Poesias

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Sou a Pedra redonda
Zoiúda
Que vigia sem parar os arredores.


Sou o Pico do Itambé
Encoberto de nuvens
Que se esgarçam ao primeiro sol.


Sou a Serra do Cipó
De sinuosas curvas
Perdidas entre nós
Cegos e
Vendados mistérios


Sou a Lapa da Boa Vista
Que soluça lágrima seca
Em tardes mornas de sol.


Sou o condado virgem
No recato de seus medos.


Sou o Quatro vinténs
Que corre para o Lucas
Em curso lento e choroso.


Sou o Morro Centenário
Que deita a cabeça no colo de Deus
Pedindo um cafuné
Na rara cabeleira.


Sou os veeiros depauperados
De outras riquezas encobertas.


Sou a Fonte do Vigário
Gotejando esquecida
Pelos cantos do Chaveco


Sou o coreto em destroços
Sufocando a sinfonia da vida.


Sou o palco do mundo
À espera da melhor peça.


Sou as ruas de Baixo e de Cima
E os becos sem saída.


Sou a Ladeira do Pelourinho
Batizada pelo grito escravo
Que retumba na senzala do tempo.


Sou o Paredão da Matriz
Na contenção da encosta
Da fé primeira.


Sou a palmeira gigante e altiva
Que ameaça o céu
Sem fazer requebros
Quase inerte sobre raízes profundas.


Sou o casario de linhagem nobre
Contrariando a lei da gravidade.


Sou o cargueirinho alienado
Que desce a rua
Atravessa a festa
O discurso
E estruma no chão
Em pose para a posteridade.


Sou a Capela de São Miguel
Que badala a morte
Ao dar sinal de vida.


Sou o prédio da Cadeia
E o pensamento livre
Que escapole inteiro
Ou em fragmentos
Pelas grades
E vai sem peia.


Sou Igreja Santa Rita
Em esplêndida janela
Espiando da colina
A cidade baixa
Ressuscitar das brumas.


Sou a gente
Que pede licença
Para pisar este chão
Para respirar estes ares
Para poetar sob este céu.


De onde vim
Só pra ser uma flor exótica
Entre rochas e colinas
Da minha terra.

Alto
Chamas
Cenas
De
Luz
Arauto
Do alto
Acenas
Chamas
Rasgando essas trevas
Espalhando o sopro
Por tua criação

Emergente
Emerge
Entre
De mim
Emergente
Menos ente
Mais gente
Emerge

Fulgente
‘’ Full’’...
Da Mortalha de um tempo
Do assombro do vazio
Nova face
Nova mulher
Na aventura do recomeço
Mias gente
Só.

De
Vagar
Cansado
Passo a passo
Lenta
Mente...
Com
Passadas
Toadas
Do Caminhar...

Eu
Ca
Li
Pito
Cheira
Bom
Quase
Bálsamo
De mim.

Sensual
Sem
Idade
Sensualidade
Não
Caduca.

Serro
Com Frio
De alma acalorada
Com Sol
E de sombra remansosa
Serro
Com chuva
E de sombra remansosa
Serro
Com chuva
E de ribeiros secos
Serro
Sem erro
Concerto de Minas
Velho Serro
Sem idade
Que teus serros
Vigiarão por nós
Serro
Com teus morros calvos
Sem tua farta cabeleira
De fala eloqüente
E memória silenciosa
Sem o tumulto do progresso

REFORMA ADMINISTRATIVA- REFLEXÕES SOB A PERSPECTIVA POLÍTICO- FILOSÓFICA

MARIA COELI SIMÕES PIRES

Maria Coeli Simões Pires é Mestre em Direito Administrativo pela UFMG, Procuradora da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais e Professora de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UFMG.

SUMÁRIO

  1. Introdução.
  2. Paradigmas pré-modernos.
  3. Paradigmas modernos e Estado de direito.
  4. Crise do Estado de direito e do liberalismo e opção pelo Estado social.
  5. Crise do Estado social. Paradigmas do Estado democrático de direito.
  6. Concepções de Estado e modelos de administração.
  7. Descom- passo entre concepção política, aparelhamento estatal e transformações sociais. O esforço refor- mista.
  8. O papel do Estado e a relevância da sociedade.
  9. A atual Reforma Administrativa.
  10. Conclusões.

1. Introdução

O propósito deste trabalho é traçar, no quadro pendular de marchas e contramarchas da Revisão Constitucional, de reforma e contra-reforma do Estado, um espaço de neutralidade, para o qual se possam transplantar as idéias contrapostas por aqueles que polarizam a discussão, para que elas ali se estruturem como base de um processo dialético, capaz de precisar razões, de sondar vontades e delinear caminhos conciliatórios de trajetórias tão antagônicas que hoje se projetam em completo divórcio da expectativa dos que, no plano da legitimação originária, são usados para sustentação de antinomias como neolibera- lismo-estatismo, Estado mínimo-Estado máximo, entre outras.

O tracejamento desse campo contemplará múltiplas órbitas de análise, abrangentes das concepções de Estado e de direito, das reper- cussões destas nos modelos de administração pública, dos atuais paradigmas constitucionais e suas potenciais ou efetivas interferências nas práticas administrativas e nas matrizes das relações público-privado e adminis- tração-administrado.

Diante da idéia da instrumentalidade do aparelho estatal e da correlação entre atividade administrativa (administração no sentido objetivo), administração (no sentido subjetivo) e concepção política, tendo esta tradução mais fiel nas linhas de governo, torna-se fundamental resgatar, seqüencialmente, os paradigmas que prefiguram ou conformam o Estado, especial- mente os atuais (formais e informais), com vistas ao delineamento das balizas que devem demarcar uma nova noção de Estado, com reflexos, em ângulo aberto, sobre aquelas práticas e relações.

De outra parte, a análise não pode descurar o cruzamento de forças centrípetas e centrífugas na lógica natural da contextualização, as idéias e os valores internos e externos em processo de imantação e repelência. Há de atentar no macrocenário, buscando identificar as grandes tendências mundiais; há de se deter no estrato interno, perquirindo a solidez de sua base para sustentação das idéias e dos valores próprios e, ao mesmo tempo, a permeabilidade dessa estrutura ao fluxo de concepções externas, avaliando o poder de afirmação, absorção e resistência responsáveis. Enfim, deve alcançar, em toda sua extensão e profundidade, o objeto de exame, tornando possível a identificação das crises e sua conotação, possibilitando estimar- se o grau de viabilidade e consistência de alternativas aventadas para superá-las.

Para breve retomada dos paradigmas, busca- se, aqui, suporte em referências sintetizadas, principalmente, pelo Professor Menelick de Carvalho Netto, a partir de leituras de N. Luhmann, Habermas, Marcuse, Norberto Bobbio, entre outros. (Exposição em aulas nos cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 1995.)

2. Paradigmas pré-modernos

Os paradigmas pré-modernos (antigo e medieval) condicionam uma organização política e um direito de privilégio, cuja base é a sociedade de castas, na qual a justiça equivale à eqüidade do desigual, num artifício que acaba por marmorizar a desigualdade originária da hierarquia social absoluta e divinizada, em que se mantêm as posições de nascimento. Aí, a norma perpassa a religião, o direito, a moral, a tradição e os costumes, que, na realidade, confundem-se e se aplicam casuisticamente.

Esses paradigmas sofrem alteração, quer em razão do capital, quer da força de trabalho – o contraponto – que, fazendo homens livres e possessivos, constituem-se em mecanismos de paulatina destruição da estrutura feudal, fechada e hierarquizada, o que traz como reflexo a separação das esferas antes indistintas.

3. Paradigmas modernos e Estado de direito

Nesse contexto, emergem os Estados nacionais como espaço de elaboração racional de normatividade propriamente jurídica e de imposição de regras abstratas e abrangentes. Sustenta-se que o direito deve ser imposto por lei emanada do aparato da organização polí- tica laicizada. O direito passa a se assentar em idéias de cunho natural e jusracionalista, sustentadas pelo princípio de igualdade perante a lei; dá-se a quebra dos privilégios de nasci- mento pela extensão formal das liberdades e dos direitos a todos os membros da sociedade. O direito público, todavia, está adstrito à melhor sociedade, na expressão de Pimenta Bueno (Constituição Política do Império, de 1824); só o direito privado é inerente a todos, mas, em suas duas vertentes, tem-se um direito de escol, oriundo daquela. Com efeito, o direito é de base elitista e excludente, já que cabe à sociedade política a salvaguarda da sociedade civil, com o que se evidencia o fosso entre elas, ou seja, a superioridade daquela em relação a esta.

O constitucionalismo implanta o Estado de direito, que é o Estado da legalidade, respon- sável pelo direito e a ele sujeito. A ele cabe desenvolver um sistema normativo válido universalmente para a sociedade, estruturado sobre um conjunto de idéias postas como direito racional naturalizado, de valor absoluto.

Odete Medauar1 lembra, a partir de apon- tamentos de Giannini, que a expressão Estado de direito

“na sua formulação originária revestia- se de significado polêmico contra o Estado Absolutista tardio (Estado de Polícia) e visava, na essência, à limitação do poder do Estado, pelo direito, como garantia aos indivíduos contra o arbítrio”.

1 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em evolução. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1992. p. 95.

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Mostra a autora, no entanto, que, no desen- volvimento da doutrina, verifica-se a agregação de outros elementos à concepção abarcada por aquele rótulo.

Sob os auspícios dessa filosofia, na prevalência do liberalismo, a salvaguarda da sociedade civil revela-se por meio do direito público, como o mínimo de leis gerais editadas para assegurar ampla liberdade a cada um de desenvolver suas “proprieda- dês” físicas e mentais sob a ótica do interesse geral, entregue a representantes da melhor sociedade e do direito privado, como o conjunto de normas destinadas à garantia formal da igualdade de todos perante a lei. Todo esse direito, cujo substrato são normas gerais e abstratas, destina-se a estabelecer limites negativos, tendo ao centro os direitos individuais2.

O direito ganha, assim, o respeito e a rigorosa aplicação em sua vertente dogmá- tica. Pode-se dizer, com apoio em críticas feitas pela doutrina à teoria do Estado de direito, de que dá notícia Odete Medauar em sua atualíssima obra, como as de Chevallier3 e Jean-Louis Autin4, retemperadas por salu- tares ponderações da autora, que, ancorado nessa concepção, que conseguiu carrear para a regra jurídica força simbólica especial e incutiu nos governantes e na sociedade a reverência ao direito, o Estado construiu o artifício da legitimação das autoridades públicas, erigindo o direito ao patamar de caução de seus atos, os quais se sustentavam na medida da observância das regras de competência e forma, sem qualquer compro- misso com o conteúdo material de justiça. Eis por que a formulação precisava ser densificada com novos elementos e aprimo- rada em seus pressupostos, para que lhe fosse garantida eficácia enquanto concepção da organização social e política sucessivamente transformada, buscando-se o primado do direito, mas, também, o da justiça na sua perspectiva material.

2 CARVALHO NETTO, Menelick. Anotações de exposições em aulas no Curso de Pós– Graduação da Faculdade de Direito da UFMG. 1995.

3 CHEVALIER. L’état de droit. Reveme du Droit Publique, p. 314–316, 1988. Apud MEDAUAR, op. cit., p. 99.

4 AUTIN, Jean Louis. Illusions et vertus de l’etat de droit administratif. L’etat de droit, 1987. Apud MEDAUAR, op. cit., p. 99.

Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. 1997

4. Crise do Estado de direito e do liberalismo e opção pelo Estado social

No século XX, o liberalismo perde seu primado. A negação histórica dos valores de liberdade e igualdade, as chamadas idéias abstratas, principalmente pela presença da propriedade privada na base da relação de exploração do homem, na prática, evidenciaram a crise do liberalismo; a este, contrapunham- se idéias socialistas, comunistas, anarquistas, movimentos de massa empunhando bandeiras de interesses coletivos, enquanto a Primeira Guerra jogava nítidos reflexos sobre o cenário mundial. A noção de Estado de direito evoluía, entao, para a de Estado social, ganhando expressão formal nas Constituições do Primeiro Pós-Guerra e plena maturidade na Lei Fundamental de Bonn de 1949, em seu art. 20, item 15.

A organização política logo passou a perseguir, pelo menos no plano nominal, novo perfil, em que se redefiniam direitos individuais e se consagravam direitos coletivos e sociais sob a perspectiva de igualdade material, avali- zada pelo poder público. Propunha-se, assim, a redefinição e a relativização de direitos indi- viduais, a incorporação de direitos coletivos e sociais e a sua materialização.

Nas diversas formas de organização política, ao Estado social caberia, circunstan- ciado, de um lado, pela pressão das massas em busca do reconhecimento de novos direitos, pela presença do operariado como ator político importante, como decorrência da Revolução Marxista, e, de outro, pela própria demanda de adoção gradativa de políticas intervencionistas para proteção do capitalismo, a responsabili- dade pela ampliação da base de emprego, pelos investimentos no processo de crescimento, pela política distributiva destinada a assegurar um mínimo social de acordo com a riqueza produ- zida, e pela substituição do mercado na provisão de direitos sociais em graus de universalização cada vez mais acentuados, dando fluxo à lógica estrutural de apropriação da produção social pelo capitalismo, e, como contraponto, ao rein- vestimento, por parte deste, de seus lucros, com o objetivo de aumento da capacidade produtiva e de financiamento do bem-estar, ou à lógica do capitalismo de Estado nas versões do socia- lismo e das sociais democracias, entre outros.6

5 MEDAUAR, op. cit., p. 103.

6 MELLO, Carlos Ranulfo F. de. Social-demo- cracia : compromisso e crise. Palestra proferida na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, em 9/9/96.

Dessa concepção política de Estado social decorre a relativização da dicotomia do direito; a divisão público – privado passa a ter cunho meramente didático: todo direito é público, oriundo de um Estado superior. Esse Estado confunde-se com o público, e a ele cabe prover todas as necessidades.7

Sustenta-se, assim, um Estado demiurgo, monocrático, que exclui outras esferas de poder e se coloca completamente afastado da socie- dade, embora concebido para dar uma resposta ao social.

5. Crise do Estado social. Paradigmas do Estado democrático de direito

O Estado de bem-estar, assentado no inter- vencionismo na área econômica e social, antes mesmo de produzir os resultados esperados, entra em crise, para o que contribuíram fatores endógenos – contradições internas do próprio modelo – e fatores exógenos, ou seja, fora do controle do Estado.

Na verdade, já com o final da Segunda Guerra Mundial, teve início a crise do Welfare State, a qual se acentuou nos primeiros anos da década de 70, em múltiplas vertentes: a crise econômica, que se agrava em nossos dias pelas tendências de globalização, reorganização espacial da atividade econômica, mudança de eixos decisórios, desregulamentação de mercados, desterritorialização de economias por força dos oligopólios mundiais e revolução tecnológica, conforme lembra Carlos Ranulfo F. de Mello8; a crise da racionalidade objetiva da tecnocracia, do aparelho estatal, o que mais se agravou no cenário das sociedades pós- industriais hipercomplexas, com relações densificadas, com grandes massas reivindi- cantes assumindo espaço no cenário político, em cujo contexto registra-se a emergência de interesses difusos, de terceira geração, parale- lamente aos direitos sociais, exigindo novas formas de atuação do setor público e redefinição de papéis estatais; a crise política, com a quebra da credibilidade dos mandatários e a reação à representação; a crise da distinção das esferas pública e privada, que se evidencia na medida em que a sociedade civil, representando o interesse público, enfrenta o Estado privatizado

7 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Coimbra : Armênio Amado, 1976.

8 MELLO, op. cit.

ou omisso, exigindo o espaço de participação; e, por fim, a crise de ideologias, com as perple- xidades decorrentes do fracasso de modelos sócio-econômicos dominantes capitaneado pela queda do regime soviético, que desafia os estu- diosos a buscarem caminhos alternativos9.

É certo que, no contexto dessa crise, os direitos individuais e sociais ganham novo significado, colocando-se numa dimensão pluralista e democrática, especialmente a partir das mobilizações do processo constituinte, que já refletem a mudança de paradigmas. Estru- tura-se, entao, com a Constituição de 1988, novo núcleo filosófico-institucional de susten- tação política, o Estado democrático de direito, que contempla sucessivas e concêntricas órbitas de interesse, correspondentes às esferas do indivíduo, das coletividades definidas, da sociedade como um todo e dos grupos indeter- minados, e cujas forças vetoriais hão de ser impulsionadas e alimentadas em processo democrático e de absoluta cumplicidade entre o cidadão, a sociedade e o Estado, na efetivação do pluralismo ideal.

Por isso mesmo, a Constituição, como matriz principal dessa concepção, coloca-se como instrumento do Estado e da sociedade, e, assim, não diz respeito tão-só ao Estado ou ao sistema político, mas também à própria sociedade, como uma reação à marginalização da própria sociedade.

José Alfredo de Oliveira Baracho10 colhe de Jean-François Revel a afirmação de que sendo exageradamente pretensioso, o Estado margi- naliza a sociedade e desestimula as iniciativas.

Opondo-se a esse exagero, adverte para a necessidade de uma nova visão do papel do Estado:

“A tarefa principal do Estado consiste em estabelecer, como garantia formal, o cumprimento do bem comum e da solidariedade. O Estado só deve agir por ele próprio, quando existe necessidade real, que não foi atendida por qualquer coletividade ou grupo de cidadãos. O Estado não é o substituto eventual dos atores omissos, pelo que deve velar pela garantia do bem

9 CARVALHO NETTO, op. cit.

10 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O prin- cípio da subsidiariedade : conceito e evolução. Belo Horizonte : Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG,1995. p. 15.

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comum, sem substituir as ações possí- veis dos cidadãos, capazes de corres- ponder ao interesse geral.”11

Contudo, ainda pouco fiel à matriz consti- tucional, o Estado brasileiro, longe de assinalar, sem reservas, novos traços, só acanhadamente vem incorporando aquela filosofia, conti- nuando, em vários setores do aparelhamento, na letargia do repouso sobre os trapos de antigos vícios e disfunções, desconhecendo, também, inconfundíveis paradigmas informais que apelam por reflexos no aparelhamento estatal e nas relações. Na realidade, manteve-se no patamar da impotência para concretizar o Estado social e, desacreditado em razão de múltiplas circunstâncias e fatores, viu-se redu- zido a mera alegoria – ostentação e inocuidade, desperdício e ineficiência –, um monstrengo de difícil combate em processo promíscuo de autofagia. Esse desconforto, é certo, motivou alguma reação do setor público, orientada, talvez, para a própria sobrevivência, explicando os discursos centrados em temas e jargões da modernidade, as campanhas institucionais para recuperação de imagem, a aplicação de métodos gerenciais para racionalização de custos, “otimização de resultados” e “satisfação de clientes”, a abertura de canais de comunicação com a sociedade e medidas mais consistentes, visando a integrar o cidadão nos processos de planejamento e decisão, e objetivando a reciclagem de pessoal e a apropriação de tecnologia, pelo menos, pelos ditos núcleos de excelência.

Os avanços, no entanto, operam-se parci- moniosamente, principalmente em face das resistências veladas ou assumidas à nova ordem constitucional por parte do próprio Congresso Nacional, manifestadas por inconcebível omissão na elaboração da legislação comple- mentar ou por tardia produção legislativa; dos poderes encarregados da aplicação do direito, sobretudo pela revelada postura psicológica negativa diante dos novos paradigmas que deveriam constituir a base do processo de novação do ordenamento como um todo; e da própria sociedade, que não se estruturou para assumir sua posição de coadjuvante na tarefa de construção de nova cidadania, como deten- tora de poderes sobre o campo público não- estatal, e, como fonte originária de legitimação do poder estatal, não se assenhoreou de todos os instrumentos de controle sobre esse poder.

11 Ibid. p. 100.

Assim, antes que se superassem as dificul- dades para implementação de um novo orde- namento constitucional e incorporação de seus paradigmas, como decorrência da fragilidade interna às influências externas, e a pretexto de enfrentamento das múltiplas crises de índole estrutural e conjuntural,

“forja-se, no Brasil, a reação cultural e ideológica ao intervencionismo estatal: o chamado neoliberalismo.”12

Segundo essa tendência, o Estado transfere as responsabilidades para a sociedade, reser- vando-se papel bastante restrito. Abandona-se o substrato do Estado social como se ele tivesse sido, entre nós, realizado e, mais de que isso, como se a sua concepção ideológica pudesse ser considerada inteiramente incompatível com a filosofia do Estado democrático de direito, que, em verdade, não exclui, mas, ao contrário, pressupõe a efetividade daquele, sujeito, porém, a novo arranjo de forças e a novos padrões de legitimação em vertente pluralista e democrá- tica, substituindo o mero “cliente” por um ator qualificado – o cidadão – e invocando a ação conjunta da sociedade.

6. Concepções de Estado e modelos de administração

Sem configuração consistente na correspon- dência com os paradigmas pré-modernos, o aparelhamento administrativo só ganha relevância no Estado moderno, assimilando variações decorrentes de inspiração político- filosófica das sucessivas concepções políticas de Estado.

Na Antigüidade Clássica e na Idade Média, a atividade pública apenas tangenciava campos nitidamente abarcados por indistintos círculos de poder que gravitavam em torno de refe- rências mitológicas ou de uma sociedade de castas e se apoiava na lógica da moral religiosa e, depois, na do feudalismo, que, só aos poucos, fragiliza-se pelo impulso do período comunal, propiciando o início do desenvolvimento de atividades administrativas tipicamente de caráter público de âmbito municipal. Destaque especial, contudo, deve ser dado à atividade pública de caráter militar, que espelha a hierarquia dos privilégios sociais de uma sociedade de castas.

12 PEREZ, Marcos Augusto. Privatização e reforma do estado. Revista de Direito administrativo aplicado, Curitiba, n. 5, p. 356, jun. 1995.

Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. 1997

Em fase posterior, a administração pública passou a ocupar espaço mais amplo e impor- tante. Todavia, como o público confundia-se com a vontade do absoluto, aquela, ao seu turno, incorporava os traços de patrimonialismo.

No Brasil, nas monarquias do passado, nas capitanias hereditárias e até o início do século XX, estruturava-se, também, uma adminis- tração patrimonialista. Nesta, o Estado era percebido como propriedade do rei, e na qual, portanto, o nepotismo e o empreguismo, senão a corrupção, eram a norma.13

Como visto, desde o final do século Xvlll até meados do século XX, tem lugar o Estado de direito, erigido, como reação ao absolutismo, sobre os pilares da racionalidade legal, em cujo abrigo se colocavam as idéias liberais, que restringiam o público às esferas essenciais. O espírito público, por sua vez, absorvia a idéia do vínculo do funcionário à entidade abstrata do Estado. Nesse sentido, a lição de Marcelo Caetano:14

“O funcionário que nos tempos da monarquia absoluta fora servidor da Coroa, um servidor do Rei, a quem, mesmo quando modesto beleguim, repre- sentava, passou, com as idéias modernas do século XIX, a servir essa entidade abstrata, mas ainda mais poderosa que os monarcas, que se chama o Estado. Obtido o ingresso no cargo público, o funcionário revestia-se, pois, da digni- dade de quem mais proximamente traduzia o Poder Público junto do povo, olhava com superioridade e nem sempre com complacência os cidadãos que tinham de contatar com ele, constituindo uma casta que os administrados deveriam respeitar com humildade e sofrer com paciência”.

Sob orientação liberal, destinava-se o Estado, já entao sujeito ao direito, a garantir a propriedade e os contratos, a ordem interna e a segurança do País contra inimigos externos.

Celso Bastos15, analisando o Estado liberal

13 PEREIRA, Luiz Bresser. A reforma do aparelho do Estado e a Constituição brasileira. Brasília : Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado, 1995. p. 4.

14 CAETANO, Marcelo. A Reforma Adminis- trativa. RDP, n. 57–58, p. 19.

15 BASTOS, Celso. Concessão de serviços públicos. Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, n. 15, p. 25.

que vigorou no final do século XVIII e no XIX, aponta o seu traço básico:

“O liberalismo tinha por nota carac- terizadora o dispensar, tanto quanto possível, a presença do Estado. Note-se que a diretriz fundamental que importava cumprir era a da exclusão do Estado do campo econômico, vale dizer, interdi- tava-se-lhe por completo a ingerência nessa área”.

Afirma José Alfredo de Oliveira Baracho16 a propósito da filosofia do liberalismo:

“A corrente liberal surge com a idéia de suplência, objetivando a visão nega- tiva da não-ingerência. O individualismo filosófico, político, econômico e jurídico vê a sociedade como um conjunto de singularidades separadas umas das outras, onde cada qual procura sua felicidade por caminhos próprios”.

A idéia básica é a de não-ingerência e do afastamento do Estado, que se restringe ao estabelecimento de limites negativos mínimos.

Nessa concepção, segundo Panebianco,17 ao

“Estado mínimo correspondia Administração mínima, a burocracia-guardiã.”

Contudo, a administração ainda se organi- zava segundo critérios e conveniências políticas dos governantes e dos grupos, assimilando o caráter patrimonialista.

Marcelo Caetano18, em linguagem carica- tural, registra seu testemunho acerca da admi- nistração pública tal como ele a conheceu em plena guerra de 1914–1918, e que bem se adaptaria, com raras exclusões, à realidade administrativa atual:

“Um sistema de repartições, onde funcionários pachorrentos escreviam – muitos chamavam-se escriturários – numa caligrafia apurada, papéis em que informações, minutas, números, acumu- lavam-se para resolução superior e depois eram arquivados em livros bem encader- nados e alinhados. O funcionalismo constituía uma carreira prestigiosa na qual se ingressava geralmente por influências políticas, garantindo estabi- lidade, paga certa no fim do mês, pouca exigência no trabalho e – regalia sobre todas apreciada nesses tempos em que

16 BARACHO, op. cit., p. 87.

17 PANEBIANCO apud MEDAUAR, p. 123. 18 CAETANO, op. cit., p. 18–19.

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era desconhecida a previdência social – a perspectiva de uma aposentadoria ou reforma ao cabo de uns tantos anos de serviço.

“É certo que em alguns países a prática dos partidos ou as mudanças violentas de Governos punham sombras nesta tranqüilidade. Um grande número de lugares públicos, nos Estados Unidos e noutros países americanos, constituía o espólio de que o partido vencedor nas eleições gerais se apossava, implicando a demissão de milhares de funcionários da confiança do partido deposto para serem substituídos pelos cabos eleitorais e outros asseclas do clã triunfante. E nalguns países europeus as alterações de regime político envolviam igualmente renovação de pessoal. Mas a maior parte dos burocratas permanecia, indispen- sáveis como eram à continuidade admi- nistrativa e cobertos pela idéia de que acima de tudo serviam o Estado e não um regime ou um partido”.

Entre nós, em 1935, é que se estruturou a administração burocrática clássica, aquela regida, na sua formação, no seu funcionamento e no seu desenvolvimento, pelas regras e procedimentos formais.

Segundo Luiz Bresser Pereira19, o modelo burocrático é um tipo de administração racional-legal baseada em administradores profissionais, em carreiras bem definidas, na centralização das decisões, na hierarquia traduzida no princípio da unidade de comando, na forma piramidal das organizações, em normas e rotinas rígidas, no controle a priori dos processos administrativos – processos de contratação de pessoal, de atendimento de demandas, de concorrência nas compras reali- zadas pelo Estado.

Noticia Luiz Bresser Pereira20 que a admi- nistração burocrática clássica tem raízes no sistema militar prussiano, tendo sido implan- tada nos principais países europeus no final do século XIX; nos Estados Unidos, no começo deste século; e, no Brasil, em 1935, para contrapor-se à burocracia patrimonialista, caracterizada pelo empreguismo, pelo nepo- tismo e pela corrupção.

Entretanto, entre nós, mesmo depois da implantação da administração burocrática, manteve-se o seu comando com os donos do

19 PEREIRA, op. cit., p. 4. 20 Ibid.

Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. 1997

poder, sem que a Nação se apropriasse da soberania nacional.21

Além do resquício patrimonialista, aí sob novas roupagens, o autoritarismo, a burocrati- zação, a ineficiência oxidaram as engrenagens principais da máquina pública, fazendo-a burocracia por burocracia, muitas vezes desviada de seu papel finalístico.

Com efeito, essa burocracia, com traços de centralização e uniformidade e monocracia, apresentava-se sob os cânones da impessoali- dade e da hierarquia, o que, por um lado, sustentava a própria desresponsabilização dos agentes e, por outro, projetava a falta de eficácia da atuação do Estado, incapaz de acompanhar os avanços da sociedade.

Já o Estado social deveria estar amplamente instrumentalizado por uma burocracia apta a suprir as demandas sociais. Teria lugar, entao, uma máquina administrativa a que, recordando Wolff, Odete Medauar22 rotula de prestacional: à “burocracia-guardiã segue-se a burocracia prestacional”.

Contudo, essa administração prestacional não perdeu o caráter burocrático, revelando-se despreparada para responder às crescentes e complexas demandas. Sem alterações intrín- secas e fadado a uma progressiva expansão compreensivista e desordenada, o aparelho estatal vai-se fragmentando e desagregando mediante processos de descentralização de serviços, voltado para variadas atividades e fins. A pressão das demandas, o corporativismo dos setores, a multiplicação e o alargamento das vias de atuação do Estado, a especialização de sua ação, a ilusão de ótica quanto às referências do estratégico para o setor governamental refletem-se, cada vez mais, negativamente, no perfil da máquina estatal. Agiganta-se a orga- nização, cresce o endividamento público, evidencia-se perda nos padrões de qualidade dos serviços prestados pela administração em áreas essenciais, anuncia-se o caos da burocra- cia e, por fim, o alarmante quadro das estatais, confirmando a importância da adoção de mecanismos de controle, como entende Pedro Paulo de Almeida Dutra23, em sua alentada

21 WALD, Arnoldo. A sociedade e o Estado : O sentido da Reforma Constitucional e legislativa. Cadernos de Direito Constitucional e ciência política, n. 15, p. 68.

22 MEDAUAR, op. cit., p. 127.

23 DUTRA, Pedro Paulo de Almeida. Controle de empresas estatais. São Paulo : Saraiva, 1991. tese, defendida em universidade francesa e publicada entre nós: Controle de Empresas Estatais.

Nesse estágio da administração pública, o modelo nominalmente prestacional deixa a nu disfunções profundas, resquícios do radicalismo do modelo burocrático racional- legal, marcas inconfundíveis de corporati- vismos e resultados negativos de práticas arcaicas na missão de serviços, regulação e controle. Nesse cenário de ampla crise, de frustração e perplexidade em face do Estado social irrealizado e de vigorosa e persistente pugna pela construção de cidadania material, a nova concepção política apresenta-se em descompasso com a realidade administrativa: enorme é a distância entre o Estado ideal e a sua instrumentalização para o cumprimento de seu papel. É dizer: um aparelho estatal arcaico para demandas de terceira geração decorrentes de esferas progressivamente universalizadas de interesses e direitos. Em face desse estado de coisas, o Professor Paulo Neves de Carvalho, em palestra proferida no Seminário de Direito Administrativo, reali- zado pela Faculdade de Direito da UFMG, em outubro de 1991, lançava o desafio do Direito Administrativo Organizatório no sentido de buscar a conformação do aparelho estatal ao perfil da sociedade moderna, mediante apropriação de tecnologia e mudança de paradigmas, mostrando a perplexidade da administração diante da complexidade dos problemas que sugerem mesmo a sua impotência (como o crime organizado, especialmente o narcotráfico) e, ainda, do apelo de democratização das práticas administrativas.

A nova filosofia de Estado democrático de direito não pode ser descartada. Ela deve, necessariamente, trazer conseqüências nos planos orgânico e material da administração pública, o que sinaliza no sentido de mudanças nessa seara.

Assim, a organização do aparelho estatal e a atividade administrativa haverão de se afastar dos paradigmas do Estado liberal, que ainda hoje sustentam, na prática, um Estado privati- zado pela ditadura dos interesses econômicos em alguns setores; e do Estado intervencionista monocrático, que distancia as diversas esferas de poder, devendo buscar sua matriz e delimi- tação nos paradigmas do Estado democrático de direito.

7. Descompasso entre concepção política, aparelhamento estatal e transformações sociais. O esforço reformista

O desafinamento entre concepção política e aparelhamento estatal é uma constante na realidade brasileira.Se se fizer uma profunda reflexão sobre o processo evolutivo da admi- nistração pública no Brasil, observar-se-á sempre um descompasso entre a linha de transformação da sociedade, dos respectivos paradigmas e a capacidade de adaptação da máquina pública às novas necessidades. Percebe-se que a administração brasileira, a despeito da tantas reformas e tentativas de modernização e, ainda, da incorporação de algumas tecnologias, não consegue ostentar traços muito distintos daqueles com os quais se apresentava no primeiro quartel deste século, com evidente ressalva para a atual situação de desprestígio e para o caráter prestacional a partir do Estado social – pelo menos em plano nominal – em substituição ao padrão de buro- cracia-guardiã, com conseqüência no plano organizatório, e que resvalou para um processo autofágico de agente-benefício, isto é, prestação voltada para os interesses dos próprios integrantes do aparelho estatal e hipertrofia dos sistemas – meio em prejuízo da estrutura finalística.

Não se pretende a negação das transforma- ções, mas, tão-só, o seu questionamento quanto à profundidade, quanto à eficácia e quanto ao seu acatamento como novas referências para a cultura administrativa. Nesse sentido, regis- tram-se, entre outras, mudanças mais sensíveis na administração pública a partir da Primeira Guerra: o ingresso das mulheres para preen- chimento de vagas deixadas pelos homens mobilizados para os campos de batalha; a introdução da máquina de escrever, cuja reper- cussão, guardadas as proporções, pode ser comparada à da utilização, nos dias atuais, da informática; o alargamento da ação do Estado, com a instituição de novos serviços públicos para atender à necessidade de racionalização dos abastecimentos; e, a partir da grande crise econômica de 1929, quando a doutrina do liberalismo econômico cedia às pressões, abrindo espaço ao intervencionismo que se anunciava nos EUA com o New Deal de Roosevelt para sustentar as empresas e relançar a economia, verificou-se um paralelo esforço de adaptação da máquina burocrática por meio

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da adoção de fórmulas novas, que interferiram na tradição administrativa.24

A essas alterações agregam-se outras resul- tantes de processos específicos compreendidos no chamado ciclo reformista brasileiro. Este pode ser dividido em três nítidos períodos, cada qual marcado por iniciativas e estratégias dife- rentes: o primeiro, identificado com o sistema do Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP; o segundo, capitaneado pelo Decreto-Lei no 200/67; e o atual, iniciado a partir da Constituição de 1988. Ligam esses períodos intercorrências de medidas menos abrangentes e de repercussão mais restrita.

O período do DASP teve início em 1935, caracterizando-se pelo esforço de implantação da administração burocrática em contraposição à patrimonialista, tendo à frente Maurício Nabuco e Luís Simões Lopes. Esse período consolidou-se com a instituição do DASP, em 1938, como fruto da assimilação de idéias inovadoras defendidas principalmente pelo sistema americano, sob a bandeira da Reforma Administrativa, empunhada por Roosevelt, em 1937. Suas idéias, refletindo-se por toda parte, foram acolhidas no Brasil, na Carta de 1937, e aqui ganharam corpo com a criação do DASP pelo Decreto-Lei no 579, de 30–7–38, que empreendeu no Brasil pioneira revisão administrativa.25

Do Relatório da Comissão Especial Desti- nada a Proferir Parecer sobre a PEC no 173- A, de 1995, na Câmara dos Deputados, tendo como relator o Deputado Moreira Franco, colhe-se o seguinte comentário acerca das medidas compreendidas no primeiro período do ciclo:

“Com Getúlio Vargas, o Brasil conheceu a sua primeira reforma admi- nistrativa. Na época, a reforma foi moralizadora, orientada por teorias reco- lhidas de sistemas mais avançados de administração, como aqueles gerados pelo movimento norte-americano para criação da Comissão do Serviço Civil.

“Além de rever as estruturas e de racionalizar os métodos, o Governo Vargas buscou simplificar e padronizar a administração de material no serviço público, introduziu a concepção de orçamento como plano de administração e, sobretudo, buscou mudar a adminis- tração de pessoal, fortalecendo o mérito

24 CAETANO, op. cit., p. 19–20. 25 Ibid.

como pedra angular do serviço público. Nasceu, assim, o DASP, com o objetivo de robustecer os padrões éticos do serviço público, mediante a instituição de critérios objetivos de recrutamento, seleção e promoção de pessoal. Tudo isso, para encerrar o ciclo do que o Professor Nelson Mello e Souza chamou de mentalidade do sistema de distribuição de cargos públicos.”26

A partir da Segunda Guerra, para fazer face a uma sociedade concentrada, massificada, premente e dinâmica, esperava-se que a admi- nistração se voltasse para a gestão de serviços, com vistas ao cumprimento das funções deman- dadas pela coletividade; frustraram-se, no entanto, as expectativas de respostas do setor público.27

Em 1952, houve novo esforço de mudança por parte do Governo Vargas com o objetivo de institucionalizar a atividade de planejamento na administração pública, sem que o intento lograsse êxito.

No Governo Juscelino Kubitschek, nenhu- ma reforma ocorreu, registrando-se apenas a criação da Comissão de Simplificação Buro- crática junto ao DASP.

Com o Presidente João Goulart, a temática da reforma retorna à pauta com a criação de um ministério extraordinário voltado para esse objetivo, apontando-se como principal produto desse órgão o Anteprojeto de Lei Orgânica do Sistema Administrativo Federal, documento que subsidiou, logo depois, o projeto de reforma administrativa do Governo Castello Branco e que se consubstanciou no Decreto-Lei no 200/ 67, o qual marcou novo período no ciclo refor- mista da administração brasileira.

A Reforma de 1967, assentada nos princí- pios do planejamento, do controle, da coorde- nação e da descentralização, a despeito de propugnar pela supressão dos formalismos e pela racionalidade e eficiência da admi- nistração, acabou por gerar uma série de disfunções, principalmente no tocante à admi- nistração indireta, ao projetar a proliferação de empresas, autarquias e fundações.

Para combater essas disfunções, especial- mente o excesso de controles formais, criou- se, no final da década seguinte, o Ministério

26 Relatório da Comissão Especial Destinada a Proferir Parecer sobre a PEC no 173 – A, de 1995, na Câmara dos Deputados, p. 1–2.

27 CAETANO, op. cit., p. 22.

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Extraordinário da Desburocratização, que teve como titular o Ministro Hélio Beltrão. Contudo, o discurso da desburocratização foi mais eloqüente que eficaz, mostrando-se incapaz de reverter o quadro de anomalias.

Sob a égide da Constituição de 1988, as primeiras tentativas de reforma administrativa macularam-se pela improvisação e ausência de sistema. Nesse sentido, registra-se como providência isolada do Governo Sarney a extinção do DASP, com a criação da Escola Nacional de Administração Pública – ENAP. Por outro lado, as medidas adotadas pelo Governo Collor incidiram sobre a estrutura administrativa federal, não contemplando planos mais substantivos, salvo no tocante às privatizações, cujo processo teve efetivo início. Já as assumidas pelo Governo Itamar limita- ram-se a conter o inchaço do aparelhamento mediante simplistas medidas de suspensão dos concursos públicos e a corrigir distorções mais sensíveis na remuneração dos servidores por meio de substancial aumento da folha de pagamentos da União. Não se incluíram, nas medidas propostas, alterações na Constituição, embora se tenha, repetidas vezes, anunciado a ingovernabilidade como decorrência da nova ordem.

O atual período do ciclo, tendo em vista o contexto de crise e as perplexidades em que se insere e os mecanismos pelos quais pretende- se operar a reforma, traz nuanças especiais, principalmente se se toma em conta a ideologia em que aquela encontra arrimo e que sustenta o confronto com a Constituição, na tentativa de redefinição da própria concepção política nela erigida.

Hoje, as sociedades hipercomplexas, a emergência de interesses difusos, as novas tendências de mundialização da economia, da mídia, da cultura e das relações, bem assim a revolução tecnológica indicam a necessidade de uma administração ágil, bem informada, dotada de recursos tecnológicos, integrada por agentes recrutados pelas suas aptidões, previ- dente, capaz de fazer planos exeqüíveis, de responder ao conjunto de mudanças sociais. Uma administração voltada para a salvaguarda dos interesses dos administrados, que, além de subordinar suas discussões à regularidade jurídica de um prudente procedimento, contribua efetivamente para a satisfação de necessidades e a obtenção de padrões de eficiência e qualidade. Uma administração que tenha sempre em vista a perspectiva da cidadania material e os mecanismos de interferência no processo de distribuição de riquezas, de modo a evitar o agravamento das injustiças sociais. Um aparelhamento que reúna condições de regulação e articulação que extrapolem o âmbito interno para acolher o fenômeno da vivência coletiva em sua abran- gência, sob a perspectiva de humanização das relações e de reordenação dos espaços admi- nistrativos próprios ou partilhados. Uma administração para gestão de mudanças, mais de que de situações, e, assim, dinâmica e projetiva. Uma burocracia menos apegada à hierarquização e mais ligada à responsabili- zação, mediante distribuição do poder decisó- rio. Uma máquina pública capaz de racionalizar custos, sem que tenha de traduzir seus benefícios em objetos contabilizáveis e sem perder de vista as vantagens sociais da solução. Enfim, é necessária uma organização adminis- trativa sintonizada com os novos tempos, que incorpore os segmentos técnicos necessários sem se converter em tecnocracia, que assimile os valores de democracia nas suas matrizes relacionais e nos processos decisórios, que traduza uma nova cultura e, assim, tenha claramente delineado o que, como e para que fazer.28

Nesse quadro, apresentam-se à adminis- tração pública sérios desafios: o da identificação segura do papel a cumprir na sua missão polí- tico-administrativa; o de sua viabilização e revitalização, para que se possa desvencilhar de antigas concepções e criar novas matrizes, novos padrões de conduta sintonizados com o cenário atual e capazes de instrumentalizar um Estado democrático de direito; e, mais do que isso, o de se estruturar, para que possa operar a reversão da lógica de apropriação dos resultados da civilização, com o objetivo de, progressiva- mente, assegurar sua universalização. Nesse sentido, sob exata medida, a seguinte adver- tência: O Estado moderno não se pode limitar a gerir racionalmente o absurdo.29

Entretanto, o que se observa é uma grande crise na administração pública, que se arrasta penosamente sob o peso de sua arcaica buro- cracia, paradoxalmente, omissa e intrusa em razão da indefinição de seu papel. Um quadro de desequilíbrio de variadas conotações, como

28 Ibid., p. 23.

29 Cf. Editorial. Revista de Serviço Público, v. 118, n. 3, set./dez.1994.

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já se assinalou neste trabalho, às quais podem ser aditadas outras versões de crise: de legiti- midade, ainda limitada à expressão do voto; de falta de identidade democrática, com preva- lência da opressão da burocracia; de eficiência, em razão das disfuncionalidades, das irracio- nalidades e da não-apropriação de tecnologias; de finalidade, desviada pela viciosa relação agente-benefício; de escassez de recursos, agra- vada pela falta de controle dos gastos e do endividamento. E mais, padece o setor público de desprestígio, de falta de credibilidade. Por fim, a crise é de eficácia e de efetividade da Constituição, que se mantém em nível de princípios, sem se impor como disciplina para desenvolvimento do sistema em sua plenitude.

O certo é que, inseridas numa crise mais ampla que coloca em xeque o próprio Estado, questionado em seu papel substantivo, quanti- tativa e qualitativamente, diante de tantas disfunções, a máquina pública e a atividade administrativa precisam, também, ser repen- sadas no âmbito mais largo da reforma do Estado, ao abrigo de ampla discussão que, respeitando a pluralidade de idéias e alterna- tivas, seja instrumento do relativo consenso em processo crítico amadurecido.

É fato que não há dúvidas quanto a esse estado de crise e de ineficiência do setor público, embora as leituras não se façam segundo uma única ótica. O que não é consenso é a opção por mudança e, menos ainda, por uma alterna- tiva para a reversão desse quadro.

8. O papel do Estado e a relevância da sociedade

Na busca desse consenso, uma questão preliminar se impõe: a da definição do papel do Estado, à qual cientistas políticos como Fábio Wanderley agregam outros pontos complexificadores, entre os quais a indagação sobre como a expansão funcional do Estado se relaciona com a eficiência e a democracia como desideratos.30

Contra a perspectiva do Estado mínimo, afasta aquele cientista a relação direta entre este e o Estado eficiente, sustentando que diversos fatores justificam o empenho de um Estado adequadamente complexo, não só ligados às

30 WANDERLEY, Fábio. Notas sobre a reforma do estado. Revista do Serviço Público, v. 118, n. 3, p. 18, set./dez. 1994.

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necessidades da massa trabalhadora, mas também à demanda da administração do próprio capitalismo.31

Assim, o caminho há de ser o do abandono do maniqueísmo do Estado, que se radicaliza em dualidades inconciliáveis, para delinear, a partir de novos postulados, um espaço estatal que corresponda, no estágio atual de evolução da sociedade, ao quinhão indisponível na partilha da responsabilidade pela gestão do interesse público; e de traçar o perfil de um ente capaz de ocupar institucionalmente essa esfera, de se relacionar com os diversos atores e, sobretudo, de catalizar, com eficiência, a multiplicidade das forças sociais sob a perspec- tiva da superação conjunta das dificuldades e da construção de novos paradigmas societários.

Só após a definição do papel do Estado e a identificação da área específica e inconfundível da atividade administrativa, é possível falar-se em reforma do aparelhamento, em reorientação do enfoque da gestão nos órgãos públicos, do modo tradicional de atuação da administração pública, em remodelação da lógica de abor- dagem dos problemas, dos padrões de relação entre Estado e sociedade e, entao, na alteração da disciplina dos agentes públicos que corpo- rificam o Estado e materializam sua vontade.

Grande é o esforço dos estudiosos no sentido de contribuir para a discussão sobre o papel e o perfil do Estado. Entre as inevitáveis perplexi- dades e as posições que oscilam nos extremos, longe de concepções radicais simplificadoras, assenta-se o entendimento segundo o qual o papel do Estado só pode ser delineado no contexto partilhado da esfera pública (do público estatal e do público comunitário) e da esfera privada, assegurada significativa rele- vância à sociedade como núcleo originário de poder, seja em nível decisório, seja em âmbito de controle.

Nessa linha, Arnoldo Wald32, destacando o desafio da reestruturação do Estado, assinala a importância de se repensar, simultaneamente, a organização da sociedade com vistas à cola- boração, ao controle e à intervenção na vida estatal.

“Mas, se é preciso reinventar o Estado, modificar o seu relacionamento com o cidadão, privatizar a sua gestão, retirar-lhe a arrogância e a onipotência,

31 Ibid, p. 24.

32 WALD, op. cit., p. 69. que não se coadunam com a democracia, submetê-lo à estrita obediência das normas jurídicas, também a sociedade deve criar os seus órgãos de colaboração, controle e intervenção na vida estatal, para reassumir a posição, que sempre deveria ter tido, de titular da verdadeira soberania, que pertence à Nação.”

O desafio consiste, assim, em garantir a complementaridade e o caráter não-excludente das soluções – a mudança do padrão de relação Estado-cidadão e o avanço da sociedade para que possa assumir a condição de detentora da soberania.

José Alfredo de Oliveira Baracho33, reco- nhecendo o papel subsidiário do Estado em relação à sociedade, sustenta, como pressu- postos dessa interação, uma cidadania ativa e um Estado garantidor final do cumprimento do bem comum, resultantes da superação do libe- ralismo anárquico e do providencialismo do Estado. Seu pensamento é sintetizado na fórmula “doutrina da subsidiariedade”, conci- liatória das alternativas extremadas que não conseguiram concretizar o Estado ideal. Nesse sentido, é de grande proveito a leitura de sua obra O Princípio da Subsidiariedade: Conceito e Evolução.

A propósito dos lineamentos filosóficos do referido princípio, comenta o constitucionalista mineiro: “a idéia moderna da subsidiariedade nasce das aspirações aristotélicas, cristãs e germânicas”.34

E completa: (…) “aparece como caracterís- tico da cultura política européia contemporânea e concretiza as atribuições do Estado em geral e das autoridades, na pluralidade das comuni- dades”.35

Interpretando as concepções extremadas de liberalismo e socialismo, destaca a identidade de resultados no tocante à exclusão do setor privado na realização do interesse geral.

“Durante dois séculos, o espírito liberal e o espírito socialista dominantes reúnem-se para decretar o setor privado como incapaz de realizar qualquer função de interesse geral. As justifica- tivas são diferentes, mas as conse- qüências são idênticas. O liberalismo repousa sobre a concepção do homem

33 BARACHO, op. cit. 34 Ibid., p.135.

35 Ibid.

egoísta, internado, exclusivamente à procura de sua própria felicidade. O socialismo recusa a ação privada que visa ao interesse geral, desde que não suporta outra maneira de pensar.”36

E aponta a subsidiariedade como alternativa intermediária:

“A idéia de subsidiariedade causou inquietações, desde que surgia como alternativa entre o liberalismo clássico e o socialismo centralizador. Assenta-se em política social, proposta por Estado descentralizado, com o reconhecimento, de certa forma paradoxal, de dois enten- dimentos. Abandona o igualitarismo social em proveito do valor da dignidade; ao mesmo tempo que foge do individua- lismo filósofico, para compor uma sociedade estruturada” (…).37

Enfim, resume o constitucionalista a doutrina da subsidiariedade partindo da concepção de autoridade: a autoridade é secun- dária, sem valor em si, mas relativo, em função da necessidade que se extrai das atribuições de outra instância; a autoridade é supletiva, já que objetiva suprir deficiência da sociedade, mas é, também, subsidiária, uma vez que pode sustentar medidas positivas, isto é, não só restritas ao suprimento de falhas.38

Odete Medauar39, assimilando a evolução do papel do Estado e atenta aos novos paradigmas formais e informais de sua relação com a sociedade e com o administrado, aponta os desafios do direito administrativo diante das perplexidades que cercam o seu objeto, a administração pública, subjetiva, objetiva e operacionalmente considerada, e que põem em evidência o descompasso entre aquela e o estágio de evolução da sociedade. Segundo a autora, o referido ramo do direito é hoje tangido a acompanhar incontrastáveis tendências, aten- dendo aos apelos de:

a) desvencilhamento de resquícios absolutistas, sobretudo no aspecto da vontade de autoridade impondo-se imponente;

b) absorção de valores e princípios do ordenamento consagrados na Consti- tuição;

36 Ibid., p. 99.

37 Ibid., p. 105.

38 Ibid., p. 106.

39 MEDAUAR, op. cit., p. 227.

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c) assimilação da nova realidade do relacionamento Estado-sociedade;

d) abertura para o cenário sócio- político-econômico em que se situa;

e) abertura para conexões científicas interdisciplinares;

f) disposição de acrescentar novos itens à temática clássica.

Na realidade, novos apelos podem ser agregados àqueles, com realce para os de internacionalização de aspectos da disciplina, de incorporação da informação como fator de racionalidade administrativa e de interferência positiva na gestão da mudança, de forma que se possa prestar à projeção de alternativas, e não simplesmente a cristalizar uma realidade social abominável. Nesse particular, cabe chamar a atenção para a necessidade de o direito administrativo enfrentar a questão da função social da propriedade, de superlativa importância como fator de mudança.

9. A atual reforma administrativa

Segundo versão oficial do Ministro Luiz Bresser Pereira40, os objetivos a serem alcan- çados como resultado da proposta de recons- trução do Estado apresentada pelo governo são assim focalizados:

“Superar definitivamente a crise fiscal e rever as estratégias de inter- venção no plano econômico e social, abandonando as intervenções diretas e adotando formas regulatórias. (…) (1) tornar a administração pública mais flexível e eficiente; (2) reduzir seu custo; 3) garantir ao serviço público, particu- larmente aos serviços sociais do Estado, melhor qualidade; (4) levar o servidor público a ser mais valorizado pela socie- dade ao mesmo tempo que ele valorize mais seu próprio trabalho, executando-o com mais motivação.”

O governo toma como principal fator de viabilização de seu propósito de mudanças a alteração da Constituição para a flexibilização da administração pública e a redefinição das regras básicas da previdência do servidor.

A administração concebida na Constituição de 1988, segundo a leitura dos reformistas mais ferrenhos, retorna ao perfil da burocracia

40 PEREIRA, op. cit., p. 8.

clássica dos anos 30, caracterizando-se pela rigidez, pelo formalismo, pelo seu distancia- mento da cidadania, em razão de sua inefici- ência na prestação de serviços sociais como educação, saúde, cultura, seguridade e pesquisa científica.

É nesse sentido a crítica frontal às bases constitucionais vigentes da administração no Brasil registrada por Bresser Pereira41:

“A Constituição irá sacramentar os princípios de uma administração pública arcaica, burocrática ao extremo. Uma administração pública altamente centra- lizada, hierárquica, rígida, fundamental- mente baseada na idéia do controle por processo e não por resultados e objetivos, quando sabemos que administração pública e também a administração de empresas modernas estão hoje baseadas na descentralização, na administração matricial, nos sistemas da autoridade funcional convivendo com os de linha, na confiança, e no controle dos resultados e não nos processos.”

Assim, antecipando-se ao aprofundamento de discussões fundamentais, vem à tona um conjunto de propostas de alterações da Consti- tuição da República rotulado de Reforma Administrativa, que tem, ao centro, como alvo principal, o servidor. Gravitam em torno dessa figura os temas principais que compõem o discurso acerbo e fácil que propõe o Estado austero e diminuto a partir do quase banimento de seu suposto empecilho – o fantasma do servidor público.

Não se trata de desconhecer o processo adotado pela Câmara dos Deputados sob coor- denação das relatorias das comissões encarre- gadas de emitir parecer sobre a Proposta de Emenda da Reforma Administrativa. Sabe-se que foram usados mecanismos institucionais de audiências públicas, de participação técnica de especialistas da área de administração pública, entre outros. Nem se olvida a peregrinação de equipes capitaneadas pelo Ministro Bresser Pereira pelo interior do Brasil. Nesse sentido, é oportuno o registro da participação de dois renomados peritos internacionais, conforme noticia o relatório da comissão destinada a emitir parecer sobre o mérito da proposição: Serge Vallemont, ex-Presidente do Comitê para a Reorganização e Desconcentração da

41 Ibid., p. 3.

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Administração Pública da França, que analisou o recente processo de reforma daquele país, e Kate Jenkins, Consultora e ex-funcionária pública britânica, que relatou sua experiência à frente da Reforma Administrativa implantada por Margareth Thatcher, na Inglaterra.

Contudo, a discussão que se travou nos círculos internos e externos ao Congresso e em torno da equipe técnica da reforma privilegiou aspectos conjunturais em prejuízo dos estrutu- rais, temas mais candentes e de fácil apreensão pela mídia e pela população, como os relacio- nados com o servidor, relegando a segundo plano questões centrais, como a do destino do país em face das novas tendências mundiais de quebra de fronteiras; a da exigência de adequação do aparelhamento para instrumen- talização de um Estado capaz de manter o equi- líbrio entre a permeabilidade às influências externas e a resistência interna como garantia de uma relativa identidade; a da concepção política que se coloca como força motriz das mudanças, e que não teve a tradução em toda a sua amplitude no momento da opção por um projeto de governo, pelo exercício do voto, nas eleições presidenciais.

Com efeito, não se apresenta com nitidez o núcleo de idéias que projetam a transferência de responsabilidades estatais para outros setores, ou seja, o desmonte do intervencio- nismo estatal, sem substituição por estruturas alternativas, e nem as que respaldam a nova concepção e, em conseqüência, não se delimita com precisão a área para o exercício da função administrativa do Estado, nem se delineia o perfil desejável de organização, e tampouco se constrói uma lógica operacional para seu desempenho.

Focalizando o aparato estatal, a reforma em curso parte da distinção entre o núcleo buro- crático do Estado e o setor de serviços sociais e de infra-estrutura, correspondendo o primeiro às funções de governo, o segundo, às de execução das decisões de governo, e o terceiro, a funções de execução no setor de obras.

Nesse sentido, propalam os reformistas que a estratégia, no tocante ao aparelhamento estatal, é aperfeiçoar a administração burocrá- tica clássica, assimilando-a no que tem de mais positivo: a profissionalização do serviço público, protegendo-o contra o clientelismo e a corrupção; o combate aos excessos de rigidez e formalismo, de controles de processo, de desconfiança e de custos e a distinção entre

núcleos estratégicos de formulação de políticas públicas regulatórias e os de execução dos serviços sociais de infra-estrutura.42

A concepção da reforma administrativa desenvolve-se a partir do aporte de experiência no campo da administração privada e dos pressupostos teóricos da doutrina americana de Osborne e Gaebler, consubstanciada no livro Reinventando o Governo. Com inspiração em nova lógica de abordagem do setor público, mediante a dispensa de normas rígidas da administração burocrática clássica, grassam as técnicas de qualidade total, as estratégias de tratamento dos “clientes”, as tentativas de iden- tificação e adaptação dos “produtos”, as linhas de gerenciamento, as relações de “compartilha- mento”, como ingredientes primários de reno- vação das práticas administrativas.

Como estratégia da reforma, emerge como núcleo de ataque o funcionalismo. Nesse contexto, quase estigmatizado como verdadeiro sócio privilegiado do sistema de benefícios fáceis sustentados pelos recursos arrecadados do contribuinte, o servidor se transforma no ator principal para o qual convergem as câmeras mais suspeitas, quer de setores políticos, quer de estamentos econômicos da área privada, estes, sim, abrigados pelas salva- guardas de um sistema cartorial de atividades ditas produtivas.43

Assim, num cenário político de profundas mutações, estimuladas pela crise ou simples- mente orquestradas por arranjos ideologizados, a hora é de contenda, e o grande risco para a sociedade reside na possibilidade de o governo gastar todo o fôlego guerreiro contra o fantasma, poupando, quiçá, os inimigos verdadeiros; e, nesse sentido, apegam-se os reformistas, mais ardorosamente, a pontos cuja mudança poderá alcançar uma ilusória visibi- lidade no âmbito do universo que assimila o discurso.

Enfatizam-se, entao, temas como aposen- tadoria, remuneração, estabilidade, paridade e regime jurídico de servidor, e, por razões polí- ticas a que se sujeita o governo, relegam-se a plano secundário ou, estrategicamente, subtraem- se à mídia outros de mais substantividade, como autonomia gerencial, contratos de gestão, controle de políticas públicas, consórcios

42 Ibid., p. 8.

43 ESTEVES, Júlio César dos Santos. Palestra. In : SEMINÁRIO DE DIREITO ADMINISTRATIVO E TRIBUTÁRIO, 1996, Belo Horizonte. Anais…

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administrativos, regime jurídico dos agentes políticos, controle de gastos públicos, desafios da administração em face dos avanços da tecnologia, internacionalização das normas de gestão, e a efetivação da função social da propriedade, a identidade democrática, mormente se se tem em conta a consagração formal do Estado democrático de direito e a emergência de novos paradigmas sociais.

Diante desse quadro, verifica-se posição recalcitrante de vários segmentos, e não desprovida de razão. Que os temas formalmente propostos pelo governo devam ser objeto de uma reflexão, não se discute. Contudo, eles não podem monopolizar o debate, pois não há negar o caráter absolutamente secundário dos mesmos, seja em razão do que as medidas nessa seara possam representar no quadro do déficit público, móvel que se encontra na raiz do processo de reforma, seja porque aquelas questões fundamentais da administração pública precisam ser esgotadas.

Assim, as posições se radicalizam na abor- dagem da mudança, colocando-se em pólos opostos defensores ardorosos da reforma do Estado, que, empunhando a bandeira da dimi- nuição do Estado como solução de eficiência para a prestação de serviços públicos, assumem o risco da quebra das estruturas e dos alicerces, e os absolutamente refratários às mudanças, normalmente integrantes de burocracias incrus- tadas na máquina pública ou de corporações privilegiadas. São verdadeiros adeptos da contra-reforma, sustentando absoluta inopor- tunidade das medidas, bem assim a condição da reforma como lema demagógico em busca da legitimação popular.

Essas polarizações acabam por nulificar um espaço de racionalidade no qual se possam reunir elementos para uma reflexão de caráter menos reativo e mais construtivo acerca dos pontos de sustentação da nova concepção do Estado, que, por sua vez, deve nortear os rumos da reforma.

Só nesse estreito campo, a salvo das radi- calizações e do passionalismo, podem ser ponderados, com neutralidade, os diversos fatores que indicam a real necessidade de mudança.

Nesse sentido, por exemplo, as circuns- tâncias atuais de desemprego nos planos interno e internacional projetam mudanças de rumo no tratamento da função pública, conforme noticia

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Antônio Álvares da Silva44, ao comentar as alternativas adotadas por meio de medidas provisórias restritivas de direitos dos servidores. Sustenta a inevitabilidade do processo como decorrência de uma crise internacional de relevância, ao mesmo tempo em que alerta sobre a situação de fragilidade do segmento do funcionalismo na virtual oposição ao seu desmantelamento:

“As recentes medidas do governo contra o servidor público são o resultado concreto de um processo inevitável que já começara na iniciativa privada e se estende agora aos setores de pessoal do próprio Estado.

“Todos os indicadores internacionais mostram que caminhamos para um mundo sem empregos (que os america- nos chamam de dejobbing). Desde 1993, nos Estados Unidos, apenas um entre quatro empregados consegue um novo posto de trabalho. Afirma-se que, na Europa, onde o desemprego assume taxa altíssima (só na União Européia cerca de 19 milhões), as empresas precisam ainda de dispensar 20% – dados colhidos em William Bridge, no livro Um Mundo sem Empregos (p. 6). Esta tendência não deixará de fora o serviço público que, a exemplo dos demais setores, vai enfren- tar um período de dispensas, enxuga- mento e limitação de direitos.”

E prossegue:

“Finalmente, deve o servidor aban-

donar de vez a ilusão do regime estatu- tário, decadente em todo o mundo, e assumir logo o vínculo empregatício com o Estado. Em troca do direito de impor- lhe regras unilaterais de prestação de serviço, a Administração deu-lhe a garantia no cargo. Como esta garantia será extinta ou relativizada, perde qualquer razão o vínculo administrativo.”45

Se esse quadro sugere uma nova aborda- gem do setor público sob o ângulo da função, há razões sobejas que se projetam a partir de um fenômeno também internacional, fruto, sobretudo, da revolução urbana, para se forjar uma identidade democrática de gestão

44 SILVA, Antônio Álvares da. O mundo sem empregos. Estado de Minas, Belo Horizonte, 31 out. 1996.

45 Ibid. administrativa capaz de se inserir no contexto participativo das massas reivindicantes e dos núcleos comunitários de poder.

Com efeito, a democracia há de perpassar a organização e a atividade administrativas. No entanto, sabe-se que o perfil da administração pública e as práticas administrativas, a partir de 1988, pouco assimilaram nessa linha. Apesar do relativo avanço na estruturação de conselhos e outras instâncias de participação da sociedade, não são raras as situações em que vinga o arbítrio, a prepotência, a iniqüidade, o mala- barismo dos atos administrativos normativos. E não se vislumbram formas eficazes de contrastação, erradicação ou bloqueio à expansão dessas práticas, tamanha a timidez com que se busca, na efetivação da Constitui- ção, a instrumentalização dos princípios nela albergados ou a sua adoção como disciplina.46

José Alfredo de Oliveira Baracho47, recor- dando Nestor Pedro Sagües, mostra que nem sempre concidem a Constituição escrita e a normatividade dominante no Direito Consti- tucional, explicando que, ao lado do sistema legal, há a interpretação mutativa das normas realizada pelos juízes, legisladores, órgãos do Poder Executivo e outros centros de poder, que podem até alterar o conteúdo dessas prescri- ções constitucionais, substituindo a mensagem do legislador constituinte por outra diretriz normativa, mesmo que o texto da cláusula constitucional permaneça aparentemente intacto.

Entre nós, a Constituição escrita, avançada, dirigente e projetiva de um Estado democrático de direito não coincide com a normatividade efetivamente dominante no plano da aplicação do direito na função administrativa ou jurisdi- cional, por força da interpretação mutativa, que prefere a perspectiva da leitura tradicional do texto a sua aceitação como parâmetro para novação do direito e da normatividade domi- nante até seu advento.

No plano político, na esfera administrativa e mesmo no âmbito da interpretação judicial, a ordem constitucional é experimentada, passan- do da enunciação de princípios para a disciplina e, como disciplina, prevalece com nova conformação definida nos conflitos, nos

46 FANTONI JÚNIOR, Neyton. A Constituição, o juiz e o bom senso. Gênesis : RDAA, v. 2, n. 5, p. 367–371.

47 BARACHO, op. cit, p. 22.

choques ideológicos, nos antagonismos, nas rupturas e sobretudo nas violações.48

O que se percebe é que o ordenamento jurí- dico, no tocante à administração pública, naturalmente recepcionado pela Carta de 1988 naquilo que com ela não conflitava, não chegou a uma nova conformação, ou seja, não passou pelo verdadeiro “processo de novação”, a que se refere o constitucionalista Jorge Miranda49, e esses aspectos não são discutidos.

A prática administrativa não assimilou, ainda, em grau desejável, os valores democrá- ticos e mantém-se em diversos setores no status quo, atuando segundo antigas regras e equilí- brios, num processo que acaba por consolidar as próprias deficiências da administração, ao invés de permitir a reavaliação de práticas, valores e princípios.

Eis por que deve estar presente o alerta pela identidade democrática da administração, conforme enfatiza Odete Medauar50, recapitu- lando Berti: “um dos grandes problemas da Administração Pública está na busca de identidade democrática.”

Ora, a democracia na administração pública não se garante pela simples legitimação pontual do voto na escolha de representantes, pela instituição formal de instâncias de participação, pelo recrutamento de pessoal mediante concurso público com aplicação das regras de ampla acessibilidade aos cargos. Numa concepção que abarca o pluralismo político e que alberga a participação como forma processual de legiti- mação, a tentativa de modernizar a adminis- tração há de pressupor direcionamento claro no sentido da compatibilização dos modelos de gestão, para que possam incorporar práticas participativas a salvo de manipulações, princi- palmente em nível de controle da atuação estatal na vertente mais moderna do controle social das políticas públicas. E é certo que o desenvolvimento de uma cultura participativa pode levar a administração pública a uma melhor performance; quanto maior o envolvi- mento da cidadania nos negócios públicos, mais consistente pode ser a gestão administrativa democrática, e mais legítimas serão as instâncias regulatórias, decisórias e de execução e de controle das políticas públicas.

48 BONAVIDES apud FANTONI JÚNIOR, p. 368.

49 MIRANDA apud FANTONI JÚNIOR, p. 368. 50 MEDAUAR, op. cit., p. 129.

Revista de Informação Legislativa

É oportuno dizer que algumas administra- ções municipais têm empreendido verdadeiras reformas administrativas, rompendo com práticas seculares e trazendo à cena pública decisões importantes para a vida da cidade, em processo que inaugura espaços de aprendiza- gem que vão, aos poucos, ganhando evidência como campo de eficácia da gestão democrática, em perfeita sintonia com as exigências dos novos tempos. E não se falou em necessidade de alteração de uma só norma constitucional para a viabilização desse mister.51

Registrem-se, a propósito, as experiências de administrações participativas dos Municí- pios de Porto Alegre(RS), de Belo Horizonte (MG), Jacuí(MG), Gouveia(MG), para citar apenas alguns, e não sem dizer que esses esforços nem sempre encontram um campo propício à realização da cidadania material; ao contrário, precisam superar dificuldades para gerar efeitos positivos.

Para que se possam aquilatar as dificuldades que devem ser superadas para a estruturação de uma cultura participativa, colhem-se depoi- mentos de Tarso Genro52, ex-Prefeito de Porto Alegre:

“Nós temos a ilusão de que, nas comunidades humildes, as lideranças têm uma ética exterior à sociedade de classes, como se não reproduzissem todos os vícios. Isso não é verdade. (…)

“As lideranças ainda não pensam a cidade como um todo. Elas têm uma visão geográfico-corporativa, que tende a abordar a cidade de modo completa- mente fragmentário.”

Mostra, todavia, aquele administrador que a consistência do envolvimento da população vai-se alcançar de forma processual, estabele- cendo-se como ganho imediato a lógica parti- cipativa que, consolidada, levará, em momento posterior, a resutados autônomos e concretos.

De qualquer modo, não podem ser olvidadas as peculiaridades das diversas esferas de governo. Com efeito, os municípios, por exemplo, receberam, na Constituição de 1988, um tratamento que poucas alterações está a demandar na ordem constitucional; o mesmo não ocorre em relação à União, que, despojada

51 MIAILLE apud MEDAUAR, p. 98.

52 Poder local, participação popular, construção da cidadania. Belo Horizonte : Fórum Nacional de Participação Popular nas Administrações Muni- cipais. 1995. p. 21 e 23.

Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. 1997

de significativas fontes de arrecadação, perma- nece como avalista das principais políticas públicas, situação que sugere a adoção de novas alternativas.

Contudo, a opção pela mudança não pode ser resposta aos acenos de modismo.

Marcelo Caetano53, referindo-se ao fenô- meno recorrente na política, na filosofia, nas atitudes sociais e nas idéias, descreve-o, usando uma linguagem de alegorias:

“De repente, no Mundo inteiro todos falam no mesmo tema e procuram acertar o passo pelos chefes de fila para não parecerem atrasados, (…).

“Mas o tempo corre e o que era ‘a verdade’ universal da véspera transfor- mou-se no erro execrável do dia. Outras novidades surgem com nova termino- logia a exigir a contemporização dos sábios.”

Por outro lado, os caminhos de eventuais mudanças não tracejam a ruptura com o que de melhor se sedimentou no âmbito do apare- lhamento estatal sem a perspectiva de processos substitutivos responsáveis, coerentes e eficazes; indicam, sim, o descarte das práticas autori- tárias, dos corporativismos de interesses que privatizam o Estado, das disfunções da máquina, e, enfim, das opressões do burocra- tismo estatal resultantes da dualidade radical entre administração e administrado, de que fala Morell Ocana.54

A nova conformação do aparelhamento estatal não resultará, com certeza, de processos artificiais de mudança, conforme lembra Marcelo Caetano55:

“A Reforma Administrativa não consiste numa operação instantânea de remodelação de estruturas e procedi- mentos, e sim num processo de contínuo ajustamento de organização e de métodos da Administração Pública às condições sociais e às necessidades coletivas de comunidades em constante transfor- mação.”

E continua:

“Não se trata de publicar leis com

reformas burocráticas e sim de manter a

53 CAETANO, op. cit., p. 18.

54 OCANA apud MEDAUAR, p. 215. 55 CAETANO, op. cit., p. 26.

Administração em condições de, numa sociedade em desenvolvimento, cumprir eficazmente as suas missões.”56

Assim, a reforma há de resultar de uma reflexão amadurecida que, contemplando as diversas circunstâncias e componentes do processo de mudança, tenha como norte um fim consensual e razoável. Há de perseguir objetivos claros e projetar alternativas seguras e adequadas não à simples conjuntura, mas à realidade estrutural e ao ideal concebido, sob pena de deixar ao capricho dos “donos do poder” o destino de estruturas importantes.

A prevalecer a vertente da exarcebação, o furor reformista pode dar azo a contradições muito sérias até num mesmo contexto, o que justifica a reação de perplexidade por parte de estudiosos, como a que é oposta pelo publicista Júlio César dos Santos Esteves57 diante da proposta de acatamento da duplicidade do regime jurídico do servidor em substituição à solução de unificação prevista na Constituição de 1988:

“Antes mesmo que se implementasse a unificação determinada pela Lei Fundamental, volta-se a permitir o indesejável quadro anterior. O eterno fazer e desfazer oficial já traz, de por si, indignação, pasmo e insegurança, evo- cando a figura mitológica de Penélope, que tecia e desfazia seu manto, para evitar os pretendentes, enquanto aguar- dava o retorno de seu eleito. A compa- ração figurada mostra-se, de fato, adequada, a não ser pela diferença de que Penélope sabia o que queria.”

10. Conclusões

1 – As concepções de Estado se estruturam a partir de paradigmas formais e informais, devendo esses núcleos ideológicos, integrados por princípios, valores e filosofias, guardar relação com os modelos organizatórios da administração e com os campos da atividade administrativa, tendo em vista o caráter instrumental do aparelhamento.

2 – Na história da evolução administrativa brasileira, verifica-se descompasso entre a concepção de Estado, os modelos de organi- zação e de gestão administrativa e o estágio de

56 Ibid.

57 ESTEVES, op. cit.

evolução da sociedade; o esforço reformista não consegue estabelecer a sintonia desejável entre eles.

3 – Ao Estado democrático de direito, apesar de delineado formalmente na Constituição de 1988 e concebido a partir de paradigmas erigidos pela consciência coletiva, não corres- ponde uma identidade administrativa democrá- tica, ressalvando-se o esforço de institucio- nalização de instâncias participativas e algumas experiências mais consistentes de gestão com progressivo envolvimento da cidadania.

4 – A par dessa ausência de identidade, verifica-se, inserida num contexto de desequi- líbrio do Estado como um todo, uma crise mul- tifacetada da administração, resultante da convergência de vários fatores de pressão, internos ou externos: a ilegitimidade, a inefi- ciência, a irracionalidade, a escassez de recursos, o desprestígio, a falta de credibilidade, o corporativismo, a falta de eficácia e de efeti- vidade da Constituição, a indefinição das esferas pública e privada, a não-apropriação de tecnologia, a insatisfatória absorção dos reflexos da telemática, a persistência de um quadro de desigualdades inaceitáveis, a inca- pacidade de resposta à crescente demanda da sociedade hipercomplexa, entre outros.

5 – Para se opor à crise, o governo pretende fazer uma reforma de inspiração neoliberal na Constituição da República, propugnando por um Estado austero, diminuto e eficiente, como se se pudesse estabelecer uma relação neces- sária entre eficiência e diminuição funcional daquele, e, por outro lado, descartando o Estado complexificado, como se ele fosse de todo incompatível com as demandas do capitalismo, quando ele pode ser até uma exigência desse.

6 – Se há uma opção do governo, espontânea ou induzida, no âmbito do cenário interna- cional, não há um consenso relativo da sociedade sobre o papel do Estado, questão que deve ser esgotada preliminarmente à reforma. A emergência desse papel só poderá ocorrer a partir da conciliação das esferas públicas (estatal e não-estatal) e privada, com o reconhecimento dos núcleos de poder e respon- sabilidades no âmbito de cada uma, levando- se em conta o fator da globalização que se constituirá em grave ameaça ao Estado nacional, se este não estabelecer salvaguardas contra os efeitos perversos do fenômeno.

7 – Temas secundários não podem continuar

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monopolizando a discussão. Não se pretende a sua mera exclusão da pauta das reformas, mas a incorporação de novas temáticas que permitam aprofundar a análise do fenômeno administrativo em sua intimidade e elabo-

rar alternativas de interferência do poder público na realidade social, sob pena de a busca de eficiência se resolver na racionali- dade da gestão do absurdo de que fala Fábio Wanderley.58

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