Poesias

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Sou a Pedra redonda
Zoiúda
Que vigia sem parar os arredores.


Sou o Pico do Itambé
Encoberto de nuvens
Que se esgarçam ao primeiro sol.


Sou a Serra do Cipó
De sinuosas curvas
Perdidas entre nós
Cegos e
Vendados mistérios


Sou a Lapa da Boa Vista
Que soluça lágrima seca
Em tardes mornas de sol.


Sou o condado virgem
No recato de seus medos.


Sou o Quatro vinténs
Que corre para o Lucas
Em curso lento e choroso.


Sou o Morro Centenário
Que deita a cabeça no colo de Deus
Pedindo um cafuné
Na rara cabeleira.


Sou os veeiros depauperados
De outras riquezas encobertas.


Sou a Fonte do Vigário
Gotejando esquecida
Pelos cantos do Chaveco


Sou o coreto em destroços
Sufocando a sinfonia da vida.


Sou o palco do mundo
À espera da melhor peça.


Sou as ruas de Baixo e de Cima
E os becos sem saída.


Sou a Ladeira do Pelourinho
Batizada pelo grito escravo
Que retumba na senzala do tempo.


Sou o Paredão da Matriz
Na contenção da encosta
Da fé primeira.


Sou a palmeira gigante e altiva
Que ameaça o céu
Sem fazer requebros
Quase inerte sobre raízes profundas.


Sou o casario de linhagem nobre
Contrariando a lei da gravidade.


Sou o cargueirinho alienado
Que desce a rua
Atravessa a festa
O discurso
E estruma no chão
Em pose para a posteridade.


Sou a Capela de São Miguel
Que badala a morte
Ao dar sinal de vida.


Sou o prédio da Cadeia
E o pensamento livre
Que escapole inteiro
Ou em fragmentos
Pelas grades
E vai sem peia.


Sou Igreja Santa Rita
Em esplêndida janela
Espiando da colina
A cidade baixa
Ressuscitar das brumas.


Sou a gente
Que pede licença
Para pisar este chão
Para respirar estes ares
Para poetar sob este céu.


De onde vim
Só pra ser uma flor exótica
Entre rochas e colinas
Da minha terra.

Alto
Chamas
Cenas
De
Luz
Arauto
Do alto
Acenas
Chamas
Rasgando essas trevas
Espalhando o sopro
Por tua criação

Emergente
Emerge
Entre
De mim
Emergente
Menos ente
Mais gente
Emerge

Fulgente
‘’ Full’’...
Da Mortalha de um tempo
Do assombro do vazio
Nova face
Nova mulher
Na aventura do recomeço
Mias gente
Só.

De
Vagar
Cansado
Passo a passo
Lenta
Mente...
Com
Passadas
Toadas
Do Caminhar...

Eu
Ca
Li
Pito
Cheira
Bom
Quase
Bálsamo
De mim.

Sensual
Sem
Idade
Sensualidade
Não
Caduca.

Serro
Com Frio
De alma acalorada
Com Sol
E de sombra remansosa
Serro
Com chuva
E de sombra remansosa
Serro
Com chuva
E de ribeiros secos
Serro
Sem erro
Concerto de Minas
Velho Serro
Sem idade
Que teus serros
Vigiarão por nós
Serro
Com teus morros calvos
Sem tua farta cabeleira
De fala eloqüente
E memória silenciosa
Sem o tumulto do progresso

REFORMA DO ESTADO E ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

Maria Coeli Simões Pires

Professora da Faculdade de Direito da UFMG. Mestre em Direito Administrativo e Doutoranda pela Faculdade de Direito da UFMG.

Sumário

Introdução

1- Cenário

2- Reforma do Estado

3- Reforma do Estado Brasileiro

4- Contrato de gestão como instrumento gerencial 5- Setorialização do Estado e programas específicos 5.1- Publicização por meio de organizações sociais 5.1.1- Objetivos

5.1.2- Opção legislativa no plano federal

5.1.3- Modelo institucional de organizações sociais no plano federal 5.1.3.1- Conceito

5.1.3.2- Natureza jurídica

5.1.3.3- Propriedade

5.1.3.4- Natureza dos serviços prestados

5.1.3.5- Desafios

5.1.3.6- Críticas

5.1.3.7- Medidas

5.1.3.8- Processo de publicização

5.1.3.9- Licitação

5.1.3.10- Gerenciamento e controle

6- Perspectivas das organizações sociais em Minas Gerais

7- Conclusões

INTRODUÇÃO

O Direito Administrativo, estruturado a partir da concepção do Estado como instituição que, desde o século XVIII, se põe como instância hegemônica de organização da racionalidade política e social,1 vem, nos dias atuais, passando por profundo processo de mudança.

O reconhecimento de novas esferas de poder e, sobretudo, o movimento de superação das dicotomias Estado- sociedade e público-privado revelam a absoluta insuficiência das matrizes jurídico-administrativas tradicionais para suportar as tensões contemporâneas.

No Brasil, alguns juristas, como Medauar2 e Moreira Neto,3 e, entre nós, os Professores Pedro Paulo de Almeida Dutra, José Alfredo de Oliveira Baracho e Paulo Neves de Carvalho perceberam essas perplexibilidades e, nas lições do cotidiano de seu magistério, vêm advertindo os administrativistas para o anacronismo de seu conhecimento, impactado pelos dilemas autoridade-liberdade; verticalidade- horizontabilidade; Estado forte-democracia; poder estatal-cidanania; Estado-sociedade; Estado-consenso social; público estatal-público não estatal; Estado-mercado; processo-resultado; meio-finalidade; controle- flexibilização.

João Batista Moreira, Juiz Federal em Goiânia, em recente defesa de dissertação para obtenção do título de Mestre em Direito Administrativo pela UFMG, tratando do tema Tendências do Direito Administrativo e vislumbrando mudanças radicais, revelava profunda inquietação em face daqueles mesmos dilemas, que convulsionam lineares equilíbrios e consensos.

E, de fato, já podemos perceber um fosso abissal entre as antigas teorias acolhidas nos manuais e na jurisprudência e a demanda de respostas no campo da realidade.

Particularmente, devo revelar meu desapontamento e minha angústia diante da persistência da lógica do direito administrativo autoritário, quando, de pincel na mão diante da lousa, devo demonstrar a relação que se estabelece entre o Estado e o administrado por força do ato administrativo típico, e nada me ocorre para substituir, com sucesso, a metáfora por todos aprendida – o moço forte de chapéu empinado, dedo em riste tracejando seta verticalizada na direção do menino frágil, que timidamente tudo acata sem poder maior de oposição.

O certo é que estamos diante de um Direito Administrativo que procura novos caminhos no plano da normatividade, da doutrina, da jurisprudência e do cotidiano das relações da Administração, acenando com novas figuras, fórmulas, concepções e conceitos. O processo de mutação, contudo, é apenas estreante e deve merecer aprofundada atenção da comunidade jurídica.

Modesto,4 um dos principais assessores da Reforma Administrativa, faz um alerta bastante enfático no sentido de que devamos ter atitude aberta, de ânimo desarmado diante da mudança, lembrando a responsabilidade do jurista em relação às novas figuras, tendo em vista que, “operando com o objeto lingüístico, socialmente condicionado, irá apresentá-lo ao domínio público, mediante decisão interpretativa como resultado do ‘eu próprio labor”.

Se assim é, o que comunico sobre o instituto das organizações sociais é o resultado de uma decisão interpretativa, e o que ora faço é um jogo de l’nguagem para veicular essa decisão.

Por outro lado, secundando Pontes de Miranda, afirma Modesto5 “não ser possível interpretar com antipatia” e acrescenta que a simples simpatia não basta.

Estou atenta a essas advertências e certa, também, de que a’compreensão responsável dos arranjos jurí’icos há de pressupor a de toda a trama que os envolve.

Proponho-me, assim, um esforço preliminar no campo das formulações político-filosóficas, para a leitura posterior das prescrições normativas acerca do tema, o que de algum modo poderá contribuir para a interpretação que cada qual deva desenvolver.

1 – CENÁRIO

O tema Organizações Sociais, conquanto supostamente confinado a um campo estreito de cogitações, não dispensa tratamento mais abrangente, para que se busque o cenário que circunstancia essas novas institucionalidades, se recapitulem as temáticas de fundo a que se ligam, e para que bem se apercebam os rumos esquadrinhados pela chamada Reforma Administrativa, quando acolhe o novo instrumento de gestão.

Na tentativa de tracejar essa moldura, e sem propósito de apresentar um arranjo criativo, resgato aqui, em tons pouco ideologizados, a crise multifária e profunda, que, partindo da superação da dicotomia público- privado ou da transição das idéias tradicionais da civilização ocidental assentadas como paradigmas e denunciando nítidas notas de fracasso do Estado no plano da governabilidade, da interrelação com a sociedade, da relação com o mercado, no plano da gestão administrativa e no sistema jurídico, potencializa nova conformação das estruturas políticas, econômicas, sociais, jurídicas e administrativas.6

A visão de macrocenário que a seguir registrarei, em recorte interno, revelará um desenho semelhante da chamada “crise do estado brasileiro” sintetizada nas mesmas vertentes política, econômica, social, administrativa e jurídica e conseqüentes desdobramentos. Em todas elas, um questionamento central acerca do papel do Estado.

Por segmento de estrutura, essas mutações se evidenciam por diversas manifestações.

As estruturas políticas convivem com a crise de tipologias de Estado, ainda mais agravada com a quebra de modelos socioeconômicos dominantes vinculados a matrizes ideológicas consolidadas e, por isso mesmo, com a perspectiva de Reengenharia do Estado, em função de um novo papel, tensionando as discussões em torno do Estado Liberal, do Estado Mínimo, do Estado Socialista, do Estado Social de Direito e do Estado Democrático de Direito; com a desilusão histórica quanto aos projetos idealizados para os modelos de Estado e as críticas a este como grande reprodutor de desigualdades; com a crise de governabilidade marcada pela quebra da credibilidade dos mandatários, com forte reação à representação, acentuando a discussão sobre a legitimidade; com a confusão das esferas pública e privada a revelar que nada é tão público e nada é tão privado a não permitir a intercambiação.7

Essa superação da dicotomia público-privado quebra o monopólio estatal sobre a política, abrindo espaço à sociedade civil, o que, por sua vez, leva a um quadro de hesitações e dificuldades dos governos, em face das matrizes de autoridade e decisão, vulneradas pelas pressões para descentralização e flexibilização de poder.8

A sociedade, por outro lado, revela um franco estado de mutação a partir da própria densificação de seu

conceito como sistema complexo, o que se reflete em outras estruturas. A propósito, registra Oliveira:9

“As teorias contemporâneas (…) estão colocando em xeque as bases filosóficas da tradicional Teoria do Estado (…) na medida em que buscam fundamento em teorias sociais mais sofisticadas que procuram refletir acerca da hiperdiferenciação das sociedades complexas atuais.”

E lembra:

“Para as teorias da sociedade civil e da democracia como as avançadas por Jürgen Habermas, há que se reconstruir, por um lado, tanto um conceito de sociedade civil que não se reduza ao mercado, quanto, por outro lado, um conceito de esfera pública que não se reduza ao Estado, em que processos societários sejam encarados de modo mais amplo.”

Assim, a sociedade sob perspectiva essencialmente dinâmica, revela a arritmia permanente entre o aparato estatal estático e limitador e a realidade a ela imanente, cada vez mais complexificada. Essa sociedade democrática coloca-se, por sua vez, perplexa diante da tendência de crescente organização dos indivíduos para captação da força da burocracia estatal e, ao mesmo tempo, diante do próprio esgotamento da lógica participativa, pela descrença nos resultados. De outra parte, essa sociedade, dividindo o espaço na política, paradoxalmente, corre o duplo risco: ou de abrir flanco à privatização do espaço ou de deixar que se reforce, pelos mecanismos formais de participação, o próprio monopólio do Estado sobre esse campo. Assim, o desafio é, por um lado, o perigo da estatização das esferas de participação, como os conselhos, as associações, com a mera substituição de agentes e, por outro, o da criação de clientelas e formação de feudos e cartéis.10

De qualquer modo, é inegável que a crise da sociedade evidencia a verdadeira mudança de paradigma que a coloca como espaço de produção do público, aflorando em seu seio interesses privados e interesses públicos.

As estruturas econômicas assimilam as tendências de mundialização, sinalizando profundas alterações nas relações internacionais e na ordem interna dos países. São marcadas pela realocação de eixos decisionais, o que se dá em função da reorganização espacial das atividades econômicas, e refletem a indefinição decorrente da desterritorialização de economias como implicação da lógica dos oligopólios mundiais e da revolução tecnológica.11 Nessa seara repercutem, principalmente, as diretrizes de integração de economias, de flexibilização de mercados e de relações de trabalho. Não é sem razão que Carvalho Netto12 afirma ser a economia contemporânea meramente virtual, abandonando o lastro do ouro, do dólar, para assentar-se na ilusão.

O aparelho estatal, ao seu turno, mostra-se defasado em face da velocidade das mudanças, que desatualizam estruturas e métodos.

O anacronismo do aparelhamento em termos de organicidade, gestão e racionalidade técnica distancia progressivamente o Estado do padrão de respostas demandadas no cenário das sociedades pós-industriais hipercomplexas para atendimento de interesses metaindividuais relativos a esferas cada vez mais abrangentes. A crise, assim, revela-se, sobretudo, na forma de administração, comprometida pelas sensíveis disfunções da burocracia.

Crise do Direito. A emergência de novos paradigmas, essencialmente a superação da dicotomia público- privado, revoluciona o direito em seus conceitos, chamando-o a novas funções, em especial de integração social. Desafia-o no sentido da busca de sua lógica processual, definida dinamicamente sobre a linha da adaptabilidade à realidade. A perspectiva da adoção da tipologia democrática de Estado, que busca nova conformação do exercício da autoridade pública, nova relação Estado-cidadão e nova identidade para a Administração, aponta para a necessidade de que a normatividade se ajuste à realidade subjacente por meio de processo legislativo ou interpretativo como resposta à estimulante tensão permanência e mutação.13 Desafia-o, também, no sentido do reconhecimento dos espaços públicos como arenas de consenso, “locus” de discussão do Estado e esferas públicas mais amplas.14

2 – REFORMA DO ESTADO

A esse quadro de incertezas tem-se buscado responder com reformas de Estado, consoante se verifica pela recorrência de experiências transformadoras em várias partes do mundo.

Sustentam esses processos idéias estruturantes, principalmente na esteira da confusão de esferas, fenômeno em cujo bojo se põe como resposta a afirmação de um espaço público pertinente à sociedade e ao Estado, compreendido este como uma especial dimensão daquela. Nessa ampla esfera, a cada segmento é reservado

14/11/12

papel próprio.15

Nesse contexto, tem-se, por um lado, por exemplo, a retomada, ao primeiro plano da filosofia política, da subsidiariedade, princípio assentado na Encíclica Quadragésimo Ano, adotado pela Lei Fundamental de Bonn e pelo Tratado de Maastricht. A perspectiva de compreensão e aplicação desse princípio nas relações Igreja- Sociedade, Estado-Sociedade e naquelas afetas ao Federalismo sugere a alternativa desejável de garantia de autonomia das esferas, sustentando-se posição supletória dessas grandes instituições em relação às menores, o que impõe ordem limitativa à ação das grandes esferas, isto é, à hegemonia destas e rompe com a idéia paralisante de inépcia das formas de sociedade mais simples para a construção de suas soluções.16

Conjugando diversas idéias que gravitam em torno de uma mesma centralidade, o reconhecimento de esfera pública da própria sociedade, Moreira Neto17 defende a necessidade da Reforma da Constituição, que ele considera como uma “camisa-de-força, arremedo tupiniquim de constituição dirigente sustentada pelo utopismo, pela demagogia, corporativismo, estatismo, paternalismo, assistencialismo, fiscalismo e, por isso mesmo, fator de ingovernabilidade” e mostra, “entre as linhas de orientação dessa reversão, espelhando as novas tendências institucionais vislumbradas na perspectiva do Estado, que se destaca a despolitização, aparecendo entrelaçada de várias maneiras com a pluralização dos interesses, a subsidiariedade e a delegação social, para assentar as bases justipolíticas do Estado do novo milênio”.

Por despolitização entende “a eliminação do conteúdo político desnecessário de decisões relativas a interesses públicos que podem ser tomadas com vantagens por entes técnicos ou comunitários”.18

Segundo o destacado administrativista, o princípio expressa-se pelas seguintes noções:

“(…) despolitização combina-se com a pluralização dos interesses, (…) também com a subsidiariedade, pois o núcleo deste princípio consiste em reconhecer a propriedade da atuação dos corpos sociais sobre os corpos políticos no atendimento de interesses gerais, só passando cometimentos a estes depois que a sociedade, em seus diversos níveis de organização, vier a necessitar de sua atuação subsidiária. Este princípio aponta, assim, para a delegação social como forma de devolver à sociedade organizada todas as atividades que, não obstante serem de definitivo interesse público, possam dispensar o tratamento político-burocrático nem exijam ordinariamente o emprego do aparelho coercitivo estatal.”19

Outra alternativa reconstrutiva tem sido a de Reengenharia Constitucional, que tem lugar sobretudo na Europa, especialmente a partir da Itália, acolhendo a Constituição em sua dinâmica, em seus aspectos funcionais, tendo em vista o Estado Comunidade. Isso em substituição à concepção de Constituição como mero conjunto normativo estático e institucional manejado pelos métodos e sistemas técnico-jurídicos. Essa abordagem leva a discussão constitucional para o plano da realidade social, e, portanto, para além dos horizontes teóricos, o que projeta o desenvolvimento das próprias virtualidades e potencialidades da Constituição, sem a necessidadade

de sua constante alteração formal.20 Oliveira,21 analisando a tendência do constitucionalismo moderno, sintetiza:

“O Direito Constitucional vigente, na medida em que, como Direito moderno, é marcado pela tensão entre faticidade e validade, nas suas dimensões interna – positividade X pretensão de legitimidade – e externa – realidade política X autocompreensão normativa do Estado Constitucional – é iluminado pela Teoria Política.”

Por outro lado, mostra que a Teoria da Constituição, como dogmática geral do Direito Constitucional, deve superar a abordagem tradicional que parte do Estado como centro da sociedade, cabendo-lhe:

“assumir os desafios colocados pelas teorias jurídicas contemporâneas, assim como pelas teorias políticas e da sociedade atuais (…), reconstruir a compreensão normativa do Estado de Direito, do Estado Constitucional, como institucionalização jurídica de canais de comunicação público-política acerca de razões éticas, morais, pragmáticas e jurídicas propriamente ditas, que irão conformar e informar o processo legislativo de justificação e o processo jurisdicional de aplicação imparcial do Direito democraticamente fundado, bem como uma Administração Pública descentralizada e participativa, e que garante assim, a abertura para uma esfera pública mais ampla em que atuam os movimentos sociais em geral.”

Barbosa,22 pesquisador do Instituto Lumen/PUC, analisando o debate travado com personalidades internacionais, durante o Seminário “Sociedade e Reforma”, promovido pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado – MARE – para discussão da realidade e perspectivas que orientam os atuais processos de reestruturação do Estado, destaca as posições de Clauss Offe, professor alemão, e Boaventura Santos, sociólogo e professor em Coimbra.

Mostra a convergência de ambos no ponto da superação da dogmática do Estado Mínimo, já que apelam os dois por um Estado forte, em termos políticos e burocráticos, sem que se lhe possa projetar aprioristicamente um tamanho ideal. Segundo eles, a eficiência política do Estado leva em conta seu papel de agente organizador da negociação quanto à distribuição do poder, e a eficiência burocrática traduz-se como racionalidade administrativa para efetivar o que se estabeleceu democraticamente no jogo político.

Sustentam, entretanto, esses cientistas propostas bastante divergentes para a solução da crise:

Offe vislumbra um novo pacto social, cuja negociação se deve dar em processo político dinâmico, articulando, concomitantente, e sem exclusão, as três forças vetoriais: Estado – mercado – comunidade; Santos critica a posição de Offe, por entender inviável a renegociação de que participem agentes em situação desigual de poder. Segundo ele, esse pacto deve ter como pressuposto a igualdade entre as instâncias, o que não ocorre em face da posição de privilégio do mercado. Sustenta, entao, a reinvenção solidária e participativa do Estado. Propõe o Estado como novíssimo movimento social, pelo qual a sociedade civil faz frente à crescente mercantilização das intermediações políticas. E, ainda, referindo-se a um quadro de desigualdade, assinala Santos que essa priorização da articulação Estado-Sociedade civil não se destina a oprimir os agentes do mercado, mas justamente a instituir a igualdade implícita na proposição do movimento reformista.23

3 – REFORMA DO ESTADO BRASILEIRO

Diante dessas considerações, resta indagar sobre a força que propulsiona a Reforma do Estado Brasileiro: a lógica do mercado, a da interrelação daquele com o mercado e a sociedade ou a diretriz da reconstrução solidária e participativa como fruto da mobilização social?

A propósito de identificar os traços desse processo reformista patrocinado pelo Governo Federal do Brasil, Offe24 sugere a sua conformação ao perfil de mudanças intentadas em países da Comunidade Européia (CEE), notadamente na Alemanha, que estão apoiadas nessa relação trilateral Estado-sociedade-comunidade.

Contudo, não basta identificar os componentes dessa relação, consoante a lúcida advertência do pesquisador da PUC-Minas Leonardo de Andrade Barbosa, a partir das reflexões de Offe e Santos:

“É necessária uma maior transparência no sentido de explicitar quais são as articulações privilegiadas no contexto do atual embate político.”25

É certo que se busca, entre nós, uma prevalência do mercado a definir até o modo de gestão da administração. Com efeito, não se pode olvidar a inspiração americana no tocante à reforma administrativa brasileira, pensada ou concebida segundo a metodologia gerencial ou de resultados, que transplanta valores e racionalidades da seara do mercado para o seio do Estado. O discurso oficial do Governo, a todas as letras, ressalta esse traço nas medidas intentadas, de modo que o vocabulário administrativo já assimilou novos verbetes: “cliente”, “qualidade”, “produto”, entre outros, e a cultura administrativa vem incorporando a nova filosofia.

Bresser Pereira,26 em artigo intitulado “Administrativa e Social”, afirma ser a atual reforma administrativa gerencial e social-democrática: Gerencial porque busca inspiração na administração das empresas privadas(…). Social-democrática porque o Estado tem a obrigação moral de garantir os direitos sociais.

Nesse sentido, sustenta:

“(…) os serviços sociais no Brasil continuarão a ser garantidos pelo Estado. A educação de primeiro e segundo graus e a saúde continuarão a ser direitos universais; mas a sua execução deverá ser realizada por organizações públicas não-estatais, entidades sem fins lucrativos, de direito privado, voltadas para o interesse do público.”

Na mesma linha, em sua intervenção na Conferência “Os novos caminhos da América Latina: Estado, mercado e eqüidade”, Bresser Pereira27 defende não ser a reforma neoliberal, pois que não pretende apenas retirar o

Estado do Mercado, e, também, assegurar a governança daquele, que continuará responsável pela proteção dos direitos sociais e será adequado ao capitalismo globalizado do Século XXI.

As tentativas reformistas, entre nós, apresentam-se, assim, por meio de mudança constitucional voltada para a ruptura com a administração burocrática, enquanto no plano infraconstitucional procura-se instrumentalização de princípios e diretrizes de despolitização, atuação subsidiária e participação comunitária, consoante formulações já assentadas pelo constituinte originário e assimiladas ou conformadas em novos paradigmas.

Inegável, pois, a proposta do Estado no sentido, também, de se articular com a sociedade, ainda que para esse campo queira trazer a competitividade e a administração gerencial e não a lógica da solidariedade.

 

4 – CONTRATO DE GESTÃO COMO INSTRUMENTO GERENCIAL

No tocante ao enfoque da ruptura com a Administração burocrática, relevante inovação da Reforma Administrativa é introduzida pelo art. 37, § 8o, da Constituição Federal, que traz para o plano constitucional a figura do contrato de gestão – mecanismo de sustentação da administração por resultados -, que se constituirá na válvula de flexibilização de dispositivos que incidem diretamente no campo de autonomia de órgãos e entidades. Novas institucionalidades administrativas vão ser estruturadas a partir dessa figura, como as agências regulatórias e as organizações sociais, embora o referido dispositivo constitucional não se refira a estas diretamente.

Lima28 registra a seguinte noção acerca da espécie:

“Contrato de gestão é um instrumento gerencial originado da administração por objetivos, também denominada administração por resultados ou administração sistêmica por objetivos e resultados.”

Não se trata de mecanismo novo. Já era encontrado sob denominações diversas (contrato de empresa, contrato de plano, contrato de programa, contrato de objetivos, contrato de qualidade ou contrato de desempenho), no segundo pós-guerra, em diversos países da Europa.

Ramos,29 especialista em políticas públicas e gestão governamental do MARE, comentando a experiência internacional e nacional em contratualização, afirma:

“Dentre as opções de reforma do serviço público que têm se verificado em todo o mundo, cresce, em popularidade, a experimentação em torno da assim chamada contratualização.”

Sustenta que esse “movimento pode ser entendido como uma incorporação das (chamadas) críticas neoliberais em prol da necessidade de um comportamento empresarial autônomo em certas esferas de Governo”.

Localizando a origem dos contratos de gestão, sob rótulos diversos, registra:

“Possivelmente a primeira manifestação da chamada contratualização tenha ocorrido, paradoxalmente, em um país de forte tradição burocrática: em 1967 o relatório Nora recomendou, como forma de se enfrentar o alto grau de ineficiência das empresas públicas francesas, cada vez mais dependentes de subsídios governamentais, a contratualização das relações de supervisão entre Estado e empresa.”

Comentando a importância de tais contratos no processo de reformulação do sistema de planejamento francês, conclui que o movimento pela contratualização na França visa, de fato, viabilizar a manutenção da presença do Estado na economia, pois este é um país de forte tradição estatal: a regra foi entao modernizar para não privatizar.30

Já na Grã-Bretanha, com a expansão do setor público empresarial, formado como resposta à necessidade de reconstrução do pós-guerra, exauriu-se o modelo ao final da década de 70 com a deterioração dos serviços públicos. A saída foi a privatização e não adoção de contratos de gestão com empresas estatais no setor produtivo.31

Assim, diferentemente, no caso britânico, a contratualização ganhou campo no seio da administração pública com o objetivo de reduzir a administração centralizada, caracterizando-se como um modelo em três dimensões, consoante lembra Ramos,32 apoiado em lição de Abrucio:

“a) a extensão das relações contratuais no fortalecimento de serviços públicos entre o setor público, o setor privado e o voluntário não-lucrativo, criando uma nova estrutura de pluralismo institucional, contraposta ao antigo modelo de monopólio estatal;

b) extensão das relações contratuais para dentro do setor público, envolvendo descentralização, delegação e mecanismos de ‘quasi market’;

c) desenvolvimento de contratos de qualidade entre os provedores de serviços e consumidores/clientes.”

No Brasil, registra-se precária experiência, a partir de 1986, em São Paulo, e, no âmbito federal, especialmente a partir da Lei n. 8.246, de 22 de outubro de 1991, que “autoriza o Poder Público a instituir o Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais e dá outras providências”.

Agora, com a Emenda Constitucional n. 19/98, o instrumento gerencial ganha ênfase na relação do Estado com as agências executivas e organizações sociais, podendo ser assim definido em sentido estrito:

”O contrato de gestão é um compromisso institucional entre o Estado, por intermédio de seus ministérios, e uma entidade pública estatal, a ser qualificada como Agência Executiva, ou uma entidade não-estatal, qualificada como Organização Social.”33

Analisando o instrumento que viabiliza o Plano de Publicização, sustentam alguns que, apesar do rótulo “contrato”, abriga o instrumento típico convênio, já que se dirige no sentido da convergência de interesses, acordo de mútua colaboração.

Em termos práticos, sob a ótica do Estado, é um instrumento de implementação, supervisão e avaliação de políticas públicas; do ponto de vista da entidade contratada, é um instrumento de gestão estratégica, já que direciona a sua ação.

5 – SETORIALIZAÇÃO DO ESTADO E PROGRAMAS ESPECÍFICOS

Destarte, o que se percebe é o desenvolvimento de programas específicos assentados em contrato de gestão e em outros mecanismos, em cujos papers vêem-se reticuladas ora matrizes relacionais Estado-Sociedade ora Estado-Mercado, ou ainda as relativas aos seus núcleos internos de poder, tudo de acordo com a moldura que abriga os diversos setores de abordagem pelo Estado, a saber: núcleo estratégico encarregado das funções estatais básicas, da definição das leis, concepção de políticas públicas; núcleo de atividades exclusivas do Estado dependentes do poder de império; núcleo de serviços não exclusivos ou competitivos, para o qual se proteja a atuação concorrente do Estado e da sociedade civil por meio das organizações não estatais e privadas, e que é, também, denominado terceiro Setor, e núcleo de atividades econômicas destinadas ao mercado.34 O modelo de administração projetado para o núcleo estratégico é o burocrático, aplicando-se aos demais os métodos gerenciais voltados para eficiência e produtividade.

Programas específicos guardam coerência com essa diversificação dos núcleos. Nesse sentido, programas de privatização buscam retirar o Estado das atividades de mercado, diminuindo a intervenção em seara de economia; o programa de criação de agências executivas é a tentativa de resposta à demanda de melhoria do padrão de gestão pelo Estado de suas atividades exclusivas; o programa de desburocratização está voltado para a flexibilização e simplificação da legislação administrativa e das matrizes de ação do Poder Público, com vistas à implantação da mudança gerencial nos diversos setores; programas de qualidade e de participação do cidadão são destacados como condição de eficiência; e, por fim, o programa de publicização voltado para o terceiro setor traduz-se no reconhecimento de papel público de instituições privadas sob o tratamento de organizações sociais.35

Modesto36 identifica, na pluralidade de reformas contemporâneas de Estado, diretrizes comuns que ele reúne em um quadro simplificado de referências, do qual se extraem sinalizações pertinentes às diversas relações do Estado, entre as quais a constituída por este e a sociedade.

Desse quadro inferem-se, também, objetivos econômicos, sociais, políticos e gerenciais da Reforma. Esta direciona-se, sob o enfoque social, para o aumento da eficiência dos serviços sociais e para a interiorização na prestação de serviços e ampliação do acesso e, sob a ótica política, para a participação da cidadania na gestão da coisa pública, para o estímulo à ação social comunitária e para a coordenação das pessoas políticas no implemento de serviços sociais.

5.1 – Publicização por meio de Organizações Sociais

As organizações sociais aparecem como mecanismos de redefinição do modo de intervenção no âmbito social, desafiadas por todas aquelas expectativas do Governo no referido campo social. A alternativa projeta a transferência de atividades não exclusivas ou competitivas desenvolvidas pelo Estado para o terceiro setor, ou a publicização de atividades executadas por esses segmentos sociais, reconhecendo-lhes condição de agentes de uma esfera pública não estatal, prestadores de serviços garantidos pelo Estado ou operacionalizadores de políticas públicas sociais. Por meio delas, pretende-se, portanto, enfatizada a relação Estado-Sociedade.

O Plano Diretor da Reforma, ao discutir o chamado Programa de Publicização, explicita que, por ele, “(…) transfere-se para o setor púbico não estatal, o denominado terceiro setor, a produção dos serviços competitivos ou não-exclusivos de Estado, estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado e Sociedade para seu financiamento e controle”.37

Ao Estado será reservada a condição de regulador ou provedor daqueles serviços. Contudo, nada impede que ele atue simultaneamente com as organizações, na permanente perspectiva da subsidiariedade.

Essa parceria, envolvendo a presença do ente estatal no campo da prestação de serviços, simultaneamente com as instituições não estatais e privadas, justifica-se, tendo em vista que os mesmos relacionam-se com direitos sociais garantidos pelo Estado e possuem economias externas relevantes cujos ganhos não serão agregados aos serviços pela simples via de mercado.38

Ao seu turno, compondo o jogo lingüístico dos articuladores do Plano da Reforma, vê-se, no parágrafo inaugural do texto oficial do MARE sobre as organizações sociais, que a “absorção de atividades sociais pelo terceiro setor tem ocorrido de forma expressiva nas democracias contemporâneas, como um movimento que é portador de um novo modelo de administração publica, baseado no estabelecimento de alianças estratégicas entre Estado e sociedade, quer para atenuar disfunções operacionais daquele, quer para maximizar os resultados da ação social geral”.39

Fazendo certa apologia do modelo, Bresser Pereira, no artigo “Administrativa e Social”, comenta a experiência de Organizações Sociais na Grã-Bretanha, onde são chamadas quangos (quasi-auto nomous non governamental organizations) afirmando:

“A partir da transformação dos hospitais estatais ingleses em organizações sociais e da adoção de um sistema de ‘quase mercado’, levando-os a competir pelas verbas públicas, o National Health Service (que é público não-estatal) tornou-se um sistema de alta eficiência. Ele custa por habitante/ano o equivalente à metade do sistema de saúde francês (que é estatal) e a um terço do sistema americano (que é privado).”40

5.1.1 – Objetivos

Colocam-se como desdobramentos dos grandes objetivos do chamado Programa de Publicização, por meio das Organizações Sociais, consoante se vê do documento oficial do MARE41 sobre a matéria:

· Dar nova abordagem aos serviços públicos sociais na perspectiva de melhores resultados.

· Transferir para o setor público não estatal os serviços não exclusivos executados no âmbito estatal.

· Lograr maior autonomia e flexibilidade em modelo de administração gerencial na prestação de serviços.

· Viabilizar a ação pública com mais agilidade e maior alcance.

· Enfatizar o cidadão-usuário como destinatário da prestação e agente de controle.

· Fortalecer práticas e mecanismos que privilegiem a participação da sociedade na formulação e avaliação do desempenho das Organizações Sociais.

· Estimular o controle social da prestação de serviços públicos.

· Estabelecer maior parceria entre o Estado e a sociedade baseada em resultados pactuados mediante contrato de gestão.

· Aumentar a eficiência e a qualidade dos serviços.

· Reduzir a dimensão do Estado enquanto máquina administrativa. · Racionalizar os custos e otimizar os resultados.

· Ampliar a responsabilidade dos dirigentes e da própria sociedade na gestão da instituição.

· Favorecer o financiamento por meio de compra de serviços e doações por parte da sociedade. · Tornar o terceiro setor competitivo.

· Estabelecer gestão de recursos públicos compartilhada com a sociedade civil.

A par desses objetivos, comenta-se, também, que pretende o Governo lograr maior controle sobre os recursos canalizados para as entidades não-governamentais por diversos países que mantêm programas típicos para o setor social.

5.1.2 – Opção Legislativa no Plano Federal

O tema “Organizações Sociais”, desde logo assentado no Plano Diretor da Reforma, foi oficialmente introduzido na pauta do Congresso Nacional por meio da Medida Provisória 1.591/97. A referida MP instituiu o Programa Nacional de Publicização, prevendo a qualificação de entidades privadas sem fins lucrativos como organizações sociais para a execução de serviços não exclusivos ou competitivos em sistema de parceria com o Estado, isto é, previu a possibilidade de reconhecimento do caráter público de atividades levadas a cabo por estranhos ao campo estatal, fora dos processos de delegação.

14/11/12

Por imposição didática, abandono a polêmica acerca do tratamento da matéria por meio do instrumento excepcional da medida provisória, que apela para situações de relevância e urgência como condição autorizativa de seu manejo. Impõe-se apenas lembrar que a solução veiculada na dita Medida Provisória, à evidência, não responde aos imperativos a que se refere o art. 62 da Constituição Federal, o que tem inspirado a alegação de inconstitucionalidade formal daquela.

A matéria é hoje objeto da Lei Federal n. 9.637, de 15 de maio de 1998. A disciplina está contida em 25 artigos que se aplicam integralmente à União.

Moreira Neto,42 após comentar o modelo de organizações sociais adotado no plano federal, afirma:

“A nova legislação das organizações sociais deve ser saudada como um avanço significativo no Direito Administrativo nacional, ao abrir portas para multiplicadas práticas institucionais de despolitização, de aplicação do princípio da subsidiariedade e de descentralização social, qualidades importantes para um diploma contemporâneo voltado à realização do princípio fundamental do pluralismo (…).”

Sobre a temática, os Estados e Municípios poderão legislar, desde que observem seu campo de autonomia, acolham as normas gerais relativas a licitação e contratos e não alcem vôo à seara de legislação privativa da União, especialmente Direito Civil e Direito Penal. De qualquer modo, a legislação federal coloca-se como referência importante para os demais entes federativos.

Desse modo é que, ao aceno da União, quer discutindo a alternativa, quer apresentando aquela MP, vários Estados têm buscado estruturar no plano legislativo seu modelo de organizações sociais. Nesse sentido, Pará e Bahia, respectivamente em 1996 e 1997, editaram seus diplomas legais, sendo que, em Minas Gerais, se

encontra em tramitação o Projeto de Lei n. 1.570/97, que dispõe sobre a matéria.43

5.1.3 – Modelo institucional de Organizações Sociais no Plano Federal

5.1.3.1 – Conceito

Organização social é a pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, constituída como fundação ou associação civil, e qualificada, na forma da lei, pelo Poder Público para o exercício de serviços públicos não exclusivos ou de caráter competitivo, nas áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde, em sistema de parceria, nos termos de contrato de gestão.

Em outras palavras: apresenta-se de acordo com o marco legal vigente, como organização não estatal, externa à Administração Pública, qualificada como social para a absorção de serviços públicos ou desenvolvimento de atividades publicizáveis, mediante contrato de gestão, de natureza administrativa.

Anastasia44 esboça o seguinte conceito sobre a referida figura jurídica:

“Por seu turno, as organizações sociais são entidades de direito privado, não integrantes da Administração Pública, que recebem do Estado esta qualificação, a habilitá-las a, também por meio de contrato de gestão, receberem recursos públicos (pessoal, bens, dotação orçamentária) para o desempenho de atividades de interesse geral. Essa interessante categoria muito se assemelha às antigas fundações governamentais, anteriormente à publicização ocorrida em 1988, na Constituição. O seu objetivo estatutário é o exercício de serviços relevantes, de interesse público, ainda que não se idifiquem como entidades estatais.”

Assim, as organizações sociais, apesar de constituírem uma inovação, não representam uma nova figura jurídica; ao contrário, são concebidas a partir de substratos tradicionais.

5.1.3.2 – Natureza Jurídica

Complexa questão atinente ao modelo institucional é a que diz respeito à natureza jurídica das organizações sociais. Polemizam os que tentam identificar seus lineamentos básicos com vistas ao seu enquadramento em uma dada tipologia jurídica: seriam elas formas veladas de resgate de antigas entidades da administração indireta, especialmente as fundações privadas, que resvalaram para o corporativismo, para o patrimonialismo, acobertadas pelas flexibilidades que as deixavam a salvo dos controles por parte do Tribunal de Contas, ou permitiam as escandalosas acumulações, as contratações sem concurso, os planos remuneratórios abertos? Seriam elas, à semelhança das autarquias, veículos expressivos do poder estatal? Seriam elas entidades de utilidade pública transvestidas em novas roupagens, sob a etiqueta da moda “OS”, que já ganha as vitrines? Integrariam essas organizações a Administração indireta como entidades especializadas por um regime de flexibilidade? Seriam novos serviços sociais autônomos?

Ranieri,45 em artigo intitulado “Descentralização: O Projeto Organizações Sociais”, faz uma acirrada crítica à alternativa apresentada pelo Governo Federal em relação às Organizações Sociais, entendendo tratar-se de solução equivocada e temerária a flexibilização proposta e sustentando a desnecessidade de sua criação, tendo em vista que muitas das metas desejadas podem ser atingidas pela atual administração indireta.

Segundo a autora, não seriam elas mais que figuras jurídicas públicas, em função da atividade de natureza pública que deverão exercer, e equivocadamente denominadas “não-estatais”, pelo fato de se pretender realçar sua natureza privada em contraste com seu regime jurídico, que não escapa ao direito público. E efetivamente sustentando essa natureza pública, afirma que a entidade, na qualidade de organização social, passando a “atuar na prestação de atividades públicas por determinação legal, de forma vinculada ao Estado, tanto em razão da natureza da atividade, como em virtude de sua manutenção (total ou parcial), controle e tutela, vem a mesma integrar a Administração Indireta.” Nessa linha, destaca “a participação do Estado na condução das atividades da instituição, o que, de certa forma, não deixa de constituir um controle interno de conteúdo estatal, a endossar o qualificativo ‘público’ da instituição e a conclusão de que a entidade não será ‘não-estatal’, como pretendido”.

Para Moreira Neto,46 as Organizações Sociais são formas de descentralização social por colaboração por via de ato de reconhecimento.

Afirma o administrativista ser “indiscutível que os entes políticos possam criar pessoas de direito privado, aliás, no Brasil, pode-se afirmar que os exemplos existentes são vitoriosos, como o SENAI, SESI, SENAC, SESC e SEBRAE, cabendo acrescentar o SENAR (Serviço de Aprendizagem Rural), que foi previsto na própria Constituição”.47

E conclui:

“se é possível ao Estado criar entidades privadas, até mesmo com maior razão, nada obsta que possa outorgar reconhecimento a entes privados já existentes na qualidade de colaboradores, o que vale dizer: atribuir eficácia administrativa aos atos por eles praticados nos limites das respectivas delegações.”48

Em realidade, as organizações sociais estão próximas dos serviços sociais autônomos do chamado sistema social “S” e espelham ainda o famoso exemplo das Santas Casas de Misericórdia que, desde o Império, se espalham por todo o país, tipificando o interesse público não estatal. Não constituem, todavia, típica modalidade de descentralização.

Entendo que as organizações sociais não podem ser consideradas novas formas de descentralização administrativa: não integram a Administração, sendo, portanto, estranhas à estrutura dessa; não atuarão em seara própria e exclusiva do Estado mediante outorga ou delegação, e a relação que estabelecem com entidades congêneres da Administração dá-se apenas pela absorção de atividades e recursos e utilização de bens mediante permissão.

É fato que, por meio das OS, busca-se resgatar para o setor de serviços públicos não exclusivos ou competitivos o regime de autonomia administrativa das entidades da Administração Pública concebidas segundo o modelo de gestão flexível, na esteira do Decreto-lei n. 200/67.49

Afastam-se, contudo, das autarquias, não podendo ser com elas confundidas. De fato, não seriam forma mitigada de autarquia, posto que mesmo gozando de autonomia administrativa e financeira, “não titularizaram qualquer espécie de prerrogativa de direito público. Não gozarão de prerrogativas processuais ou prerrogativas da autoridade”.50

Aproximam-se, no entanto, das antigas fundações governamentais em regime privado até a Constituição de 1998, que as publicizou, eis que o arranjo jurídico que sustenta essas novas institucionalidades pressupõe semelhante grau de flexibilização e acata até a forma jurídica fundacional como alternativa.

À semelhança daquelas antigas fundações privadas, tais entidades poderão ser inspiradas pelo Poder Público e por ele fomentadas e, pelo menos formalmente, derivarão sempre de vontade externa ao próprio Estado. Contudo, o modelo institucional das OS não se restringe à forma fundacional e, resgatando figuras tradicionais, busca, contudo, superá-las em contexto interpretativo novo, a partir de marcos teóricos contemporâneos.

Noutra vertente, a comparação das organizações sociais com as entidades privadas declaradas de utilidade pública revela uma mera distinção de graus no rigor e apoio do Estado no seu tratamento.

Aqui é bom distinguir:

· Entidades de fins comunitários dirigidas a oferecer utilidades concretas ou benefícios especiais à comunidade de um modo geral, sem considerar vínculos jurídicos especiais, quase sempre de forma gratuita;

· Entidades de favorecimento mútuo dirigidas a proporcionar utilidades ou benefícios a um círculo restrito ou limitado de sócios mediante contribuições.51

Sustenta-se que a titulação como Organização Social só será atribuída à sociedade comunitária ou à fundação após atendidos rigorosos requisitos legais, e que tal reconhecimento importará em fomento mais efetivo, sujeitando-se a entidadade a controles mais rígidos, especialmente de resultados.

Ora, procede-se ao reconhecimento das entidades de utilidade pública, também, nos termos de legislação específica que lhes define os requisitos. Igualmente, não se pode olvidar o fato de que entidades declaradas de utilidade pública conveniadas com o Estado submetem-se, indiretamente, ao controle do Tribunal de Contas no tocante aos recursos recebidos e à execução do objeto pactuado. Portanto, a diferença diz respeito ao grau de rigor na qualificação e no controle.

O certo é que o modelo institucional é traçado tomando-se por base clássicas figuras jurídicas da seara privada – associação civil ou fundação -, as quais se especializam, por força de mera titulação, como organizações sociais, que não lhes retira a essência de pessoas privadas.

A composição do poder decisório da entidade dá-se no âmbito de um conselho que deve contar com a participação de representantes do Estado, na proporção de 20 a 40%; de representantes de entidades da sociedade civil, na proporção de 20 a 30%, além de outros eleitos ou indicados no âmbito da entidade ou do próprio colegiado. O conselho assim composto é a instância interna máxima, e a ele cabem atribuições básicas de caráter normativo e de controle (Lei n. 9.637, de 15 de maio de 1998).

As organizações sociais ligam-se ao órgão estatal supervisor por força do contrato de gestão celebrado à vista de autorização legislativa, cujos objetivos e metas se submetem à tutela conjunta do Estado, por meio do órgão específico de seu núcleo estratégico, e da Sociedade, por meio da instância colegiada, da qual, também, participa o Poder Público. Igualmente, sujeitam-se à avaliação por uma comissão especial quanto aos resultados da aplicação de recursos públicos, sem prejuízo da fiscalização a cargo do Tribunal de Contas e dos demais controles.

Vê-se que o modelo da organização é mitigado, pois se prevê a participação (minoritária) do Poder Público em instância a ela interna, de controle e gestão. Isso leva a ambigüidades: projeta-se que ela possa trilhar paralelamente com o Estado os caminhos da cooperação na área social, mas no seio dessa mesma organização está presente o próprio Estado, e, ao mesmo tempo, pretende-se, também, a superação da dicotomia Estado-sociedade.

Não se afasta, contudo, o risco de, a título de publicização, diretriz assentada na idéia de reconhecimento de esfera pública pertinente à sociedade, repetir-se nova estatização das entidades, uma vez que a participação do Estado no Conselho pode tender à dominação dessa instância decisória, e o contrato de gestão, que deve comunicar apenas um certo grau de sujeição da entidade, ao próprio regime administrativo, pode transformar- se em instrumento de ação direta do Poder Público.

Em modelo institucional semelhante está sendo proposta a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Caráter Público, que encontrarão no termo de parceria o instrumento de ligação com o Estado, conforme projeto elaborado pela comunidade solidária e que deve ocupar espaço nas cogitações do Congresso (1998).

5.1.3.3 – Propriedade

No tocante à propriedade, o Programa de Publicização, rompendo com a concepção clássica, que distingue, entre nós, apenas suas duas formas – privada e pública (estatal) -, e coerente com a nova estruturação de setores estatais, apresenta idealmente a terceira alternativa – a propriedade pública não estatal. Nesse sentido, reconhece a propriedade no terceiro setor como não atribuível a nenhum indivíduo ou grupo nem ao Estado especificamente, consoante registra o documento oficial do MARE sobre Organizações Sociais.52

A propriedade assim caracterizada haverá de sustentar novas perspectivas da própria Ação Popular no tocante à proteção do público não estatal.

5.1.3.4 – Natureza dos Serviços Prestados

Sabe-se que a atuação das organizações sociais está restrita ao campo de serviços não exclusivos ou competitivos do Estado, pressupondo a concorrência de outros segmentos com o ente estatal, como nos exemplos relacionados com a saúde, previstos nos arts. 196 e 199, § 1o, da Constituição Federal.

Desse modo, admitem-se serviços prestados pelo Estado (públicos) e serviços oferecidos pelo segmento privado. O que se opera não é uma delegação, já que a complementariedade já é pressuposta, mas a publicização do serviço, o que justifica o apoio do Estado em termos de recursos humanos, técnicos, financeiros e patrimoniais.

A transferência de serviços públicos ao terceiro setor ou o reconhecimento de atividades deste como serviços públicos pressupõe arranjo jurídico diferente daquele que estrutura a concessão ou permissão, instrumentos de delegação. Aquela se assenta na relação Estado-sociedade – Público Estatal e Público não-estatal – e a delegação se estabelece sobre a aliança Estado-mercado – Público-Privado.

Ademais, a solução desafia o Direito em suas clássicas estruturas lógico-formais, no sentido de sua abertura para dar vazão às novas implicações de realidade.

Essa perspectiva publicizante é coerente com as tendências modernas de compreensão do fenômeno societário e pode repercutir de forma profunda no sistema jurídico, com manifestações na órbita das relações, impactando, por exemplo, a matriz de legitimidade do Mandado de Segurança, o objeto de outras ações específicas de controle do “público”.

5.1.3.5 – Desafios

Grandes desafios se apresentam ao Governo e à sociedade para a implantação do referido programa. Desafios do Estado:

· A desconfiança da população em face das frustradas experiências de reformas dos modelos de prestação de serviços.

· Perspectivas de oneração do Estado por aplicação de teorias e princípios relativos à responsabilidade civil.

· Ausência de diagnósticos confiáveis relacionados com a atual capacidade instalada e com a demanda para a prestação de serviços.

· A novidade do modelo institucional que pressupõe profundo conhecimento da realidade e das tecnicalidades envolvidas por parte dos agentes pactuadores.

· Ausência de parâmetros e indicadores de avaliação de políticas públicas.

· Risco de que sejam absorvidas no gênero das pessoas jurídicas privadas declaradas de utilidade pública, as quais, com notáveis exceções, inserem-se em cultura negativa no tocante à aplicação de subvenções oriundas do Estado.

· Risco do patrimonialismo das organizações sociais como retomada das práticas decorrentes de aplicação de modelo flexível direcionado à eficiência a partir do Decreto-Lei n. 200/67.

· A emergência de construção de mecanismos compensatórios para inserção dos excluídos num plano mais igualitário de relações no seio da própria sociedade para que, entao, possam participar das políticas para além das meras estatísticas.

Diagnósticos do MARE 53 dão conta de que o Brasil já dispõe de um segmento da sociedade, o terceiro setor, fortalecendo-se institucionalmente para colaborar de forma cada vez mais ativa na produção de bens públicos.

Contudo, muitos são os desafios que se colocam à sociedade para se assenhorear do verdadeiro espaço público que lhe pertence:

· Buscar formas de participação que possam tornar cada vez mais eficaz o controle social;

· Resistir à estatização, acatando o fomento do Estado, mas afastando a manipulação estatal dos mecanismos de legitimação, como conselhos e outras instâncias;

· Resistir à privatização e à “feudalização das organizações sociais, ou seja, à apropriação destas por grupos de indivíduos que as usam como se fossem privadas”;54

· Evitar a promiscuidade política nos processos de reconhecimento e transferência e o estabelecimento de arenas de poder menor.

A esse risco pretende o Governo responder, por exemplo, com as regras que limitam a recondução e obrigam à renovação periódica dos conselhos.

Esses cuidados, contudo, não aplacam a força de fatores de fragilização das organizações ou de comprometimento do interesse público:

 

· A discricionariedade do Poder Público para proceder à qualificação das entidades, quando a tendência atual é no sentido da redução do campo daquela;

· A dispensa de processos licitatórios (art. 37, XXXI, da CF) ou a sua flexibilização mediante disciplina específica a cargo dos respectivos conselhos, em vez de, por exemplo, adotar-se legislação geral mais compatível com as peculiariedades do modelo;

· A contratação de pessoal nas condições de mercado com a natural dispensa de concursos públicos (art. 37, II, da CF), sem adoção de mecanismo que possa, ao mesmo tempo, desatar as peias e sustentar solução consistente;

· A inaplicabilidade da regra de vedação de acumulação, entre outros.

5.1.3.6 – Críticas

· O Governo sustenta a superação da dicotomia Estado-cidadão mediante controle social. Contudo, este não está adequadamente instrumentalizado, nem no plano normativo nem na prática administrativa.

· Como as organizações podem lidar com direitos dos cidadãos (art. 5o) relacionados com necessidades básicas que têm no Estado o principal garantidor, podem ser instrumentos da substituição da garantia de serviços pela venda destes, o que reforça a excludência e acentua desigualdades de acesso e fruição.

· O modelo institucional proposto pode constituir-se em fator inibidor da capacidade criativa dos entes políticos, habituados à abservância servil e simétrica aos padrões da União, quanto à busca de alternativas próprias para prestação de seus serviços no campo autônomo da organização administrativa.

· A medida de fomento à criação de organizações para imediata e completa absorção de serviços pode ser desastrosa, já que é condição de sucesso a sua real institucionalização, o que só poderá ocorrer a partir de processo de construção de sua identidade, com a sua internalização pela sociedade, afastadas as soluções artificiais.

É certo que cuida a lei de determinar a adoção pelas organizações de denominação e símbolos da entidade congênere extinta no âmbito da administração. Isso, contudo, não é suficiente.

· A alternativa, se não for adotada com absoluta seriedade e de forma processual, pode levar ao desmonte do setor público, inviabilizar até o papel subsidiário do Estado e, com isso, deslocar tais serviços do âmbito comunitário, no caso de ineficiência deste, para o mercado.

· A confusão das entidades assim qualificadas como organizações sociais e aquelas declaradas de utilidade pública, tendo em vista a identidade de seu substrato, pode levar à estruturação de preconceitos e ceticismo quanto ao seu papel transformador no campo das políticas públicas sociais, tão impactado pelo clientelismo.

· A desconsideração de lógicas próprias informadoras de sistemas específicos de políticas pode levar a conflitos entre os entes federativos.

Ranieri55 realça outros pontos de fragilidade: ausência de parâmetros para definição de prazos de vigência (renovações etc.); falta de normas claras relacionadas com obrigações previdenciárias e outras em caso de desqualificação ou extinção do prazo; retirada das fundações reconhecidas como organizações sociais da alçada da Curadoria das Fundações no tocante ao contrato de gestão; atribuição de dose forte de poder político ao titular do órgão do governo da respectiva área de competência, com prejuízo para o caráter competitivo e gerencial que se pretende dar à sua administração (isso, quando a tônica deve ser a despolitização); perspectiva de que o resultado da prestação dos serviços não será suficiente para dispensar recursos financeiros e patrimoniais públicos, nem para garantir a atração de recursos privados.

5.1.3.7 – Medidas

Esse quadro de desafios requer para seu enfrentamento medidas que assegurem:

· o conhecimento integrado e articulado das políticas públicas e da realidade sobre a qual incidem, assim como o domínio das práticas administrativas bem-sucedidas;

· a preparação de interlocutor do Estado e da sociedade capaz de negociar adequadamente os contratos de gestão, seus objetivos e metas, ou de fazer repactuação, proceder à avaliação da execução e estipular recompensas e punições;

· o compartilhamento de informações como condição básica de controle;

· o prestígio do planejamento organizado e permanente mediante definição clara de políticas e diretrizes públicas;

· a estruturação de mecanismos de identificação de fatores positivos e negativos que interferem no desempenho institucional;

· adaptação à realidade interna dos padrões de racionalidade internacionais, sob pena de artificialismo inútil;

· a definição de indicadores de desempenho, em termos de eficiência, eficácia e qualidade, que sejam, ao mesmo tempo, parâmetros de resultados e suporte para indicação de medidas corretivas ou supletórias do Estado.

5.1.3.8 – Processo de Publicização

O MARE, no Documento Oficial sobre Organizações Sociais, apresenta o processo em linha seqüencial, o qual inclui 8 (oito) etapas: divulgação, protocolo de intenções, preparação organizacional das atividades a serem publicizadas, criação e composição da entidade não estatal, preparação e negociação do contrato de gestão, atos legais de extinção e qualificação, inventário simplificado, absorção de atividades pela organização social mediante contrato de gestão.56

Especialmente quanto à organização da entidade, devemos destacar duas possibilidades: em caso de existência da associação ou fundação, deve-se proceder à adequação de seus estatutos à legislação das organizações sociais; na hipótese de criação, deve-se observar a legislação vigente relativa à constituição e registro de pessoas jurídicas, em conjugação com a legislação específica das organizações sociais.

O processo de criação envolve medidas de fundação da entidade, elaboração, discussão e aprovação do estatuto em assembléia, lavrando-se a ata e, posteriormente, levando-se os documentos a registro. O estatuto conterá a denominação da entidade; a sede social; os fins a que se destina, ressalvando-se o caráter não lucrativo e a obrigatoriedade de aplicação dos recursos para cumprimento de seus objetivos, devendo estar expressa a neutralidade política; fundo social, se houver; duração por prazo indeterminado; o modo de administração; a organização básica; a composição das instâncias (conselho e diretoria). Deverão, ainda, ser observados os requisitos para qualificação; a representação pelo dirigente máximo; a forma de alteração estatutária; a responsabilidade dos sócios; o destino do patrimônio, vedada a distribuição de bens ou de parcela do patrimônio líquido entre sócios; as condições de extinção.

Aprovado o estatuto, o representante legal da entidade ou dos sócios fundadores dirigirá requerimento ao oficial da serventia, solicitando registro ou alteração de registro da entidade, acompanhado da relação dos sócios fundadores e membros da diretoria com os respectivos dados.

Em seguida, far-se-á inscrição da entidade no Cadastro Geral de Contribuintes.

Finalmente, faz-se a composição do conselho, a partir de iniciativa do conselheiro representante dos sócios, que solicita indicação dos membros natos do Poder Público e da sociedade. Esse conselho parcial reúne-se e complementa a composição do colegiado com pessoas de notória capacidade. Instalado o colegiado, elege-se a diretoria, a qual manifesta ao Poder Público o propósito de absorver atividades. Seguem-se os atos de reconhecimento e os demais, culminando-se o processo com a assinatura do Contrato de Gestão.

5.1.3.9 – Licitação

Discute-se se a qualificação das entidades como organizações sociais e a contratação celebrada entre estas e o Estado para a gestão dos serviços não exclusivos podem ou não prescindir de licitação.

A lei federal sobre organizações sociais não condicionou nem a qualificação como organização social nem o contrato de gestão à exigência de licitação, prevendo ser discricionária a qualificação. Entende a União que o contrato de gestão independe de licitação, em face de se constituir em verdadeiro convênio de cooperação. Já a contratação de terceiros pela entidade ficará sujeita às normas estabelecidas pelo próprio conselho, que terá atribuições normativas e de controle.

O fato de o contrato de gestão guardar natureza intrínseca de convênio não pode aprioristicamente ser indicativo de excludência das organizações sociais do alcance do plexo normativo relativo à exigência de licitações. A situação concreta é que deverá inspirar a conclusão de sua exigência ou não para a garantia do princípio da isonomia e da ordem republicana, especialmente se se tomar em conta a possibilidade de uma pluralidade de organizações com atuação eficiente nos setores publicizáveis.

Em Minas, na definição do marco legal das organizações sociais, vem-se propugnando pela adoção de processos licitatórios e pela limitação da discricionariedade no processo de qualificação, sem prejuízo da ênfase na autonomia gerencial como conteúdo do contrato de gestão.

Nesse particular, cabe ressaltar que o exercício da competência legislativa pelos Estados e Municípios sujeita- se a maiores condicionamentos que os impostos à União.

5.1.3.10 – Gerenciamento e controle

As Organizações Sociais estarão sujeitas à administração gerencial, própria do setor privado, que lhes garantirá flexibilidade para contratação de seu quadro de pessoal nas condições de mercado; para compras e para a execução de seu próprio orçamento.

Espera-se ganho de agilidade e de qualidade na seleção, contratação, manutenção e no desligamento de empregados que estarão sujeitos a planos de cargos e salários e regulamento próprio da organização social.

O controle das organizações sociais compreende um momento a priori a cargo do Legislativo, que corresponde à autorização legislativa para que o executivo possa com elas firmar o contrato de gestão.

Tem-se, ainda, da parte do Congresso a participação na vida dessas entidades pela previsão anual de dotações orçamentárias.

Além disso, a gestão dessas entidades, que se fará segundo mecanismos de controle finalístico, em contraposição ao controle processualístico predominante para a Administração pública, será objeto de fiscalização pela sociedade, por meio das instâncias colegiadas, e pelo Estado, seja pela sua participação nos mesmos conselhos, seja por meio dos órgãos do núcleo estratégico a que se vinculem, das comissões especiais, do Tribunal de Contas, sem prejuízo da competência das demais instituições de controle.

Destaca-se, a propósito, a competência do Tribunal de Contas da União para efetivar controle de organizações sociais.

Por força do art. 70, parágrafo único, da CF, na redação dada pela EC n. 19/98, essas entidades estarão sujeitas à fiscalização pela Corte de Contas.

Eis a redação cogitada:

“Art. 70 – …………………………………………….

Parágrafo único – Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiro, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.”

O Tribunal de Contas, contudo, já entendia ser de sua alçada a análise das contas de qualquer entidade sob o vínculo de contrato de gestão, fossem estatais ou não-estatais.

Nesse sentido, a decisão DC 0020/94, do TCU firmou o entendimento, em caráter normativo, de que a sistemática de relacionamento entre empresas estatais e a Administração central, sob o regime de contrato de gestão, não desobriga essas entidades governamentais do cumprimento de preceitos constitucionais e legais pertinentes à espécie:

“· Dever constitucional de prestar contas ao TCU.

· Obrigação de concurso público para seleção e admissão de pessoal.

· Remuneração de dirigentes e servidores sujeita aos limites constitucionais.

· Contratação mediante licitação.

· Prestação de contas relativas ao contrato de gestão submetida ao Tribunal de Contas.”57

Na linha da sujeição das não-estatais, a decisão quanto ao processo n. 14.236/94, relativo à prestação de contas do exercício de 1993 do Serviço Autônomo Associação das Pioneiras Sociais, no tocante ao contrato de gestão instituído pela Lei n. 8.246/97, que tem por objetivo a administração de rede hospitalar pública – Hospital Sarah, Salvador (BA) -, assinado em fins de 1991 entre os Ministérios da Saúde, da Fazenda e da Administração Federal e aquela entidade.

O Ministro Relator Carlos Átila, em substancioso voto, destaca o acerto da atuação daquela entidade na execução dos objetivos e metas pactuadas no Contrato de Gestão.58

Importante papel controlador poderá ser exercido pelo Ministério Público, por meio do instrumento do Inquérito Civil e da Ação Civil Pública.

Nessa vertente, o Ministério Público Federal da Bahia instaurou, mediante a Portaria n. 02/98 PRDC/BA, o Inquérito Civil Público MPF RR/BA n. 08104000115/98–16 para apurar irregularidades no processo de transferência de atividades e bens de hospitais públicos do SUS (Leis 8.080/90 e 8.142/90) para entidades qualificadas como organizações sociais, de acordo com a Lei baiana n. 7.207/98.59

Destina-se o inquérito a investigar eventual existência de ofensa ao princípio da participação comunitária na gestão do sistema único de saúde no Estado da Bahia, especialmente regulamentado na Lei Federal n. 8.147/90; possível dano ao patrimônio público e social em razão do processo de qualificação de organizações sociais, bem como a existência de lesão aos demais princípios constitucionais dirigidos àquele sistema, notadamente o do direito de acesso universal e gratuito aos serviços de saúde.

Acredita-se, contudo, que o sucesso do modelo institucional dependerá em muito da efetividade do controle social, que vai demandar, mais que participação formal da sociedade no conselho, o compartilhamento da fiscalização com todo o segmento envolvido.

Discutindo a organização dos usuários como condição de eficácia do modelo, Nassuno60 relata as transformações ocorridas na estrutura e nos padrões de intermediação de interesses no Brasil, com o surgimento e proliferação de associações, e chama a atenção para a necessidade de uma abordagem cuidadosa da participação, que se submete a lógicas muito próprias. E, referindo-se aos modos de organização e participação dos usuários, alerta com Stone: “(…) o objetivo e a participação podem estar mais associados à própria participação que aos resultados.”

Comenta, ainda, que o surgimento de entidades de representação de interesses de usuários para participar dos conselhos, por si só, não garante o controle social. E explica, por exemplo, que o processo de universalização excludente da saúde retirou-a da pauta de reivindicações dos segmentos mais mobilizados da população, já que o usuário principal do serviço público de saúde é o segmento de baixa renda, com menor grau de mobilização.

E alerta a especialista em políticas públicas da FGV/SP, a propósito da viabilização da organização dos usuários e da adoção de outros mecanismos de controle:

“…os mecanismos de participação dos usuários na gestão das OS vão depender de sua área de atuação e das especificidades de sua clientela. Isso indica a necessidade de mapeamento prévio das instituições e de definição de uma tipologia a partir desses dois fatores para o desenho dos instrumentos adequados.”61

E explica, por exemplo, que, caso os grupos sejam grandes e os benefícios ou custos dispersos, e não haja incentivo para a organização coletiva dos usuários, “torna-se necessário criar incentivos seletivos para viabilizar a organização dos usuários ou mecanismos que prescindam dessa organização. Como exemplo do último caso, cita-se o ombudsmam (…)”.62

A Constituição Mineira de 1989, antecipando-se às dificuldades da lógica da ação coletiva, previu, para controle de serviços públicos, a Ouvidoria do Povo. A alternativa, conquanto não tenha logrado acatamento no plano infraconstitucional, pode ser rearticulada, em face das perspectivas da publicização, mediante organizações sociais no Estado.

6 – PERSPECTIVAS DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS EM MINAS GERAIS

Tramita na Assembléia Legislativa projeto de lei de iniciativa parlamentar que disciplina o incentivo às organizações sociais. Como fruto de discussões preliminares envolvendo órgãos do Poder Executivo e da Casa Legislativa, estão estabelecidas algumas diretrizes para o marco legal no Estado.

Nesse sentido, coloca-se como sinalização básica a mantença das atuais entidades da Administração em stand- by, de modo a evitar a interpretação das ações nessa seara como desmonte do setor público, para afastar problemas administrativos derivados das relações de pessoal, contratuais e burocráticas, e para estabelecer a garantia de cobertura das necessidades, em caso de desqualificação da OS.

Nada obsta que se adote essa perspectiva processual de transferência, já que as organizações não devem necessariamente ser sucessoras de entidades da Administração indireta, podendo atuar paralelamente a elas, e as soluções devem ser amadurecidas no seio das instituições.

Por outro lado, do projeto podem ser destacadas as seguintes diretrizes:

· Previsão de processo licitatório destinado à qualificação como OS;

· Qualificação por decreto do Governador precedida de concorrência;

· Possibilidade de contratação de ocupantes de cargos ou funções da Administração, sob regime celetista, desde que exonerados ou licenciados para interesses particulares, observados os limites;

· Cessão de bens por comodato;

· Regulamento próprio para contratação;

· Resultados avaliados por comissão de avaliação do Governo;

· Previsão de sindicância por comissão de representantes da Auditoria Geral do Estado, da Superintendência Central de Auditoria da SEFAZ, da SEPLAN e da Secretaria a que se vincular.

Contudo, a solução só será definitivamente desenhada após a ampliação das discussões acerca das questões mais polêmicas.

Logo que se editar a lei das organizações sociais em Minas, espera-se que muitas mudanças ocorram no plano da Administração. Há trabalhos setoriais que podem apoiar a adoção da solução. Por exemplo, um grupo de pesquisadores do CETEC apresenta um substancioso estudo intitulado “O novo CETEC”, no qual, após análise da conjuntura, identificação da crise do próprio modelo institucional e explicitação da crise gerencial como responsável pelo clima de perplexidade na entidade, sugere, como resposta para o enfrentamento do problema, a adoção de novo modelo de gestão assentado na reorganização da entidade como fundação privada a ser reconhecida como organização social. O novo CETEC constituirá referência técnica para o

sistema produtivo e para a formação e implementação de políticas ambientais e industriais.63

Há outras entidades da Administração Estadual em processo de preparação para a transferência de suas atividades a organizações sociais atuando em regime de flexibilização, mediante contrato de gestão, com indicadores positivos de resultados.

A perspectiva é que em Minas sejam trabalhados projetos pilotos por meio de metodologia consistente e com amparo interinstitucional, consoante Termos de Compromissos já firmados.

Potencialmente, e na linha da reflexão de Anastasia,64 os indicativos são os seguintes: as atuais entidades de direito público, integrantes da Administração Pública, especialmente as fundações, cuja missão institucional seja relevante e de interesse público, mas de caráter não exclusivo do Estado, são candidatas ao processo de “transformação” em organizações sociais, e resgatarão, assim, autonomia administrativa e financeira, própria do regime fundacional civil.

Vários seminários patrocinados pelo Governo vêm discutindo a temática, de forma que logo as organizações sociais estarão na vitrine das Gerais.

7 – CONCLUSÕES

1- Há um amplo processo de mutação, rupturas e crises que impacta estruturas políticas, econômicas, sociais e jurídicas.

2- O enfrentamento desse quadro tem-se dado por processos de Reforma do Estado com base em idéias estruturantes de caráter múltiplo: subsidiariedade, superação de dicotomias clássicas, reengenharia constitucional, institucionalização de formas discursivas e reconstrução da compreensão normativa do Estado constitucional, despolitização, entre outras.

3- A Reforma Brasileira opta por compulsiva alteração da Constituição, especialmente no que repercute na esfera da Administração Pública, consagrando nítido afastamento da administração burocrática para a adoção da administração gerencial ou por resultados.

4- Sob essa perspectiva, setorializa-se o Estado em núcleos específicos, aplicando-se-lhes na maior extensão a administração gerencial.

5- No terceiro setor, integrado por entidades não-estatais, pretende a Reforma concentrar os serviços públicos relevantes de caráter não exclusivo do Estado, mediante o Programa de Publicização, instrumentalizado pelas organizações sociais, de caráter privado, ligadas ao ente estatal por contrato de gestão.

6- Essas organizações sociais constituem novas institucionalidades no sentido de que são agora veiculadas em contexto interpretativo novo, que traz para a compreensão da figura jurídica novos elementos de consideração do espaço público.

7- São as OS, de algum modo, retorno a formas antigas de flexibilização de gestão. Não integram, contudo a Administração Pública (estatal), nem constituem alternativas para delegação, já que atuam em campo que já lhes é próprio.

8- Sua condição de OS decorre, por isso mesmo, de mero processo de reconhecimento, mediante titulação, à semelhança da declaração de utilidade pública de entidades privadas.

9- A simples qualificação como OS não lhes desnatura o regime privado, que, em parte, pode ficar derrogado em razão da sua submissão aos ditames de ordem pública decorrentes do contrato de gestão. Com efeito, este é, paradoxalmente, instrumento de flexibilização do regime público para as agências executivas (públicas) e de comunicação de ordem impositiva de caráter administrativo às organizações sociais (privadas).

10- O modelo institucional adotado pela União está consubstanciado na Lei n. 9.637, de 15 de maio de 1998, devendo ser paulatinamente aperfeiçoado; no plano dos Estados e Municípios, a autonomia de cada ente sustentará alternativas legislativas próprias, as quais, por sua vez, deverão resultar de aprofundadas e amplas discussões.

11- O tema “Organizações Sociais” está a demandar grande esforço não só de juristas como de estudiosos de outras searas da ciência, tendo em vista as amplas repercussões que se desenham ou se potencializam a partir dessas novas institucionalidades.

12- O sucesso do modelo dependerá da efetividade do controle social, que deverá ser estruturado segundo as peculiariedades dos serviços publicizáveis e do universo de usuários.

Beltrão65 afirma que “existe entre nós uma curiosa inclinação para racionar, legislar e administrar tendo em vista um país imaginário, que não é o nosso (…)”.

Ora, um modelo de organização como se projeta só pode ter sido concebido sob o sonho de um controle social efetivo. E que esse sonho não nos fruste a todos nem se transforme num grande pesadelo no campo de prestação de serviços públicos no Brasil.

Que as alternativas não se transformem num desmonte do Estado e que, efetivamente, levem à ruptura com a matriz patrimonialista, cartorial, clientelista e corporativa, sem substituição pela privatização do espaço público comunitário. Que na confusão de esferas, potencialmente tão rica para a emancipação da sociedade brasileira, não se confundam também o patrimônio público e o particular; o interesse geral e o de poucos.

Que a reforma transcenda a dimensão institucional-legal, a perspectiva de gestão e consiga se estabelecer no

plano da cultura, cumprindo-se as recomendações feitas por Motta66 (a partir de lições de Bretas Pereira, Caravantes, Donald Schon, Kleber Nascimento), no sentido de que as pessoas e suas criações desenvolvam a capacidade de aprenderem, como condição de sua própria sobrevivência; o sistema social adquira a capacidade de novo comportamento para fazer face às tendências esclerosantes das pessoas e organizações, e que se efetive o papel do governo central de aprendiz e facilitador da aprendizagem.

Vamos esperar com Bresser Pereira67 que se assimile seu discurso recorrente – que o Estado seja mais governável, a Administração Pública mais eficiente e efetiva na condução das políticas públicas, e os políticos e burocratas mais responsáveis perante a sociedade – e entao possa o Brasil encontrar o caminho da ampla solidariedade social para verdadeiras transformações.

Notas

Idealizado por Rafael Angeli
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