PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL: DA MONUMENTALIDADE AOS BENS IMATERIAIS
MARIA COELI SIMÕES PIRES
Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG
RESUMO: O artigo retoma a evolução da política pública de proteção do patrimônio cultural no Brasil, a partir da concepção restritiva de bem cultural sob a égide do Decreto-Lei no 25, de 30 de novembro de 1937. Mostra que o propósito de construção de um Estado-Nação, que orientou a política de patrimonialização até a década de 70, levou à oficialização, por meio do tombamento, de um patrimônio cultural elitizado, hegemônico e artificializado, para intermediação de uma relação autoritária entre cidadão e poder temporal e espiritual. Apresenta considerações sobre a ampliação do conceito de patrimônio cultural, no plano internacional e no plano interno, inicialmente, para abrigar tipologias patrimoniais em conseqüência da introdução da antropologia no campo da preservação, e, depois, os bens imateriais e a pluralidade das representações. Enfatiza as diretrizes de valorização da participação da sociedade na política pública de proteção do patrimônio, de diversificação das fontes de financiamento e dos instrumentos de preservação, com ênfase em inventários e registros. Pautando a tendência de investimentos privados na preservação do patrimônio, chama a atenção para os desafios de conciliar sustentabilidade e o sentido metafórico dos bens, de garantir a ética na relação público-privado e na equação demandas de consumo – fruição e usos cotidianos, de modo a afastar a prevalência de uma mera racionalidade mercadológica no campo da política cultural, que deve ter como mote principal o valor simbólico, assegurado por referentes materiais e imateriais, legitimamente selecionados e protegidos.
PALAVRAS-CHAVE: Instrumentos de proteção; patrimônio cultural; patrimônio imaterial; registro de bens imateriais.
ABSTRACT: The article discusses the evolution of public policies of cultural heritage protection in Brazil, in the light of the restrictive conception of cultural property under the Decree no 25, of November 30th, 1937. One shows that the objective of building a Nation-State that guided property policies until the 70s led to the officialization by means of recording of a hegemonic, artificial and èlite cultural heritage, an
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authoritative relation between citizen and the temporal and spiritual power. One discusses the widening of the concept of cultural heritage in an international and internal plan to shelter property typologies at first, due to the introduction of anthropolgy in the field of preservation. Later, incorporeal assets and a plurality of representations were covered. One emphasizes the value of the participation of the society in public policies of cultural heritage protection, the diversification of finantial resources and of preservation instruments, specially inventories and registers. Considering the tendency of private investiments in the preservation of heritage, one highlights the challenge to concilliate sustainability and the metaforical sense of goods and guarantees ethics in the public-private relation and in the consumerism demand equation – fruition and everyday use so that one drives away the prevalence of a simple market rationale in the field of cultural policy that must have as main motto the symbolic value, guaranteed by corporeal and incorporeal referentials, which are legitimally selected and protected.
KEY WORDS: Protection instruments; cultural heritage; incorporeal asset; incorporeal property registry.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Patrimônio material da cultura como suposta síntese da memória identitária da nação. 3. O patrimônio cultural expandido na dimensão de processo social. 4. Bens culturais imateriais e instrumentos de proteção. 5. Procedimento de registro de bens do patrimônio imaterial. 6. Patrimônio cultural e demandas globais de consumo. 7. Desafios da proteção. 8. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O patrimônio cultural, capaz de criar e fortalecer laços de pertencimento e de recuperar até mesmo os nexos entre distantes temporalidades e diferentes gerações, constitui-se tanto de elementos tangíveis da cultura, resultantes do engenho, da inventividade, da obra e da arte do homem, como de formas intangíveis dela, tais como os modos de fazer enraizados no quotidiano, celebrações, rituais, folguedos, manifestações literárias, cênicas, lúdicas, plásticas, espaços destinados a práticas culturais coletivas e saberes, cujos valores perpassam o inconsciente coletivo para conferir identidade a um povo ou grupo social. É essa a latitude semântica que se deve dar à expressão patrimônio cultural, e que não emerge nova nos dias atuais.1
A patrimonialização da cultura, mediante a proteção de seus referentes, é uma tendência na sociedade contemporânea, apresentando-se como tema de interesse e pesquisa em campos diversos do conhecimento científico e pauta de um diálogo intenso, notadamente entre cientistas sociais. As políticas correspondentes em âmbito nacional e no plano internacional, capitaneadas, no primeiro caso, pelo Instituto do
1 Ver Gonçalves (1996, p. 134).
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Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e, no segundo, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), ampliam o seu foco e os instrumentos de preservação: “[…] seleção, restauro, conservação, revitalização, gentrification, proteção, valorização, divulgação, reconhecimento e, mais recentemente, inventário, registro e salvaguarda”. (TAMASO, s/d).
Nesse sentido, “As políticas de patrimônio […] atendem cada vez mais a uma clientela diversificada: do documental ao vernacular; do erudito ao popular; da elite às camadas populares e tradicionais” (TAMASO, s/d).
À medida que ocorrem o adensamento do conceito de patrimônio cultural, a evolução das estratégias preservacionistas e as mudanças paradigmáticas, a ordem jurídica vai sofrendo diversificação de sua trama normativa, incorporando soluções mais avançadas, seja pela apropriação de outras concepções teóricas e instrumentos disponíveis no direito comparado, seja pelo traço plural e democrático que a reconforma.
É o que ocorre com o tratamento dado à matéria pelos arts. 215 e 216 da Constituição da República de 1988, que abre nova perspectiva para a ordem jurídica patrimonial, a partir da depuração que opera por meio do fenômeno da recepção, da incorporação de soluções, da matriz aberta para produção de normas infraconstitucionais e ainda de elementos para reorientação da interpretação das existentes.
2. Patrimônio material da cultura como suposta síntese da memória identitária da nação
A política de proteção ao patrimônio cultural desenvolvida à luz do Decreto-Lei no 25/37 tinha o nítido propósito de criação de símbolos para a formação identitária da nação e buscava no patrimônio material os elementos sensíveis para uma tal representação, de modo a abrigá-los sob o manto da intervenção estatal, instrumentalizada, entao, pelo instituto do tombamento.
Por isso mesmo, os bens culturais, na lição de Rogério Proença Leite (2004, p. 51), eram “[…] em geral, selecionados para tombamento em função de sua capacidade de expressar – de forma modelar – a história oficial como suposta síntese da memória, tradição e identidade nacional”.
Na primeira fase do instituto do tombamento, elegeram-se como critérios de seleção para fins de conformação do patrimônio-símbolo o caráter excepcional do bem e o seu enquadramento na tipologia urbana e arquitetônica do século XVIII, traduzida pelo barroco colonial e suas representações.
A propósito, Mariza Veloso Motta Santos (1992, p. 26) registra que “O barroco é emblemático, é percebido como a primeira manifestação cultural tipicamente brasileira, possuidor, portanto, da aura de origem da cultura brasileira”.
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Ao influxo dessa diretriz, Minas Gerais, com suas cidades coloniais, apresentava-se como o mais notável repositório dos elementos dessa identidade. Não por acaso, Ouro Preto, berço do barroco colonial, já em 1933, por força do Decreto no 22/1928, fora reconhecida como patrimônio nacional, antes mesmo de uma legislação que pudesse embasar a sua proteção. Na mesma linha, o conjunto arquitetônico de Serro recebera, pioneiramente no Brasil, o tombamento, nos termos do Decreto-Lei no 25/37, pelo entao SPHAN, em 1938. No Estado, outros tombamentos se fizeram, segundo critérios semelhantes.
Pelo caráter restrito do próprio conceito de patrimônio cultural adotado, pelo traço elitista das representações, ditas nacionais, e pela excludência das diferenças, a conformação do patrimônio não deixava de ser uma artificialização segregadora, já que os bens que o integravam eram, ao mesmo tempo, materialidade e idealização, num sistema de representação oficial e hegemônica, e, portanto, alheio à própria dimensão social do processo de cultura. Tal falseamento é denunciado por Carlos Alberto Cerqueira Lemos: “[…] as coisas antigas hoje tombadas são aquelas que sobraram, na maioria das ocasiões, à nossa revelia; aquelas provenientes, principalmente, dos acervos da classe dominante ou da Igreja. Quase nada do povo”. (MORI et al., 2006, p. 17).
O padrão estatal de cultura era, em última análise, uma sustentação de um novo ser brasileiro. Nessa vertente, consoante lembra Rogério Proença Leite (2004), as políticas de patrimônio têm uma pretensão também ontológica para a vida social, quando selecionam e destacam certos bens culturais que seriam representativos de uma tradição nacional capaz de manter os vínculos comunitários da vida em sociedade.
Por isso mesmo, como se tinha uma política que – na lógica da representação do poder político, religioso e militar, num checks and balances entre potestades espiritual e temporal – enfatizava os monumentos, os critérios estilísticos, a restauração de cunho fachadista e a visão reducionista do patrimônio expressa na emblemática relação preservação-pedra e cal, a “pretensão ontológica” alimentada por aquelas políticas em relação à cidadania era a verdadeira apologia de sua submissão ao poder. Este quase que sacralizado nas suas representações, já que, em essência, os indivíduos se deviam curvar ao engenho, sobretudo do Estado, e com ele conectar- se por meio da monumentalidade. A cultura hegemônica, com seus referentes monumentalizados, de fato, limitava a cidadania na sua interação com o Estado. A forte representação de poder inibia a autonomia individual e societal em face do poder institucional.
Fabíola Nogueira da Gama Cardoso (2007, p. 209) lembra: “Com base no conceito antropológico de cultura, uma maior variedade de épocas históricas e de grupos formadores de nacionalidade brasileira passaram a ser considerados na formação patrimonial, assim como as manifestações da cultura popular”.
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A década de 70 abriu, assim, novas perspectivas para reconformação do perfil da política patrimonial, em especial com a criação, em 1975, do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), que “[…] foi fundamental para lançar uma nova visão sobre o patrimônio cultural como processo social”, franqueando espaço para a discussão sobre patrimônio imaterial.2
3. O patrimônio cultural expandido na dimensão de processo social
O CNRC, na chamada “fase moderna” do Iphan, reunindo os esforços interdisciplinares de pesquisadores e tendo à frente Aluísio Magalhães, proporcionou, em curta experiência institucional, avanços na política de patrimônio, nela introduzindo ações voltadas para a proteção das práticas, dos saberes, dos modos e das artes de fazer populares, com o que se ampliou o próprio conceito de patrimônio cultural, para acolher conceitos de referência cultural e de bens de natureza imaterial.
Desenvolvia-se uma reflexão teórica e pragmática sobre o patrimônio cultural tomado como processo social, por isso mesmo vivo, dinâmico, em contraposição a sua visão como representação simbólica estática. Propugnava-se pela participação da comunidade no desenvolvimento e na construção de suas referências. Tudo para evidenciar a correlação da legitimidade do patrimônio com os sujeitos sociais agentes das escolhas de “[…] aspectos culturais representativos da identidade e com a responsabilidade social e ética para com os grupos criadores e portadores de bens culturais patrimoniais”, de que fala Tamaso (s/d).
As primeiras preocupações do CNRC concentraram-se no mapeamento daquelas práticas e dos saberes, e na renovação do discurso da política de proteção. Essa filosofia oxigenou o Iphan, especialmente a partir do momento em que Aluísio Magalhães assumiu a sua direção, em 1979, que coincide com o da incorporação desse Centro pelo Instituto. As primeiras experiências patrocinadas pelo Iphan no tocante ao patrimônio imaterial da cultura foram os inventários de referências culturais na cidade de Goiás (GO) e em Porto Seguro (BA). Registra-se, em linha similar, uma importante iniciativa de articulação das políticas de cultura e educação, representada pelo esforço que se deu na década de 80 com o projeto “Interação”, do Pró-Memória.
Embora se tenham verificado certo arejamento da política de preservação do ponto de vista conceitual, esforços de gestão, como os de Aluísio Magalhães, e relativa descentralização, o patrimônio cultural continuou referenciado pelo poder público, seja na vertente da cultura de massa, que bem serve aos propósitos do Estado, seja por razões institucionais ou de ordem diversa, de modo que a tendência estatizante verificou-se no Brasil até 1988, quando o constituinte rompeu com o monopólio do Estado no tocante à política de proteção à cultura. A Constituição, coerente com a concepção de patrimônio cultural como processo social, e refletindo influência da Constituição Portuguesa, enfatiza a importância dos referentes imateriais, numa
2 Ver Leite (2004, p. 56).
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concepção plural da própria sociedade, consagrando o patrimônio cultural imaterial como dimensão dos bens ambientais e importante substrato da identidade e da história de um povo.3
A propósito, há de se ressaltar que a inclusão explícita dos bens imateriais no universo do patrimônio cultural preservável vem como resposta do constituinte ao aniquilamento das culturas regionais pelos processos massivos. Esse reconhecimento da importância dos referentes imateriais e da dimensão processual da cultura e das tradições, aliado à distribuição do encargo de proteção da cultura entre o poder público e a sociedade como tarefa coletiva e compartilhada, já é, por si, fator de politização da própria identidade, à luz de uma concepção plural da sociedade, que se revela na discursividade democrática.4
O art. 216 é pródigo na definição de diretrizes e instrumentos dessa proteção ampliada no âmbito de uma esfera pública também distendida e, desse modo, consoante afirma Aguinaga,
[…] supera a concepção do ‘valor excepcional’, título que anteriormente deveria acompanhar os bens culturais, e que por vezes desconhecia as obras e produtos frutos das manifestações populares, o que representa um grande passo no sentido de reconhecer que a diversidade cultural é inerente ao povo brasileiro, e que toda essa heterogeneidade constitui, essencialmente, a base onde se produz e se reproduz o patrimônio cultural. (AGUINAGA, 2010).
4. Bens culturais imateriais e instrumentos de proteção
“A nação existe metaforicamente por meio de seu patrimônio e, uma vez que esse patrimônio é concebido como uma espécie de ponte entre passado, presente e futuro, a nação mesma pode ser objetificada como essa ponte.” (GONÇALVES, 1996, p. 134).
Nas últimas duas décadas, a Unesco tem difundido nos governos, nas organizações não governamentais e nas comunidades a importância do reconhecimento e da proteção do patrimônio intangível da cultura.
Essa trajetória é marcada por iniciativas que vêm repercutindo na postura e nas estratégias dos povos na relação com os bens imateriais da cultura.
Nesse sentido, destaca-se a recomendação sobre salvaguarda da cultura tradicional e popular de 1989, que fornece subsídios para a caracterização dos elementos que a compõem, sua preservação e garantia de continuidade.
3 Ver Pires (1994, p. 278).
4 Ver Pires (1994, p. 278).
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Em igual vertente, o prêmio internacional Proclamação das Obras-Primas do Patrimônio Cultural e Intangível da Humanidade, que distingue espaços e expressões de excepcional importância e a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, de 2003, que, voltada para consolidar a relação dos povos com as mais variadas expressões intangíveis de sua cultura, alicerça uma política internacional mais ampla, já em estágio de precisão de conceitos, aprimoramento de estratégias e instrumentos.
A Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, aprovada pela Unesco em 2003, refere-se a patrimônio cultural imaterial como o conjunto de práticas, representações, expressões, técnicas e conhecimentos que, juntamente com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados, são legitimados pelas comunidades, grupos ou indivíduos, como elementos de identidade e parte integrante de seu patrimônio cultural.5
Os elementos conceituais explicitados na Convenção estão enfatizados por Aguinaga na exposição acerca desse núcleo semântico:
O patrimônio cultural imaterial diz respeito àquela porção intangível da produção cultural dos povos, encontradas nas tradições, nos saberes, no folclore, nas línguas, nas festas, e em outras tantas manifestações que são transmitidas de uma geração a outra, o que, segundo os mesmos ensinamentos, traduz-se por uma série de manifestações, notadamente de natureza fluida e imaterial, que congrega variadas formas de saber, fazer, criar, juntamente com o produto material de suas expressões, bem como do patrimônio tangível que lhe dá sustentação. (AGUINAGA, 2010).
A noção, à sua vez, pode ser acolhida em compatibilidade com o conceito jurídico de bem em ampla acepção, apresentado por René Ariel Dotti, a partir de suplementos de Ihering:
Na formulação clássica, bem é ‘tudo aquilo que nos pode servir’, ou, em outros termos, ‘bem é qualquer coisa apta a satisfazer uma necessidade humana’. Pode consistir num objeto do mundo exterior (coisa) ou numa qualidade do sujeito (integridade física). E também poderá conter uma natureza incorpórea, daí por que se falar em bens ideais ao lado dos bens materiais. (ARIEL, 1984, p. 56).
A Constituição da República prevê, em caráter não exaustivo, instrumentos de proteção do patrimônio como um todo e dos bens imateriais em especial, entre os quais as técnicas de inventário e registro (CF/88, art. 216, § 1o), que se revelam adequados à identificação, ao resgate, à produção de conhecimento acerca das manifestações culturais diversas, por parte de órgãos públicos competentes,
5 Ver Aguinaga (2010).
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de forma compartilhada com a sociedade, com vistas a subsidiar sua proteção e continuidade.
O inventário envolve técnica que permite a catalogação e caracterização de bens com o objetivo de subsidiar política de tutela, notadamente na forma de registro, instituto aplicável aos bens do patrimônio imaterial.
O instituto do registro, previsto na Constituição da República (art. 216, § 1o), destina- se à promoção e à proteção do patrimônio cultural no seu plano intangível. Aqui reside a distinção fundamental da espécie em relação ao tombamento, instrumento tradicional de caráter interventivo de grande expressão na história de salvamento e preservação do patrimônio cultural brasileiro. Enquanto este tem incidência sobre bens materiais, móveis e imóveis, o registro é alternativa para proteção de bens imateriais (a referência à materialidade faz-se a título de apropriação da base de evocação da dimensão intangível que se pretende protegida) e se faz mediante identificação da manifestação cultural cujas características essenciais se vinculem a uma tradição e se mantenham ao longo do tempo; reconhecimento de sua relevância como referência de identidade de um povo; por fim, registro oficial do bem, na perspectiva de apoio à continuidade de suas características essenciais, historicamente construídas, e de sua valorização como referência identitária.
O instituto, em âmbito federal, é disciplinado pelo Decreto no 3.551, de 4 de agosto de 2000, que institui o registro dos bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. A concepção do instituto e a metodologia para a sua aplicação constam no manual de procedimento INRC do Departamento de Identificação e Documentação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de 2000, recentemente incorporadas pela Resolução no 1, de 3 de agosto de 2006, do mesmo instituto.
A Resolução enfatiza a importância do registro na construção da sociedade plural, seja por fomentar a continuidade das manifestações, seja pela abertura a novas e mais amplas possibilidades de reconhecimento da contribuição dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira.
De seu texto, colhe-se o seguinte conceito de aplicação ao instituto do registro: bens culturais de natureza imaterial:
[…] são criações culturais de caráter dinâmico e processual, fundadas na tradição e manifestadas por indivíduos ou grupos de indivíduos como expressão de sua identidade cultural e social; [tradição] são práticas produtivas, rituais e simbólicas que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo, para o grupo, um vínculo do presente com o seu passado.6
6 Consideranda da Resolução no 1/ 2001 do Iphan.
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O mesmo documento normativo cuida de modo especial da processualidade do instituto, determinando os requisitos a serem observados na instauração e instrução do processo administrativo de registro, bem assim cria a Câmara do Patrimônio Imaterial no âmbito do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
O instituto do registro é de aplicação recente no Brasil, embora a preocupação com a temática remonte aos tempos de origem do próprio Iphan e haja antecedentes de inventário de referências culturais em fases diferentes da política patrimonial. Acrescente-se que, em 1995, a experiência-piloto do Inventário de Referências Culturais na cidade de Serro representou oportunidade de atualização da prática institucional, na perspectiva da apreensão de sentidos atribuídos pelos moradores ao seu patrimônio. Trabalhava-se, para além da materialidade, já com a dimensão imaterial da cultura.
Embora se tenha um instituto em construção, as práticas registrárias e as metodologias adotadas vêm-se consolidando, podendo-se afirmar como princípios de aplicação do instrumento a discursividade, a legitimação e a prevalência da dimensão documental, em suas variadas acepções, tanto no resgate da expressão cultural a ser protegida como na produção de conhecimento sobre o tema para a continuidade da tradição. São assim imprescindíveis os estudos históricos e etnográficos e a apreensão dos discursos e dos pontos de vista dos múltiplos atores envolvidos, com o objetivo de fortalecer os laços comunitários a partir das referências protegidas.
Em Minas Gerais, o Decreto no 42.505, de 16 de abril de 2002, acolhendo as linhas básicas do decreto federal e as recomendações da Unesco e inspirado na metodologia do Iphan, institui formas de registro de bens culturais imateriais ou intangíveis do Estado.7
5. Procedimento de registro de bens do patrimônio imaterial
A Resolução no 1/2006 do Iphan, tendo como base o Decreto no 3.351/2000, estabelece ritualística completa do registro, a qual pode ser sintetizada em fases distintas: a propositiva, a de exame de admissibilidade, a de instrução-inventário, a decisória e a integrativa de eficácia.
A fase propositiva inicia-se com o requerimento dirigido ao Presidente do Iphan, diretamente ou por intermédio de suas unidades, para instauração do processo de registro. Anote-se, no tocante a essa fase, a flexibilização que o artigo 2o do Decreto
7 Em 2002, o entao secretário de Estado de Cultura de Minas Gerais, Ângelo Oswaldo Araújo dos Santos, propôs ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) o reconheci- mento do valor cultural da técnica queijeira no plano estadual, com base no Decreto no 42.505/2002. O processo de registro tramitou na instituição e foi concluído em breve tempo. O queijo do Serro, em
agosto de 2002, teve seu registro aprovado pelo Conselho Curador do Iepha/MG, por 8 dos 12 votos, e foi pioneiramente registrado como bem cultural de natureza imaterial ou intangível de Minas Gerais, inscrito no livro de Registro dos Saberes.
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no 3.551/2000 comunica à iniciativa para propositura da medida protetiva. A previsão de ampla iniciativa guarda coerência com o paradigma democrático, com a nova concepção de cultura, o que pode garantir, desde o início do processo administrativo, a legitimidade quanto às escolhas dos referentes culturais e quanto à configuração do patrimônio cultural imaterial. Na mesma linha, o art. 2o, inciso IV, da Resolução prevê que a proposta pode ser formalizada pelo Iphan, por sociedades ou associações civis, pelo ministro de Estado da Cultura, por instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, por Secretarias de Estados, de Municípios e do Distrito Federal.
A proposta deve atender às exigências descritas no art. 4o daquela resolução.8
Na hipótese de insuficiência ou inadequação da documentação ou das informações, deve-se promover diligência para a complementação, no prazo de trinta dias, prorrogável, sem o que se fará o arquivamento do pedido.
No exame de admissibilidade (art. 6o da Resolução no 1/2001), o processo é submetido à avaliação técnica preliminar do IPHAN, que indica a instituição externa ou a unidade do próprio instituto que deva instruí-lo. Esse é um ponto que deve ser objeto de extremo cuidado, uma vez que envolve aspectos éticos relevantes, especialmente no tocante à escolha, à motivação processual da indicação e à observância dos princípios da administração pública.
Ainda nessa fase, tem-se o julgamento, a cargo da Câmara, da pertinência do pedido e da adequação da indicação. A decisão é comunicada ao Iphan, para, no caso de pertinência, informar e notificar o proponente para que proceda à instrução; ou, no caso de impertinência, para outras providências cabíveis.
A fase de instrução técnica (art. 7o da Resolução no 1/2001), ou de inventário9, é
8 Art. 4o O requerimento será apresentado em documento original, datado e assinado, acompanhado das seguintes informações e documentos:
I. identificação do proponente (nome, endereço, telefone, e-mail etc.);
II. justificativa do pedido;
III. denominação e descrição sumária do bem proposto para Registro, com indicação da participação e/ou atuação dos grupos sociais envolvidos, de onde ocorre ou se situa, do período e da forma em que ocorre; IV. informações históricas básicas sobre o bem;
V.documentação mínima disponível, adequada à natureza do bem, tais como fotografias, desenhos, víde- os, gravações sonoras ou filmes;
VI.referências documentais e bibliográficas disponíveis;
VII. declaração formal de representante da comunidade produtora do bem ou de seus membros, expres- sando o interesse e anuência com a instauração do processo de Registro.
9 O Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, criado pelo Decreto no 3.551/2000, já realizou os seguintes Inventários: 1. INRC do Círio de Nossa Sra. de Nazaré – Belém/PA; 2. INRC do Ofício das Baianas de Aca- rajé – Salvador/BA; (Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular – CNFCP); 3. INRC da Viola de Cocho – MS/MT; 4. INRC do Jongo – RJ/SP (CNFCP); 5. INRC da Cerâmica Candeal/MG (CNFCP); 6. INRC Bumba-Meu-Boi/MA (CNFCP); 7. INRC do Museu Aberto do Descobrimento/BA. Entre os inventários que se encontram em curso, alguns se referem à cultura mineira: INRC da Viola Caipira do Alto e Médio São Francisco/MG; INRC dos Queijos Artesanais/MG, e INRC do Toque dos Sinos/MG.
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destinada à documentação, à produção e à sistematização de conhecimentos sobre o bem, e é a mais rica e demorada. Corre sob responsabilidade do Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI), podendo ser delegada ao proponente ou a instituição ou instituições públicas ou privadas, que atuarão sob supervisão do instituto.
O art. 9o da Resolução no 1/2001 prevê, além de documentação, a produção e a sistematização de conhecimento sobre o bem cultural, abrangendo aspectos diversos.
Essa é, portanto, uma fase propícia ao denso diálogo sobre um dado bem da cultura e sobre o fenômeno que o envolve. Não se há de olvidar, no entanto, que, no campo de um mesmo objeto de estudo e pesquisa, haverá sempre pontos insondáveis, os quais Tamaso (s/d), a propósito do discurso museológico, chama de “silêncios” e que podem ter aplicação aos inventários e registros: “Alguns desses silêncios ainda poderão ser desvelados por meio das memórias dissidentes e subterrâneas que sobrevivem, a despeito do discurso oficial das políticas e práticas patrimoniais locais”.
Já na fase decisória, o processo, instruído, será levado pelo presidente do Iphan ao Conselho Consultivo, no qual será relatado pelo conselheiro para tanto designado, discutido em audiência pública, se for o caso, e submetido à decisão do órgão.
A fase integrativa de eficácia envolve a inscrição do bem no livro de registro correspondente, a emissão de certidão do registro, a titulação do bem e a publicação da decisão na imprensa oficial.
Os bens são registrados de acordo com a categoria em que se enquadram, em livros próprios, assim classificados pelo Decreto no 3.551/2000, art. 1o, § 1o: Livro de Registro dos Saberes, para os conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; Livro de Registro de Celebrações, para os rituais e festas que marcam vivência coletiva, religiosidade, entretenimento e outras práticas da vida social; Livro de Registros das Formas de Expressão, para as manifestações artísticas em geral; e Livro de Registro dos Lugares, para mercados, feiras, santuários, praças onde são concentradas ou reproduzidas práticas culturais coletivas.10
10 Atualmente, no Iphan, encontram-se registrados como Patrimônio Imaterial os seguintes bens: 1 – Ofí- cio das Paneleiras de Goiabeiras (ES); 2 – Kusiwa – Linguagem e Arte Gráfica Wajãpi (AM); 3 – Círio de Nossa Senhora de Nazaré (PA); 4 – Samba de Roda do Recôncavo Baiano (BA); 5 – Modo de Fazer Viola-de-Cocho (Região Centro-Oeste); 6 – Ofício das Baianas de Acarajé (BA); 7 – Jongo no Sudeste (Região Sudeste); 8 – Cachoeira de Iauaretê – Lugar sagrado dos povos indígenas dos Rios Uaupés e Papuri (AM); 9 – Feira de Caruaru (PE); 10 – Frevo (PE); 11 – Tambor de Crioula do Maranhão (MA); 12 – Samba do Rio de Janeiro (RJ). Outros processos para registro encontram-se em tramitação no Iphan, entre os quais podem ser realçados o de Linguagem dos Sinos nas Cidades Históricas Mineiras São João del Rei, Mariana, Ouro Preto, Catas Altas, Serro, Sabará, Congonhas e Diamantina e, ainda, o do processo artesanal do Queijo Minas, a partir da proposta de registro do processo artesanal de produção do queijo do Serro, instaurado com a abertura do dossiê de estudos R 06/01.
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A propósito dos lugares e das paisagens culturais, não há consenso em relação aos mecanismos de reconhecimento e gestão como integrantes do patrimônio.
Rafael Winter Ribeiro (2007, p. 9), por exemplo, discorrendo sobre paisagem cultural, questiona tanto a aplicabilidade do tombamento quanto a do registro do patrimônio imaterial às paisagens. Embora o tema de proteção à aludida categoria não seja novo, só mais recentemente vem ganhando importância, notadamente “[…] como a base material para a produção de diferentes simbologias, locais de interação entre a materialidade e as representações simbólicas”.
Prevê-se, no decreto mencionado, uma reavaliação periódica da situação do bem registrado, para fins de revalidação, o que ocorrerá, no máximo, a cada dez anos; a regra é reprisada no art. 18 da Resolução no 1, de 3 de agosto de 2006. Observa-se, portanto, que o registro, diferentemente do tombamento, não tem caráter de proteção definitiva. Sua permanência é processual e deve ser validada periodicamente. A ruptura com a tradição que constitui objeto de registro justifica a perda da titulação, com a conseqüente manutenção do processo apenas como referência histórica. A norma é advertência permanente para que a comunidade, os órgãos e as entidades de preservação em todos os níveis, os agentes de cultura e os cidadãos concebam o bem protegido em sua dinâmica, contribuindo para sua defesa e valorização como integrante do patrimônio cultural.
6. Patrimônio cultural e demandas globais de consumo
O tópico trata de uma das questões cruciais no âmbito das políticas de patrimonialização, que alimenta o debate sobre consumo cultural sob inspiração da “racionalidade mercadológica” ou em reação a ela. O tema é objeto de tese de Rogério Proença Leite (2004), que, analisando os processos de transformações do patrimônio cultural em mercadoria, no âmbito de políticas de gentrification, discute o enobrecimento dos espaços, a sua retradicionalização; a fetichização da cultura, entre outras questões pertinentes.
As demandas de consumo cultural estão mais diretamente associadas à relação entre patrimônio e economia, entre cultura e turismo, sinalizada desde o Encontro de Quito, em 1967, pela ênfase dada à potencialidade econômica dos monumentos.
Na interface com o patrimônio imaterial da cultura, que pode qualificar os bens tangíveis, a gentrification pode alimentar um processo, às vezes perverso, de reelaboração das tradições locais para dialogarem com as pressões do consumo cultural.11 É dizer: nesse quadro, a cidade se obriga a atualizar ou se adequar para ser e ter produtos na vitrine dos negócios, incluídas as representações de seu patrimônio imaterial.
11 Ver Leite (2004, p. 65).
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Essa pressão da racionalidade mercadológica, que impõe a potencialização econômica dos bens culturais, traz como conseqüência a sua precarização, quando não, grave elitização. Essa elitização ocorre pelas diversas formas de interditos proibitórios e pela desconsideração dos usuários residentes na área de intervenção ou de sua condição de co-autores de sua cultura, estimulando a segregação não apenas espacial mas também social. O quadro envolve a apropriação privada dos bônus da preservação e da cultura como um todo, pela exploração egoística de serviços e produtos, com a transformação da tradição, dos saberes e fazeres, das manifestações folclóricas em espetáculo, tudo para alimentar a agenda das arenas do mercado, que segue alheio à essência dos espaços.
A privatização do público só pode ser revertida pela atitude cotidiana dos cidadãos na busca de seus lugares e de suas tradições, pelas interações sociais espontâneas travadas nesses espaços. Fugindo à lógica de meras concessões, tais interações são capazes de recriação e resignificação da materialidade e das simbologias.
A cidade apessoada é espaço que falseia qualquer relação de criação e sociabilidade e, portanto, de identidade, a não ser a de verdadeiramente excluído, razão pela qual a presença que aí se tenha é, quase sempre, transgressora.
7. Desafios da proteção
1 – Resgatada, em linhas gerais, a evolução da política patrimonial no Brasil, vê- se a importância do instituto do tombamento na construção do chamado Estado- Nação e os efeitos práticos de sua aplicação, o verdadeiro salvamento dos bens que hoje compõem o patrimônio cultural material, ainda que este se revele elitista e hegemônico.
Por tudo isso, o tombamento, certamente, continuará como importante instrumento da política patrimonial. O desafio que se apresenta é o de renovação do instituto, sobretudo como processo de seleção dos referentes identitários, e o de sua conjugação com os mecanismos de proteção de bens imateriais e, no plano da política urbana, com outros de caráter urbanístico disciplinados no Estatuto da Cidade, Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001.
Inventários, registros e outros mecanismos disponíveis devem ter seu uso fomentado, ao lado das formas convencionais de proteção voltadas para o patrimônio material, de modo a permitir a consolidação das diferentes formas de lembrança, a reconstituição da diversidade cultural a partir do cotidiano de suas expressões, o arranjo multirreferenciado de identidade, como contraponto às tendências de homogeneização no setor.
2 – Outro desafio é o de se proceder à ressemantização do conceito de função social no âmbito da política de preservação, em dimensão teórica e pragmática mais ampliada.
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O princípio da função social da propriedade, de há muito, é tomado como núcleo de fundamental importância na política de preservação e, nesse campo, teve sua primeira materialização em dispositivos da Constituição de 1934, para proteção do patrimônio histórico, artístico e paisagístico nacional.
A política patrimonial, instrumentalizada, posteriormente, por meio do tombamento, encontrava em teses da função social da propriedade o suporte para a intervenção estatal de salvamento e preservação dos bens.
A ênfase na função social, contudo, dava-se em relação à propriedade, em uma visão estrita que levava em conta o ônus do bem como suporte físico dos valores simbólicos do patrimônio.
Contemporaneamente, há de se avançar na dimensão social do patrimônio cultural, para além dos vínculos proprietários e dominiais; há de se discutir a função social da formação do próprio patrimônio, na perspectiva plural e democrática; há de se enfatizar os usos inclusivos dos bens do patrimônio; há de se considerar a função social do patrimônio na relação de sustentabilidade dos bens; há de se tratar a preservação do patrimônio como atribuição compreendida na lata função social da cidade e, ainda, ter em vista a função social da ambiência, idéia que, por si, marca a renovação da relação público-privado.
Daí por que se apresenta como desafio a própria reconceitualização da função social no âmbito da política de patrimonialização.
3 – No mesmo patamar de importância, apresenta-se o desafio da participação da sociedade na política patrimonial. Quer no plano material, quer no imaterial, vislumbra-se a indissociabilidade entre participação social e defesa do patrimônio cultural. Nessa vertente, o arranjo da política pública correspondente deve enfatizar a participação dos cidadãos e da sociedade civil, para construir uma lógica de responsabilidade compartilhada, fomentar a politização da cultura, estimulando a autonomia e o processo emancipatório da sociedade pela vertente da valorização crítica da cultura, do sentimento de pertencimento a um lugar, a uma história.
Por isso, há de se pôr atenção também no risco de a patrimonialização levar ao divórcio entre o patrimônio e a própria sociedade, sua formadora e titular, preocupação presente na reflexão de Tamaso (s/d), que propõe “[…] dialogar com alguns teóricos do patrimônio sobre o fenômeno de patrimonializar bens culturais e ‘arquivar’ culturas literal e metaforicamente”.
De fato, é necessário ampliar o suporte do processo social de construção de um patrimônio cultural. A participação e a potencialização dos instrumentos de mudança de concepção da memória poderão convertê-la de fruto de engenho ideológico artificial em categoria emergente da sociedade e, assim, garantir que o processo de patrimonialização seja uma via para alcançar a cidadania. Isso está relacionado com a questão crucial formulada por Tamaso (s/d), a “[…] da representatividade e
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de agencialidade dos criadores e portadores dos bens culturais: como (e quem vai) garantir que os próprios criadores e agentes locais do bem cultural serão também ‘agentes’ no processo de seleção de políticas e regulamentação de seus direitos?”
4 – Diante do quadro de escassez de recursos públicos alocados à política de preservação, uma tensão que deve ser enfrentada é a que se estabelece entre preservação e sustentabilidade.
Não se pode, a propósito de autofinanciamento do patrimônio, vulnerá-lo como expressão de cultura. Nesse sentido, faz-se necessário adotar, para os bens, usos que, ao mesmo tempo, recuperem os significados a eles atribuídos pela sociedade, que possam assegurar a sustentabilidade, sobretudo sob a perspectiva da comunidade envolvida.
Nesse sentido, importa discutir o perfil de financiamento da política pública, o que requer avaliação crítica da legislação de incentivos e análise de alternativas alocativas no âmbito da responsabilidade do Estado, seja para garantia de preservação de bens ditos não sustentáveis, seja para democratização do acesso à cultura.
Na mesma vertente, admitindo-se a participação privada no financiamento da preservação, enfatiza-se a necessidade de repolitizar a questão da recuperação de áreas degradadas, de conjuntos arquitetônicos, bem como de resgatar tradições e saberes, para tematizar a matéria na pauta das relações de público e privado. É evidente a potencialidade econômica de grande parcela dos bens da cultura, e não é sensata a idéia de sacralizá-los a todos, mas eles não podem ser simplificados na expressão mercadoria, sujeitando-se a operações mercantis de especuladores que privatizam o público na forma de mais-valia.
Nessa linha, a participação equilibrada do Estado, da sociedade civil e do mercado nas políticas de preservação, na sua lógica conceptual e prática, é fundamental. Além disso, tal presença não apenas na linha pragmática mas também reflexiva deve ocorrer em todo o ciclo, desde o planejamento, passando pela execução, até o controle e sua realimentação.
5 – Por fim, apresenta-se o desafio do controle da proteção ao patrimônio cultural, na perspectiva dos interesses difusos de memória, de fruição coletiva e da própria integridade ou permanência de seus referentes, materiais e intangíveis, o que deve envolver a dimensão jurisdicional, a política e a social. No campo jurisdicional, a ação civil pública continua como a via mais vocacionada para o mister do controle, tendo em vista ser ela voltada, de modo específico, para tutelar o patrimônio cultural constituído de bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e, em caráter genérico, para a proteção de outros interesses difusos ou coletivos, o que permite associá-la à proteção do patrimônio cultural em sua lata abrangência de bens materiais e imateriais, perpassando a própria política pública patrimonial (art. 129, III, da CR e art. 1 da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985).
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