TRANSPARÊNCIA E RESPONSABILIDADE NA GESTÃO PÚBLICA
Maria Coeli Simões Pires
Advogada. Mestre e Doutora em Direito. Professora Adjunta de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UFMG. Secretária de Estado da Casa Civil e de Relações Institucionais de Minas Gerais.
Resumo: No bojo da ampla discussão do tema da governança, insere-se a nova arquitetura político-administrativa de difusão do poder decisório, chamada, no Estado de Minas Gerais, de Estado em Rede. A modelagem parte de múltiplos pressupostos e baseia-se em diversos princípios, dentre eles os de subsidiariedade, flexibilidade, coordenação e participação democrática, sintonizando-se com o que há de mais avançado na administração pública do século XXI. Considerando o desafio da incorporação dos instrumentos de “empoderamento”, o modelo preordena-se para promover o diálogo, notadamente o intragovernamental, e a capilarização da governança e da autoridade no território. Em Minas Gerais, busca-se a possibilidade da participação qualificada da sociedade civil, sem fragilizar o núcleo rígido da autonomia administrativa. A implantação do modelo corresponde a um 3° estágio da Administração Pública no Estado, sucedendo à primeira geração do Choque de Gestão, com ênfase fiscal, e à segunda, de Estado para Resultados. Suas fundações normativas constam na Lei Delegada n. 180, que emite comando para a integração de órgãos e entidades da Administração Pública Estadual. Destaca-se ponto fundamental das redes — precisam ser, a um só tempo, efetivas e transparentes quando atuam — a transparência responde como antídoto à desconfiança estrutural das sociedades modernas. Deve-se considerar que o despertar do cidadão para a cena política, ao contrário do suposto, é lento e angustiante, o que representa grande desafio para o Estado e a Sociedade.
Palavras-chave: Estado em Rede. Governança. Organização do Estado. Modelagem da Administração Pública.
1 Origens da democracia e ressentimento histórico em face da ausência de participação direta. Tentativas trágicas de conciliação
Como sabem todos, a democracia contemporânea tem raízes romanas, não helênicas ou gregas. O progresso humano, que repercute sobre as dimensões culturais, mas, também, físicas e geográficas do Estado, afasta, por incompatibilidade fática, a democracia direta em sua forma pura. Uma espécie de destino trágico, com o qual a política ainda não se conciliou. Muitas foram as tentativas. Instituíram-se mecanismos de participação direta circunstancial, tais como o referendum, o plebiscito, o recall, a proposta de lei popular. Em certos contextos, como nos cantões suíços, sua aplicação surtiu efeitos de uma panaceia, de um bálsamo despejado sobre uma crepitante fogueira de etnias, línguas e culturas. No extremo oposto, na vanguardista Califórnia, a democracia direta, desde sua manifestação mais proeminente, que foi a Proposition 13, conduziu a efeitos antípodas: a bancarrota do Estado, o endividamento e as rupturas e as sucessões corriqueiras no poder. Tomem-se daí as dificuldades de construção de uma estrutura de governança que seja capaz de atender, ou apenas aplacar, esse ressentimento político da democracia participativa.
A República Romana de Cícero, porém, realiza, paradoxalmente, um projeto grego, que é o projeto platônico. Uma República que se arrima na representação.
De outra parte, conquanto se tenha atualizado o projeto republicano, ressente-se, não com pouca frequência, da participação direta, da determinação dos cidadãos quanto aos rumos da coletividade. Um ressentimento que é histórico, porque cultural. Os trabalhos que, desde a década de 70, tratam do tema da governança buscam, em substância, abordar esse ressentimento, sem, contudo, pôr às claras suas razões últimas, as quais, antes de possuírem raízes ideológicas, deitam fincas no campo social.
2 Teoria da Governança ou do Estado em Rede. Concepção da modelagem: pressupostos e princípios
O Estado em Rede, sob denominações diversas, é uma arquitetura político-administrativa de difusão do poder decisório da esfera pública em uma rede articulada de governança, na qual o ente estatal compartilha sua autoridade internamente e com instituições, instâncias, organizações e atores diversos, conexionados por pontos nodais que sustentam múltiplas relações de distensão do poder em lógica pluricêntrica.
Nessa arquitetura, o poder do Estado tem centralidade, mas não pode assumir caráter estático nem se apresentar infenso às tensões da rede. O modelo busca superar o padrão administrativo
centralizado e projetar relações abertas, notadamente Estado-sociedade e Estado-cidadão. Esse modelo constrói sua base de legitimidade por meio de um processo de devolução do Estado e do poder para a sociedade.
2.1 Paradoxo: Estado em Rede, construção ou desconstrução do Estado administrativo?
Sabe-se que a estruturação de um complexo institucional administrativo público internamente diferenciado e autônomo é uma aquisição evolutiva da modernidade.
Nas sociedades pré-modernas, direito, religião, moral, política e família formavam um bloco indistinto.
Um olhar retrospectivo pode identificar, naquelas sociedades, tão somente equivalentes funcionais da administração da atualidade, sob a forma de domínios burocráticos no desempenho de certas atividades. Não havia, portanto, um Estado e uma administração pública organizados.
Só a modernidade e a diferenciação funcional da sociedade em sistemas parciais dotados de códigos e linguagens específicos foram capazes de criar as bases para a separação do direito, do Estado, e da função administrativa do amálgama tradicional, dando corpo, entao, sob o prisma dessa função, ao Estado administrativo, como esfera operativa estatal autônoma e vinculada à lei.
O Estado administrativo, correspondente ao sistema funcional administrativo, por sua vez, assumiu sucessivas modelagens, seja refletindo a própria mudança de concepção política, seja por apelo ínsito às necessidades operacionais e materiais da função administrativa, nos sucessivos cenários paradigmáticos.
Projeta-se, hoje, o chamado Estado em Rede, que se desenvolve à luz do paradigma democrático, com ênfase nos eixos da governança participativa e de administração para a cidadania. Como já explicitado, um Estado que busca rever seu próprio processo de autonomia e as bases de sua legitimidade.
Seria o Estado em Rede uma ameaça de desconstrução do Estado administrativo, como dito, uma aquisição evolutiva da modernidade? Eis uma primeira pauta para a reflexão. A resposta não é singela.
Em face dessa perplexidade, devem ser analisados os cenários e os pressupostos de um Estado em Rede; em outra dicção, devem ser alinhados os elementos ou fundamentos que dão suporte a tal modelagem.
2.2 Pressupostos
O Estado em Rede sustenta-se em múltiplos pressupostos:
1) sociológicos, da sociedade em rede;
2) jurídicos, na quinta geração de direitos, vocacionados para a inserção do cidadão e da governança no mundo virtual, e no campo da hermenêutica crítica, com subsídio da teoria da linguagem;
3) político-democrático e jurídico-constitucional, na autocompreensão normativa do Estado Democrático de Direito;
4) fáticos, representados pela intensificação das demandas prestacionais e pela constatação da impotência e insuficiência do Estado para respostas a multifacetadas expectativas, mostrando a importância da convergência de atores governamentais, societais e do mercado.
2.2.1 Pressupostos sociológicos
O sociólogo espanhol Manuel Castells foi o responsável por cunhar, dentre outras, a expressão “sociedade em rede”, um paradigma catalisador de reformas estruturais, com o objetivo de introduzir o chamado Estado-Nação no processo econômico, cultural e social, chamado — hoje, sem qualquer pudor metodológico — de “globalização”.
Por globalização entende-se aqui, a grosso modo, o processo recente e intensivo de trocas, econômicas e culturais — distinto da internacionalização e de uma simples economia mundial —, cuja existência é suportada e promovida pelo sistema tecnológico vigente (telecomunicações, sistemas de informação interativos de resolução avançada e de transporte de alta velocidade em âmbito mundial, para pessoas e mercadorias).
Na perspectiva sociológica, o Estado em Rede, ou Gestão em Rede, é modelagem afeiçoada a interagir com essa sociedade complexa, globalizada e tecnológica.
2.2.2 Pressupostos jurídicos
O filósofo italiano Norberto Bobbio considerava que os direitos humanos eram direitos históricos, classificados em três gerações: direitos individuais, da liberdade; direitos sociais, da igualdade; direitos transindividuais e coletivos, da solidariedade. A doutrina incorporou novas dimensões: a dos Direitos de Quarta Geração, como os atinentes à manipulação genética, os da biotecnologia, da bioengenharia, da bioética; e a dos Direitos de Quinta Geração, relacionados com a inserção do cidadão e da governança no mundo virtual, da informática e da internet, que abala a segurança jurídica pela ênfase na desterritorialização das referências, pela fugacidade das soluções no bojo da crise das incertezas.
Tomando-se como válido esse modelo teórico, o que se acerta apenas como critério ilustrativo a pauta de aproximação, pode-se dizer que o Direito Administrativo é sucessivamente desafiado a responder, por meio de instrumentos do sistema administrativo, às demandas das gerações de direito. Sem desprezar as ordens de demandas geracionais anteriores, que persistem na disputa por acolhida do Estado, tem-se entao que os Direitos da Quinta Geração já pressionam o Direito
Administrativo no quadro hodierno e, certamente, ganharão escala no futuro próximo. Há, portanto, uma demanda de redesenho do próprio Estado Administrativo para responder a uma ordem de direitos em um patamar de complexidade própria da geração.
2.2.3 Pressupostos da interpretação jurídica no novo contexto
Vêm em socorro, nessas reflexões, contribuições da Teoria da Linguagem, da Teoria Comunicativa e da chamada Hermenêutica Crítica, para mostrar a importância da participação dos interessados na construção e aplicação da norma e do Direito para o processo emancipatório. Nesse sentido, algumas referências, para as possíveis ilações, dados os limites desta exposição.
No plano da linguagem, o filósofo vienense Wittgenstein ensina que a filosofia destina-se a explicar pensamentos; busca significados dos enunciados, e não a verdade deles. Assim, toda filosofia é uma crítica da linguagem.
Habermas investe na reflexão crítica acerca do Direito a partir da Teoria da Ação Comunicativa, hoje uma reconstrução crítica do papel do Direito moderno nas diversas esferas da ação social, pressupondo fundamentação jurídica aberta e legitimidade.
Klaus Günther contribui com sua Teoria da Adequabilidade, uma concepção normativa de coerência que advém de interpretação pragmática de aplicação das normas aos casos concretos, firmando-se a justificação e a aplicação como procedimentos discursivos distintos.
Com a Hermenêutica Crítica, Ronald Dworkin apreende o direito positivo criticamente, superando os modelos tradicionais de interpretação e de aplicação do Direito. Ele percebe “ligações necessárias entre o direito e a comunidade que o criou”, na linha construtivista que ele adota.
Enfim, no plano fenomenológico, a Teoria Crítica do Direito tenta discutir as possibilidades de uso emancipatório do Direito, renegando a sociologia do Direito do tipo positivista e estimulando a abordagem dialética do processo histórico-social do Direito.
Vislumbra-se, no Estado em Rede, o ambiente da discursividade democrática capaz de densificar a interpretação jurídica e os processos decisórios administrativos.
2.2.4 Pressuposto político-democrático e jurídico-constitucional de uma nova identidade da Administração Pública no Brasil
A autocompreensão normativa do Estado Democrático de Direito instaurada pela Constituição de 1988 surge intimamente ligada à ideia de que é preciso dar um conteúdo novo ao sistema administrativo e redefinir suas estruturas e sua identidade, ainda vinculadas a formas e práticas autoritárias e burocráticas.
Nesse sentido, o novo marco constitucional prevê especial ênfase normativa no processo de democratização da Administração Pública, isto é, enfatiza a importância da participação da cidadania e desperta nos administrados o seu papel de coautores, como componentes de uma esfera pública de cidadãos ativos, e não de meros clientes e expectadores passivos das prestações materiais por parte da Administração.
Assim, inverte-se o programa tecnocrático vigente no Estado Social, no qual a Administração Pública era tratada como uma esfera estranha e fechada aos cidadãos, para uma perspectiva de concepção, implementação e controle de políticas públicas em cujo ciclo se privilegiam a participação e o poder reivindicatório da cidadania no âmbito de uma esfera pública adensada.
Nesse estágio, busca-se ultrapassar a cultura imperante da prevalência do conhecimento de especialistas, mediante abertura das controvérsias públicas para discussão, de modo a incorporar soluções discursivamente traçadas pelos sujeitos do ordenamento.
Ora, há uma defasagem entre o patamar de autocompreensão normativa do Estado Democrático de Direito e o perfil da Administração Pública, que carece de identidade democrática, a justificar um modelo como o Estado em Rede, que se assenta no processo de autonomia coletiva.
2.2.5 Pressupostos fáticos
Múltiplos desafios práticos motivam a arquitetura de um Estado em Rede.
Nessa linha, tem-se, de um lado, a intensificação das demandas prestacionais no campo dos serviços públicos, e, de outro, a constatação de que as políticas públicas não se esgotam em um sítio governamental específico nem em setor exclusivo, o que mostra a impotência e a insuficiência do Estado para as respostas a essas multifacetadas expectativas, que precisam ser enfrentadas pelo conjunto dos atores nas dimensões estatal, social e do mercado.
No mesmo diapasão, a intensa conflituosidade decorrente da nova dinâmica social de pluralidade e de maior interatividade dos cidadãos apela por um esforço coletivo, para superar essas limitações de responsabilidade do sistema administrativo, em cujo âmbito não encontra resposta completa e satisfatória para desenvolver arquiteturas de responsabilidade estendida e de colaboração.
Na mesma ordem de fatores, comparece a resistência às decisões do modelo centralizado, voltada para a superação do unilateral imposto, que deve ceder lugar ao bilateral ou plurilateral negociado. Isso como fruto do amadurecimento da sociedade em torno de seu ideal emancipatório por direitos geracionais complexos, sinal dos tempos hodiernos que adensa os pressupostos fáticos de um modelo de Administração em Rede, cujo norte deve ser o da gestão para a cidadania.
2.3 Princípios de organização do Estado em Rede
Diversos são os princípios de organização do Estado em Rede:
a) a subsidiariedade, que orienta a descentralização do poder aos níveis mais próximos dos cidadãos, para ganhos de eficácia e que indica o parâmetro de compartilhamento da autoridade;
b) a flexibilidade, que faz a ponte de um Estado decretador e fechado para um Estado negociador e aberto às mudanças pactuadas;
c) a coordenação, que permite integrar e unificar a ação administrativa, mediante mecanismos de compartilhamento de informações e alinhamento de diretrizes e objetivos, evitando sobreposição de competências e duplicação de níveis decisórios;
d) a participação democrática, que integra a cidadania ativa ao sistema administrativo, ao ciclo das políticas públicas, assegurando legitimidade e autonomia coletiva e o progressivo compartilhamento decisório e de responsabilidade;
e) a transparência administrativa, que pressupõe a disponibilização, diretamente aos interessados e cidadãos, de informações de qualidade relacionadas com a atuação administrativa por meio de tecnologias próprias, como condição de participação da cidadania no bojo do processo de autonomia coletiva e de controle social das políticas públicas. A estruturação dos portais de informação deve, cada vez mais, levar em conta o papel da informação para esse processo emancipatório;
f) a incorporação de avanços tecnológicos, que se apresenta como imperativo para a inovação na ambiência administrativa. Uma administração ágil, flexível, descentralizada, participativa só pode operar em certo nível de complexidade, munida de novos recursos tecnológicos e alimentada por cultura de inovação. A modernização tecnológica requer investimentos em equipamentos, na capacitação de recursos humanos e do cidadão e, ainda, o redesenho das matrizes institucionais do Estado para que estejam abertas a arquiteturas organizacionais ou procedimentais inovadoras;
g) o aprimoramento dos agentes, que permite aos quadros da Administração capacitação e desenvolvimento de perfis aptos a colaborar para o funcionamento da Administração em Rede e, especialmente, para a construção de consensos;
h) a necessária retroalimentação do processo de planejamento e de implementação das políticas públicas, que permite às unidades administrativas, a partir de uma lógica cíclica e discursiva, correção dos próprios erros, incorporação de novos desafios, reavaliação dos métodos, dos fundamentos e das metodologias, de modo permanente.
2.4 Modelagem
Trata-se de modelagem sintonizada com o que há de mais avançado na administração pública do século XXI, na perspectiva de universalização do bem-estar. Um modelo transversal de desenvolvimento tem, nos princípios da intersetorialidade, da colaboração institucional e da responsabilidade estendida, suas balizas de sucesso.
Nesse sentido, um grande desafio é a incorporação de instrumentos de “empoderamento” dos atores envolvidos e de instrumentos de pactuação e de formação de consensos, ou seja,
mecanismos da Administração consensual, em substituição às matrizes tradicionais de circulação do poder.
A modelagem deve, portanto, promover a capilarização da governança e da autoridade no território e o diálogo, por meio de canais intragovernamental e extragovernamental e, sobretudo, federativo.
O Estado mantém-se em posição central como mediador na composição dos conflitos e indutor das relações, mas não é o árbitro exclusivo na definição do interesse público. Em outras palavras: a administração em redes deve buscar os chamados nós de convergência, identificando as diversas forças sociais e políticas que sobre ela atuam, para, sob a arquitetura institucional própria, construir os ambientes propícios à tomada de decisões.
Não se defende aqui uma comunicatividade formal e estéril, mas o soerguimento de estruturas e expedientes administrativos plenos de conteúdo. Já passou o tempo em que os domínios burocráticos dos serviços públicos eram suficientes para o atendimento das necessidades dos cidadãos. Hoje, há clara noção da impotência do Estado para responder a todas as demandas.
Demais disso, há um desgaste cada vez mais forte da representação política e da burocracia estatal. O desconforto com a democracia representativa, inclusive na dimensão territorial, já beira as raias da crise. Crises que precedem as rupturas.
3 Tendências no Brasil e advertências a partir de experiências externas
O planejamento estatal brasileiro, nos idos da década de 80, sob a gerência de um Celso Furtado, já tateava a necessidade de construção de governança regional. No âmbito federal, tinham lugar as autarquias territoriais, que, sem embargo, não conseguiram conviver com as vicissitudes de suas próprias estruturas e ações com a dimensão de poder que elas representavam. Com Fernando Henrique Cardoso na presidência, alterou-se a forma, mas não a substância: foram enfatizados os eixos de planejamento.
Há experiências recentes de planejamento matricial de lógica mais pragmática no âmbito federal, como os Territórios da Cidadania, e no bojo das políticas sociais unificadas.
O novo desafio que se vislumbra, no âmbito nacional, é o planejamento matricial, que possa comportar em sua metodologia a diferença e a dimensão da responsabilidade estendida. A lhaneza da ideia esconde o gigantismo dos desafios. Quiçá, o principal e mais agudo desafio seja saber dosar a reestruturação, evitando um risco que se põe em alto grau: a alienação da autoridade, que se tornaria, neste terrível cenário, presa fácil e ingênua para os interesses particulares.
Na Espanha, José A. Estévez Araújo, em interessante capítulo publicado em obra coletiva coordenada pela Professora Margarita Boladeras, da Universidade de Barcelona, defende a
tese segundo a qual os expedientes de governança, adotados na Europa comunitária, calcados no chamado “Livro Branco da Governança” e no pragmatismo norte-americano, representam apenas estratégias de privatização do poder político. Justamente aí reside o nó górdio da atuação com foco no compartilhamento de espaço e poder.
A governança de matriz norte-americana implantada na Europa centra-se em um amálgama de construtivismo e realismo que pressupõe níveis e padrões culturais diversos dos vigentes no Brasil, de modo que a transplantação de modelos dificilmente resistiria à aclimatação. Nesse passo, um Estado em Rede não pode debutar senão nos limites da subsidiariedade e de forma condizente com o estágio de organização do Estado.
4 O Estado em Rede em Minas Gerais: marco legal, organograma, pilares do modelo e instrumentos da Governança
O Estado de Minas Gerais inaugura um novo tempo de sua administração. Embora a afirmação possa ter um colorido de tonalidades pretensiosas, cuida-se, efetivamente, de algo novo: possibilitar a participação qualificada na condução dos assuntos de Estado, sem fragilizar o núcleo rígido da autonomia administrativa.
A gestão que acaba de se inaugurar no âmbito do Estado de Minas Gerais chama a seu modelo de articulação das estruturas de gestão e governança de Estado em Rede. O passo que enleia, no ambiente do Estado, é o planejamento matricial voltado para as diferenças. Antes de qualquer esforço para traduzir as características do modelo do Estado, convém trazer à tona uma realidade que, embora seja repisada por todos os intérpretes da chamada mineiridade, não chega a ser abordada em sua possibilidade máxima: Minas são muitas.
A frase, de tanto ser repisada, chega a soar como bordão. De toda sorte, é preciso compreender que uma estrutura reticular pressupõe descontinuidades. São, com efeito, as descontinuidades geográficas, humanas e políticas que o novo modelo de Administração que se busca implantar visa a contornar. Esse é ponto nevrálgico: descontinuidades/desigualdades!
Os padrões administrativos de organização do poder decisório, quer sejam concentrados, quer desconcentrados, quer descentralizados, não respondem a essa questão, pois, em verdade, permanecem a ela infensos, na medida em que têm como pressuposto, fruto de certo atavismo, a imagem, diria helênica, da totalidade do poder. Ainda que se tenha assimilado a representatividade da República romana, não se conseguiu distinguir poder de autoridade. Ao passo que aquele, sim, é total, esta, que é o âmago da administração, não o é.
A implementação do modelo de gestão do Estado em Rede corresponde ao 3o estágio da Administração Pública do Estado de Minas Gerais nos últimos anos de Governo desde 2003.
O Estado adotou o Choque de Gestão, em 2003, voltado para o equilíbrio fiscal e para o saneamento da Administração; o Estado para Resultados, com início em 2007, voltado para a melhoria de indicadores sociais e de desenvolvimento estrutural, a partir de processo de pactuação de metas, de monitoramento intensivo e de mensuração dos resultados. Agora, no 3o estágio, mantendo os propósitos de equilíbrio fiscal, de qualidade do gasto público e o foco nos resultados, busca, porém, inovar nas metodologias de acompanhamento da ação governamental e avançar no plano de governança para a cidadania.
O arcabouço do modelo transversal traça como diretrizes: a melhoria dos indicadores sociais, humanos, econômicos, institucionais e administrativos; a colaboração institucional e a intersetorialidade nos âmbitos governamental e extragovernamental; e a eficiência e o compartilhamento da gestão, com a incorporação da participação da sociedade civil organizada. Esta última é pressuposto para a legitimação, a transparência e a eficácia da gestão governamental.
4.1 Marco legal
As fundações normativas para aplicação do Estado em Rede em Minas Gerais podem ser encontradas na Lei Delegada n. 180, de 20 de janeiro de 2011, cujo comando central nesse particular é o da integração dos órgãos e das entidades da Administração Pública em sistemas setoriais, agrupados em quatro áreas básicas de atuação, às quais correspondem redes prioritárias, institucionais e sociais. São elas:
• governança institucional;
• planejamento, gestão e finanças;
• direitos sociais e cidadania;
• desenvolvimento sustentável.
Por meio de decreto, pode ser feita a integração dos diversos órgãos e entidades da Administração Pública estadual, conforme a necessidade e as demandas vigentes, a articulação ou a rearticulação de redes, o que garante a flexibilidade e a coordenação inatas ao Estado em Rede.
Esses sistemas setoriais poderão formar redes de integração institucional no âmbito do Estado e de outras esferas federativas. Vislumbram-se ainda redes sociais articuladas com a sociedade civil. Nesse ponto, ganha lugar a clara diretriz para se garantir a subsidiariedade no âmbito do sistema.
As redes prioritárias definidas pela lei delegada são:
• Rede de Governo Integrado, na área de governança institucional;
• Rede de Gestão Eficiente e Eficaz e Qualidade e Equilíbrio do Gasto, na área de planejamento, gestão e finanças;
• Redes de Atendimento em Saúde, de Educação e Desenvolvimento do Capital Humano, e de Desenvolvimento Social, Proteção, Defesa e Segurança, na área de direitos sociais e cidadania;
• RedesdeInfraestrutura,deDesenvolvimentoRural,deDesenvolvimentoSustentávelede Cidades, de Tecnologia e Inovação, e de Identidade Mineira, na área de desenvolvimento sustentável.
4.2 Organograma
O monitoramento da implementação do Estado em Rede está sob a responsabilidade da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão, que atuará por meio da Subsecretaria de Gestão Estratégica Governamental de forma integrada. Também foi criado o Escritório de Prioridades Estratégicas, que atuará como consultor na proposição de ações e políticas públicas focadas em áreas como educação, saúde e trabalho e, ainda, uma Subsecretaria de Relações Institucionais, no âmbito da Secretaria de Estado da Casa Civil e de Relações Institucionais, voltada para o assessoramento em matéria de integração governamental e nas relações institucionais do Poder Executivo com outros poderes, instituições essenciais à Justiça e outros segmentos específicos.
Como se depreende, o desafio jaz no fato de que essa estrutura dinâmica e ramificada dependerá de um constante fluxo informativo — interno e por meio de feedback da própria sociedade. Para atingir esse nível de excelência, deve-se atentar para a modernização da estrutura administrativa, a qualificação do servidor público e a implementação de campanhas institucionais e educativas com foco na integração.
Assim, revelam-se fundamentais os princípios do Estado em Rede para a coesão desse processo de mudança. É imperativo lembrar, todavia, que ao fim desse profundo processo de transformação da cultura administrativista, os reais beneficiários devem sempre ser os cidadãos — fim último e apto a legitimar qualquer atuação do Estado.
4.3 Pilares do modelo
A governança se torna chave para a realização do modelo, uma governança que tem o Estado na centralidade, sem, contudo, extrapolar o seu papel de indutor do desenvolvimento, de regulador das práticas sociais e de árbitro dos conflitos não disciplináveis pelos meios consensuais.
Igualmente, a territorialidade deve ser a referência como contraponto às lógicas desterritorializadas de influência na vida das pessoas. Local e global devem ser tomados como dimensões de um mesmo estágio civilizatório.
Na mesma linha, apresentam-se como pilares do modelo a prerrogativa regulatória do Estado, que deve ser qualificada, valorizada e apropriada com responsabilidade; a contratualização de resultados e de estágios de progresso nas prestações públicas; a densificação da noção de interesse público, cuja função deve assentar-se em critérios de plausividade, discursividade democrática, para que se afaste do patamar de legitimidade apriorística do Estado para sua preservação e arbitragem por força de uma racionalidade abstrata.
4.4 Instrumentos de Governança em Rede
Diversos são os instrumentos de Governança em Rede, seja no campo social, seja na área institucional, e podem ser enumerados alguns presentes na agenda mineira:
• conferências participativas;
• fóruns de políticas públicas;
• comitês temáticos;
• conferências de serviços;
• consultas públicas;
• agendas setoriais;
• agenda de melhorias.
Há, ainda, outros, voltados para o “empoderamento” dos cidadãos e dos diversos atores, tendo em vista a gestão compartilhada.
5 Estado em Rede e transparência
Aqui exsurge um ponto fundamental: sob pena de frustrar expectativas, as redes, de marcada subsidiariedade, precisam ser absolutamente efetivas quando atuam e, a um só tempo, transparentes, em todas as circunstâncias. A desconfiança estrutural que se abate sobre as sociedades modernas e, em especial, sobre a brasileira, mercê do patrimonialismo histórico, pode pôr a perder um belo projeto. Com efeito, a transparência responde a esse reclame como antídoto para essa chaga que é a desconfiança estrutural.
Boa-fé é o pilar sobre o qual se devem sustentar os instrumentos de promoção da transparência. Aliás, são os instrumentos de promoção da transparência que devem fomentar a boa-fé. A diminuição da opacidade das instituições públicas não se faz com a exposição dos miasmas, mas, antes, com o fomento à confiança. Ensina o gênio dos anexins que confiança não se impõe, conquista-se. Conquistá-la é, pois, o horizonte que se deve ter em mira. Cativar o sentido de pertencimento à cidadania, cultivar o civismo e o humanismo. Ir além da divulgação dos frios holerites de execução orçamentária, que pouco ou nada dizem ao cidadão, tampouco se prestam a bons frutos as penas simbólicas e a execração pública dos ditos corrompidos.
Um cosiddetto sistema de transparência de uma missão excelsa é, em verdade, uma função de pedagogia cultural, de formação humana e cultivo do espírito político, mesmo naquelas almas mais rústicas e avessas à civilização. Um professar constante da verdade republicana.
6 Conclusão
Muito se tem escrito sobre o papel desempenhado por certas instituições no contexto da implantação de mecanismos de governança, no seio dos quais se busca a força propulsora capaz de despertar o cidadão para a cena política, despindo-se de seus interesses privados, assim como o Barão de Münchhausen livra-se de seus cabelos. Uma ideia que vale mais pela figuração, que por sua aplicabilidade prática. O despertar não se faz, como se supõe, por milagre. É o despertar de um sono profundo, sendo, portanto, lento, doloroso e angustiante. Eis aí, senhores, o desafio de todos.
É imperativo da nova discursividade democrática o Estado em Rede, no qual se multiplicam os interlocutores interessados no processo de consecução do interesse público e concretização do bem-estar universal. É desafio do Direito Administrativo incorporar por inteiro o princípio democrático.
Não basta cumprir a lei de ofício, como recomendava Ruy Cirne Lima, se tal cumprimento não se der de modo que a definição e a implementação do público sejam feitas discursivamente segundo o código principiológico fundamental. É tarefa comum investir na sustentabilidade
social do Estado, e esse desiderato é tarefa coletiva e se faz pela cidadania ativa e pela institucionalidade democrática e legítima.
Referências
CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum. Coleção Fórum Brasil – França de Direito Público, 2009.
HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo. Belo Horizonte, v. 5, n. 3, p. 105–122, jan./fev. 1995.
MINAS GERAIS. Plano de Governo. Minas de todos os mineiros. As redes sociais de desenvolvimento integrado. Antonio Augusto Junho Anastasia — 2011–2014.
SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SOBRE A DEMOCRACIA. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Ed. UnB, 2001.
The Civic Culture: Political Attitudes and Democracy in Five Nations, 1963. Princeton University Press. (com Sidney Verba)
Abstract
Amid the topics of the major discussion about governance, takes part in the new political-administrative architecture of the decision power diffusion, named, in the State of Minas Gerais, “Estado em Rede”. The model is constructed from multiples presuppositions and is based in several principles, including those of subsidiarity, flexibility, coordination, and democratic participation, tuning in with the most modern of the twenty-first century public administration. Considering the challenge of incorporation of the empowerment tools, the model structures itself to promote dialogue, notably the intragovernamental, and the capillarization of governance and authority in the territory. In Minas Gerais, the goal is to obtain qualified participation of the civil society without weakening the hard core of the administrative autonomy. Implementation of the model corresponds to the 3rd stage of the Public Administration in the State, succeeding the first generation of Choque de Gestão, of fiscal emphasis, and the second, of Estado para Resultados. Its normative foundations are set by the Lei Delegada n. 180, that commands the integration of the State Public Administration’s departments. Stands out one major issue of the network — when working, it needs to be, at the same time, effective and transparent — the transparency responds like an antidote to the structural distrust of the modern societies. One must consider that the awakening of the citizen to the political act, unlike the expectations, is a slow and agonizing process, representing a major challenge for the State and Society to overcome.
Keywords: Estado em Rede. Governance. State Organization. Modeling of the Public Administration
Data de recebimento: 31 ago. 2011
Data de aceite para publicação: 24 out. 2011