclusão é o braseiro ardente que o siste- ma pretende encobrir de cinzas. As cinzas

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fazem a latência das chamas que, nas ma- zelas e molambos da injustiça social, podem encontrar o elemento de combustão para devorar em convulsão o próprio sistema.

E haverá um alento: muitos terão sido pardais na empreitada do combate a esse pior desastre ecológico há 500 anos poten- cializado.

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